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architexts ISSN 1809-6298


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Cidade e agricultura estão atavicamente ligadas uma à outra, apesar da difundida oposição entre campo e cidade. Neste texto, o urbanista Luís Octávio da Silva, trata das relações que se estabelecem entre a agricultura e vida urbana


how to quote

DA SILVA, Luís Octávio. Agricultura: utopias e práticas urbanas. Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 088.02, Vitruvius, set. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.088/205>.

O Paraíso, a agricultura e o nascimento das cidades

Em diferentes culturas e civilizações existe um mito recorrente. É aquele da existência de um tempo imemorial, por Hesíodo (2) chamado de Idade do Ouro, durante a qual a humanidade gozava de um estado de deleite e de prazer total. Na mitologia judaico-cristã, esse arquétipo corresponde ao do Jardim do Éden, local em que esse estado imemorial teria acontecido. De maneira sintética, essa imagem do Paraíso pode ser definida como aquela de um espaço em que a sobrevivência era garantida pela existência de um jardim de árvores frutíferas. “Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal” (3). Note-se já aí presente a idéia de subsistência, mas também de uma vegetação compondo uma paisagem de deleite. “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para ao cultivar e o guardar” (4). A sua expulsão do Paraíso por Deus condenou Adão a comer o fruto de seu próprio trabalho. Após amaldiçoar a serpente e a mulher, Deus amaldiçoou o homem e atribuiu a ele a culpa pela maldição da própria terra:

“Então, o Senhor Deus disse à serpente: Visto que isso fizeste, maldita és entre todos os animais domésticos e o és entre todos os animais selváticos; rastejarás sobre o teu ventre e comerás pó todos os dias da tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu marido, e ele te governará. E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu es pó e ao pó tornarás.” (5).

Uma das interpretações possíveis para esse mito é a do abandono da economia de coleta e caça e o desenvolvimento da agricultura. Ainda na tradição judaico-cristã, Caim, filho de Adão e assassino de seu irmão, teria sido justamente o fundador da primeira cidade, Enoque.

“E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. És agora, pois, maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o sangue de teu irmão. Quando lavrares o solo, não te dará ele a sua força; serás fugitivo e errante pela terra. (6)

Caim reclama de seu castigo:

“serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará. O Senhor, porém, lhe disse: Assim, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes.E pôs o Senhor um sinal em Caim para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse. Retirou-se Caim da presença do SENHOR e habitou a terra de Node, ao oriente do Éden. E coabitou Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a Enoque. Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu filho.” (7)

Em muitas passagens do texto bíblico, algumas cidades foram estigmatizadas como localidades malditas. Que o digam, por exemplo, Sodoma, Gomorra ou Babel, entre outras. Indubitavelmente, sob certos aspectos simbólicos, a cidade é antípoda do Éden. Uma parte significativa da história do urbanismo e das utopias urbanas pode ser interpretada como tentativas de reconciliação com a natureza e com esse mito original de uma era e de um espaço perdidos. Desde os Jardins da Babilônia, ou muito antes, sucedem-se as tentativas de recriar na cidade o Paraíso perdido.

O nascimento da cidade assim como o próprio conceito de sua existência estão ambos balizados pela definição de um território que seria o local de certas práticas políticas, culturais e econômicas, significativamente diferentes daquelas do meio rural. No começo da existência da vida urbana, a oposição cidade/campo corresponde a uma determinada divisão social e espacial do trabalho. As atividades mais diretamente ligadas à obtenção de produtos alimentares e de matérias-primas acontecem no campo, enquanto as cidades são locais de comércio, de gestão e de poder por excelência. Essa oposição não impede que cidade e agricultura sejam atavicamente ligadas uma à outra. As atividades urbanas desenvolveram-se a partir da gestão e da distribuição do excedente, viabilizado pelo desenvolvimento da agricultura. Paul Bairoch chega mesmo a afirmar que tudo leva a crer que a agricultura encadeie quase inelutavelmente um processo de urbanização. Raras são as regiões onde, 2000 anos após a existência de uma verdadeira agricultura, não se constate a aparição de cidades (8). Ao longo de toda a história das cidades, essa separação física em relação aos locais implicados na produção alimentar foi efetivamente muito menos rígida do que na teoria. Sobretudo no que diz respeito ao pastoreio e a uma pequena produção agrícola de subsistência. A manutenção dessas atividades no espaço intramuros, inúmeras vezes, representou também a garantia de sobrevida por ocasião de situações de cerco. Especificamente a esse respeito, Michel Ragon, em seu livro L’homme et les villes, menciona o relato de Heródoto segundo o qual a cidade da Babilônia seria um quadrado cuja lateral mediria o equivalente a 21 quilômetros de lado, circundada por uma muralha de 80 metros de altura e 20 metros de espessura (9). Mesmo duvidando dessas medidas e atribuindo-as a mais uma bravata daquele historiador, Ragon afirma a existência de provas suficientes que o levam a crer que as primeiras cidades eram efetivamente bastante extensas justamente por inserirem, nos espaços intramuros, muitas áreas agrícolas.

As proposições utópicas: a agricultura e o espaço urbano

O pensamento ocidental esteve, freqüentemente, marcado pela produção de figurações utópicas que evocavam a descoberta ou a proposição de sociedades ideais. Essa tradição emergiu sob diferentes formas: os tratados de política, textos literários, as formulações iconográficas e arquiteturais, etc. Uma das características mais marcantes dessa tradição utopista, sobretudo no que diz respeito a sua dimensão literária, consistiu na localização desses espaços utópicos em geografias insulares ou em alguma outra forma de afastamento do mundo conhecido. A própria situação de insularidade e de afastamento implicaram comumente a inclusão da agricultura e da subsistência como elementos-chave da viabilidade utópica. Na República de Platão, por exemplo, os agricultores e artesãos, provedores da subsistência material, constituem uma das três classes da cidade. Foi sobretudo a partir do Renascimento que a tradição literária utópica começou a interessar-se pela organização do espaço, e mais especificamente pelo espaço urbano, pelo habitat construído e pela relação deste com o meio natural e com a zona rural. Na Ilha da Utopia de Thomas More (1516), por exemplo, 54 núcleos urbanos são distanciados uns dos outros em função do potencial agrícola da zona rural que os separa. Numa ilustração da obra publicada no século XVII, em vez do cetro, Utopus, o rei de Utopia, porta um feixe de espigas de trigo, simbolizando a base material da estruturação social ilhoa (ilustração 5). Ainda no âmbito do Renascimento, é revelador o fato de que um dos principais autores da produção tratadística do período e responsável pelo projeto de Sforzinda, Filarete, produziu também um tratado sobre agricultura, aliás perdido (10). A história das Américas é, em várias passagens, marcada pela implantação de comunidades portadoras de projetos urbanísticos agrícolo-utópicos. Esse foi o caso, por exemplo, das missões jesuíticas na América do Sul ou das comunidades puritanas na América do Norte do século XVII.

Ao fim do século XVIII, com o advento da era industrial e a degradação das condições ambientais das grandes cidades européias, as formulações utópicas ganharam mais precisão no que diz respeito à função agrícola assim como a especificação da organização física dos assentamentos. De um lado, pode-se assistir, nesse período, ao apogeu da ideologia fisiocrática. Em face do desenvolvimento da produção manufatureira e mercantil, os partidários do pensamento fisiocrático argumentavam, no que diz respeito à economia, que somente a agricultura seria capaz de produzir riquezas. Ao mesmo tempo, as cidades eram cada vez mais associadas aos vícios e perversões. As utopias adquiriram um conteúdo que dava maior ênfase ao aspecto agrícola e à dimensão antiurbana. Isso pode ser observado seja do lado das idealizações mais identificadas com o pensamento liberal, ou pré-liberal, como foi o caso dos fisiocratas, assim como do lado das proposições reformistas de orientação mais socializante. Essa época, o início da era industrial, coincidiu com a conclusão de um longo período de grandes descobertas geográficas, iniciado no século XV. As perspectivas da descoberta de sociedades ideais, geograficamente isoladas, aproximavam-se do esgotamento. As utopias abandonaram então a busca geográfica e adquiriram uma perspectiva propositiva em relação ao futuro. Inúmeras formulações utópicas pregaram o abandono das cidades e a aproximação ao meio rural e às atividades agrícolas. O Falanstério de Fourier figura entre as mais conhecidas dessas proposições (11). Várias outras foram formuladas.

Parques, jardins e agricultura urbana: uma questão de precisão

Não se deve esquecer que, a cada vez que a temática urbana é mencionada, ela evoca quase automaticamente a figura do jardim. Precisemos desde já que a própria idéia do jardim é um conceito ambíguo que evoca tanto a natureza quanto a interferência humana. Assim como a natureza, o jardim é constituído de elementos naturais, mas que não se trata da própria natureza, mas sim de sua representação, uma natureza produzida, controlada, podada e enxertada. Assim como a cidade, o jardim é um produto da ação humana. Sob a perspectiva simbólica ele é sempre cercado, murado. O conceito de jardim revela também uma outra ambigüidade, ou melhor, uma dupla possibilidade de interpretação. Essa duplicidade pode ser, ao mesmo tempo, complementar ou antagônica. De um lado, o jardim é categorizado como local de prazer, de arte, e de lazer que evoca o Paraíso. Mas ao mesmo tempo ele pode ser também um local de produção que se aproxima da agricultura.

Em meio urbano, a vegetação ocorre segundo um diferenciado leque de situações: parques, cemitérios, praças, arborização viária e nos jardins privados e comunitários. A agricultura urbana, por sua vez, é uma atividade mais presente nessas duas últimas geografias. Nas próximas páginas trataremos desses espaços, sem, entretanto, fazer uma separação por demais estrita entre a corrente mais ornamentalista, que será apresentada como “agricultura de deleite” e o lado mais produtivo, mais ligado à produção agrícola. Nos casos concretos eles não são facilmente separáveis. O nosso interesse, no âmbito deste trabalho, está posto mais sobre o papel dos jardins e da agricultura urbana nas utopias, nos modelos e nas referências adotadas para o desenvolvimento das cidades do mundo ocidental capitalista.

A agricultura urbana na era industrial

Na era industrial, as novas tecnologias de transporte e de conservação dos alimentos tornaram possível o distanciamento dos locais de produção dos de consumo de produtos alimentícios. Nos meios urbanos maiores, o desenvolvimento da era industrial implicou três fenômenos que tocaram diretamente o tema da agricultura urbana: a) o abandono e mesmo a interdição de muitas das práticas urbanas de produção alimentar nos bairros mais centrais das grandes cidades do mundo industrializado; b) a sobrevivência da agricultura urbana de subsistência eventualmente induzida por propósitos de controle social; c) e, finalmente, a difusão de um modelo de desenvolvimento urbano caracterizado, entre outros, por um determinado tipo de “agricultura urbana de deleite”. Esses três fenômenos deram-se em geografias diferentes, porém não totalmente estanques entre si. No primeiro caso, como já mencionado, trata-se de fatos referentes principalmente aos grandes centros urbanos. No segundo caso, os jardins familiais e operários são mais característicos das cidades européias, se bem que a experiência dos jardins industriais tenha acontecido também no continente americano. E, por último, o espraiamento urbano dos subúrbios residenciais gramados foi, originalmente, um fenômeno urbanístico dos países de cultura anglo-saxã, se bem que, mais tarde, esse modelo tenha-se difundido para além desses limites geográficos.

A expulsão das atividades agrícolas das cidades industriais esteve diretamente ligada ao aumento do preço dos terrenos, à intensificação da ocupação do solo urbano e à própria precariedade das condições de habitação da população operária. Outras estratégias de abastecimento alimentar, principalmente a criação de animais, foram proibidas ou cerceadas em meio urbano por causa dos incômodos, pela implantação de normas sanitárias e difusão de uma determinada imagem de civilidade urbana à qual as elites se identificavam. No âmbito dos transportes urbanos, a rápida substituição da força motriz animal pela eletricidade e pelos combustíveis fósseis implicou o fim de toda uma agricultura urbana de pastoreio que alimentava os rebanhos, de grande importância para os transportes urbanos até a última década do século XIX.

A essa tendência mais estrutural de expulsão das atividades agrícolas dos meios urbanos contrapuseram-se várias práticas não hegemônicas, mas bem reveladoras das questões sociais, econômicas e políticas dos diferentes contextos urbanísticos em questão. Desde os últimos anos do século XIX, a periferia e os subúrbios de Paris e de várias outras cidades da Europa continental, foram ocupados por loteamentos populares. Nessas localidades, uma determinada agricultura de subsistência, praticada nos jardins familiais, garantiu a sobrevivência e uma certa independência, num contexto de salários bastante reduzidos, de eventuais períodos de desemprego e de queda da renda familiar. Muito freqüentemente, esses jardins possuíam raízes camponesas, identificáveis pela escolha das espécies cultivadas, diretamente ligadas aos hábitos alimentares daquelas regiões de origem (12).

Na Inglaterra, entretanto, as classes populares continuavam a viver nos bairros centrais, onde a disponibilidade de espaço livre para a atividade de jardinagem não era grande. Os jardins de subsistência e de cultivo de flores eram muito mais freqüentes no meio rural, em cottages e lotes agrícolas localizados nos vilarejos. Esses lotes, em sua grande maioria, haviam sido originalmente implantados no avançado do século XVIII e princípio do XIX, obtidos como compensação pela perda dos direitos comunais, no contexto da ocorrência do enclosure movement (13).

As práticas de agricultura urbana

As práticas de agricultura urbana, entretanto, implicavam também outras dimensões, bem mais abertamente políticas que diretamente econômicas. Nas sociedades da vanguarda do processo de industrialização emergiram, durante o século XIX, inúmeras iniciativas de reforma social e de reforma urbana. Elas variaram, em suas orientações, desde vertentes filantrópicas e de caridade até as posições abertamente socialistas. Sem esquecer as iniciativas das grandes companhias industriais, os aqui chamados jardins industriais, existentes nas company towns e nas vilas operárias. O que elas têm em comum, todas essas iniciativas desse período? Um consenso de que a solução para a degradação dos sítios urbanos deveria passar necessariamente por uma política de desadensamento das cidades existentes pela construção de novos habitats com mais espaços abertos e mais entremeados à zona rural e ao meio natural. Essa perspectiva estava presente também nas utopias socialistas da primeira metade do século XIX. Tomou forma mais acabada e largamente difundida na proposição das cidades-jardins de Ebenezer Howard, em 1898. Muitas foram as experiências-piloto ocorridas em ambas os lados do Atlântico.

As cidades da era industrial, entretanto, sobretudo as de grande porte, continuavam, ao longo do século XIX, constituídas, em grande parte, por bairros densos e infectos. Num contexto de epidemias e de condições ambientais bastante graves, as agitações sociais foram também respondidas por proposições de domesticação e de manipulação da classe operária por meio da transformação de seu habitat. Uma idéia bastante difundida era aquela que associava aos maus hábitos das classes populares o habitat denso, as práticas de lazer ligadas aos bairros mal-afamados, a vida nos cabarés e o álcool. É sob essa lógica que emergiram as proposições de um novo habitat baseado na unidade residencial isolada, na vida centrada na família e na ocupação do tempo livre com atividades de jardinagem. Uma nova temporalidade estava sendo formulada e difundida, para a população como um todo, mas especialmente dirigida às classes populares. Essa nova época traz também a necessidade de espaços novos. Diferentes lógicas imbricaram-se com perfeição. Do ponto de vista sanitário, a unidade residencial isolada facilitava as condições de aeração e vinha ao encontro da teoria dos miasmas, então hegemônica nos meios higienistas.

O jardinzinho em torno da casa ou o pequeno lote agrícola nas imediações deveria suscitar a devoção e a ligação com a propriedade privada e assim consolidar a ideologia dominante. A atividade de jardinagem tomaria o lugar das farras dos cabarés. “Fazer de um pé-de-valsa um jardineiro” (14) era um dos lemas dessas ações de higiene social (15).

Não se deve também esquecer que o desenvolvimento da jardinagem, nessa época, foi da mesma forma fruto das ações mercadológicas de todo um dinâmico setor econômico ligado à produção de ferramentas, de sementes e do setor editorial de revistas e outras publicações sobre jardinagem.

A promoção dessa prática correspondia, além disso, uma valorização dos espaços privados em detrimento do espaço público. A abordagem moralizadora era também bastante presente nas atividades das várias sociedades de jardinagem, de orientação abertamente conservadora, existentes desde o princípio do século XIX. Essas sociedades eram freqüentemente dedicadas especificamente às classes populares. As exposições florais, os concursos ornamentais, as publicações instrutivas, todas essas ações tinham muito freqüentemente a finalidade de difundir um determinado hábito de emprego do tempo e os “bons valores cristãos”. A orientação paternalista estava de igual modo presente nas ações dos organismos de promoção dos jardins operários. Tratava-se de jardins coletivos localizados nas periferias das cidades. Uma outra tipologia que compartilhava dessa mesma orientação era aquela mencionada anteriormente, presente nas cidades e vilas operárias (as company-towns). Nesses locais implantaram-se os jardins industriais. Partindo de uma concepção urbanística também centrada no residencial isolado, esses espaços ajardinados entre as casas possuíam um significado sutilmente diferente daquele dos bairros-jardins das classes mais favorecidas. Nas cidadelas construídas pelas companhias para seus operários, os espaços abertos cultivados, assim como os volumes construídos, eram concebidos como espaços de vigilância, jardins disciplinares.

Os jardins produtivos em meio urbano, entretanto, não eram unicamente fruto dessas ações de manipulação. Em diferentes países do mundo ocidental, floresceram jardins urbanos comunitários, locais de vivências coletivas e práticas culturais que, freqüentemente, evocavam a vida e o meio rural abandonados.

A idéia do desadensamento esteve, também, na base de vários dos programas governamentais efetivamente implantados em grande escala em alguns dos países da Europa do norte, durante o período entre as duas guerras mundiais. Na Inglaterra, assim como nos Estados Unidos, esses programas estenderam-se até mesmo durante o período de guerra, com a implantação de várias war villages. Nesse primeiro país, os assentamentos foram concebidos sob a influência direta do conceito das cidades-jardins: baixas densidades, casas semigeminadas ou os short terraces, com jardins na frente e atrás da construção. A jardinagem ornamental tornou-se, então, uma prática popular. Na Alemanha, as influências do movimento moderno fizeram-se sentir mesmo antes da Segunda Guerra Mundial. Algumas importantes municipalidades, administradas pelos social-democratas, implantaram programas de habitação social tendo como referência os métodos construtivos industrializados, o habitat coletivo e as economias de escala. O pequeno jardim familiar não foi um traço característico desses empreendimentos, apesar da convergência de concepções no tocante ao desadensamento. Também durante os períodos de guerra, a agricultura urbana adquiriu uma função estratégica não somente no que toca ao abastecimento alimentar, mas também no que diz respeito a seu aspecto ideológico já acima mencionado. Esse foi o caso, por exemplo, da Alemanha nazista, onde a atividade de agricultura urbana foi largamente incentivada.

O ideal de paisagem residencial, característico dos países de cultura anglo-saxã, e a referência das cidades-jardins foram apropriados pelo setor de promoção imobiliária privada e difundiram-se pelos quatro cantos do mundo ocidental desenvolvido. Entretanto, apesar do enriquecimento geral dessas sociedades e da perda das raízes camponesas, durante a segunda metade do século XX, tem-se de reconhecer que a agricultura urbana de subsistência sobreviveu, alimentada pela difusão de um modo de vida influenciado pelo movimento ecológico e pelo ideal de um habitat sustentável. Isso sem, entretanto, negar uma tendência de longo prazo, de aumento do peso da “agricultura ornamental”.

“Os gramados: uma obsessão americana” (16)

Essas considerações sobre a agricultura urbana nos países desenvolvidos seriam por demais incompletas sem uma menção específica a propósito da ocorrência de uma paisagem urbana ajardinada, bastante característica do mundo de colonização anglo-saxã: os gramados. Esse elemento de construção da paisagem integrou-se plenamente a um modelo de desenvolvimento urbano pautado pela expansão horizontal, pelas baixas densidades, pelo transporte individual, pela existência de bairros residenciais exclusivos, a residência unifamiliar, isolada no lote e pela ausência de cercas ou de muros por demais evidentes entre os lotes, pelo menos em sua parte da frente. Trata-se de uma paisagem em que o gramado suscita um ideal de serenidade originário da tradição paisagística inglesa. Vejamos, então, alguns aspectos dessa origem e seu desenvolvimento no continente americano.

Até o século XVIII, os jardins ingleses seguiam a tradição francesa, baseada numa concepção de natureza controlada, moldada e conhecida como a tradição formalista/absolutista. Entretanto, naquele século, ocorreu um deslocamento em direção a uma outra concepção estética baseada num ideal de paisagem não mais a controlar, mas sim a ser usufruída em sua forma natural. A referência de base era o habitat pastoral da Arcádia, na Grécia antiga, ou, mais exatamente, sua idealização como local em que a sociedade vivia em harmonia com a natureza. No intuito de recriar esse ideal de meio natural, essa nova construção da paisagem fazia uso de formas orgânicas e das perspectivas não circunscritas, diferentes, elas também, das perspectivas axiais da tradição absolutista. O ideal pastoral, assim como o desimpedimento das barreiras visuais para permitir a construção de perspectivas fluidas e contínuas está na origem da valorização e difusão dos gramados. Os ha-ha constituíram o elemento de acabamento dessa concepção de natureza não circunscrita, não cercada. Ironicamente implantados justamente durante o processo de cercamento dos campos comunais. Ha-ha é uma instalação de cercamento das propriedades rurais que engloba a cerca propriamente dita e sua implantação abaixo da linha do horizonte, numa espécie de fosso especialmente construído para escondê-la e assim dar a ilusão de um território contínuo, transparente, sem segmentações. O nome ha-ha é originário da exclamação de surpresa ocorrida quando o observador se aproxima e, subitamente, descobre-a.

Os gramados em si constituíam um elemento importante do mundo rural e pastoral inglês. Esse elemento fez parte da colonização biológica do novo continente. Eram os gramados, constituídos de espécies importadas que garantiam o pasto para a criação de gado. Eles estavam também presentes no meio urbano, sobretudo nas áreas comuns (os commons), justamente com a função de pasto para os rebanhos urbanos. Sua utilização para fins ornamentais data de meados do século XIX, grandemente difundidos pelo movimento dos parques urbanos e nas implantações dos bairros-jardins dos subúrbios elegantes. Os gramados urbanos americanos eram também carregados de significados e desempenhavam em si importantes funções de representação. Nos bairros exclusivos, eles suscitavam o mundo rural num contexto em que as cidades eram estigmatizadas por conotações negativas. Eles representavam da mesma forma o poder econômico do proprietário e seu zelo em mantê-los bem aparados e isentos de ervas daninhas. A inexistência de cercas, principalmente na parte da frente dos lotes, implicava imprecisões territoriais em relação aos vizinhos, e conseqüentemente um certo contrato comunal e também uma fonte de conflitos em relação àqueles que não aceitavam a estética da homogeneidade que a manutenção dos gramados implica. Para os recém-chegados na Nova Inglaterra, provenientes do sul do país, ou de qualquer região rural, a vegetação em torno da casa era, sobretudo, algo a evitar, devido à ameaça de cobras e de insetos indesejáveis (17). Aos olhos da vizinhança urbana, entretanto, o ato de roçar o lote e não implantar um gramado era visto como uma agressão e como uma recusa de integração à comunidade. Tratava-se, na verdade, de uma estética urbana hegemônica, tendo freqüentemente facetas de intolerância. Isso, especificamente, porque essa estética implicava, como já mencionado, uma determinada concepção de “transparência”, de homogeneidade e de continuidade do espaço paisagístico. Mais recentemente, os conflitos provêm, sobretudo, dos comportamentos desviantes dos proprietários que propõem jardins mais naturais, com espécies não domesticadas e/ou sem as práticas hegemônicas de corte e de remoção das ervas daninhas (18). Esses conflitos tomam até a forma de ações judiciais ou de ordenanças municipais que se pretendem guardiãs do bem-estar e da saúde pública. Uma vegetação não conforme implicaria um risco de proliferação de cobras, ratos e mosquitos. Curiosamente, um argumento muito parecido com aquele, de uma centena de anos atrás, provinha justamente daqueles que não se submetiam à hegemonia dos gramados.

Conclusão

Como diversos outros elementos da cidade, a agricultura urbana é fruto da ação humana e objeto de representações, de significados e de um simbolismo nem sempre evidentes. Um caso bastante emblemático é o das sociedades de jardinagem para classes populares dos primórdios do século XIX. Sob uma fachada angelical, escondia-se o interesse velado de domesticar essas classes. Um outro exemplo que nos permite compreender a complexidade e as injunções veladas é o dos subúrbios americanos. Sob o pretexto de preservar as condições ambientais, as exigências das leis de zoneamento, em relação às vastas proporções de áreas verdes dentro dos lotes, executam, na verdade, uma forma de discriminação e uma tentativa de manter um certo status, impedindo o estabelecimento dos menos ricos e, até algum tempo atrás, dos não brancos. Um olhar sobre as práticas da agricultura urbana e de suas imbricações pode servir de rica fonte para compreensão das injunções políticas, econômicas, sociais e urbanísticas das quais as cidades são objeto.

notas

1
Artigo originalmente publicado na revista Integração n. 46, ano XII, jul./set. 2006: 217-230.

2
Poeta grego que viveu no século VIII a.C.

3
Gênesis 2, 9. Versão usada em todas as citações: Antigo testamento poliglota : hebraico, grego, português, inglês. – São Paulo, Vida Nova / Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.

4
Gênesis
2, 15.

5
Gênesis 3 14-9.

6
Gênesis 4, 10-2.

7
Gênesis 4, 14-7.

8
“D’ailleurs, à la lueur des recherches récentes, il apparaît de plus en plus que, à terme, l’agriculture entraîne quasi-inéluctablement un processus d’urbanisation. Dans pratiquement tous les cas où l’on est en présence d’une agriculture, quelques millénaires plus tard apparaît le fait urbain. Rares sont les régions où, 2000 ans après l’existence d’une véritable agriculture, on ne constate pas l’apparition de villes”. BAIROCH, Paul. “Villes et développement économique dans une perspective historique”. In BALLY, Antoine; HURIOT, Jean-Marie. Villes et croissance: théories, modèles, perspectives. Paris, Anthropos, 1999, p. 13.

9
RAGON, Michel. L’Homme et les villes. Paris, Albin Michel, 1995 (1975, 1ª ed. do texto; 1985, 1ª ed. do álbum), p. 16.

10
ROSENEAU, Helen. A cidade ideal: evolução arquitectónica na Europa. Lisboa, Editorial Presença, 1988 (1983, 3ª ed. em inglês; 1ª ed. em português), p. 62.

11
Segundo esse utopista francês, a sociedade dividir-se-ia em comunidades de 1.600 a 1.800 pessoas, alojadas num edifício comum, o Falanstério, que, por sua vez, estaria inserido em um território de 3 milhas quadradas de terra arável.

12
TREMPE, 1971. Apud DUBOST, Françoise (1984). Les jardins ordinaires. Paris/Montreal, L’Harmattan, 1997, p. 37.

13
CONSTANTINE, Stephen. “Amateur Gardening and Popular Recreation in the 19th and 20th Centuries”. In Journal of Social History, Pittsburgh, Carnegie-Mellon University, Vol. 14, n. 3, primavera de 1981, p. 392.

14
“Faire du danseur un jardinier”, no original.

15
Cf. MURARD, Lion; ZYLBERMAN, Patrick. "Le petit travailleur infatigable ou le prolétaire régénéré: Villes-usines, habitat et intimité au XIXe siècle". Fontenay-sous-Bois, Recherches, n. 25, 1976.

16
Subtítulo emprestado da obra de JENKINS, Virginia Scott. The lawn: a history of an american obsession. Washington (DC)/Londres, Smithsonian Institution Press, 1994.

17
JENKINS, Virginia Scott. Op. cit.

18
Idem, ibidem, p. 175.

bibliografia complementar

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sobre o autor

Luís Octávio da Silva é urbanista, professor junto ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu e autor de diversos artigos no âmbito das temáticas urbanas, dentre outros: “História urbana: a constituição de uma área de conhecimento” na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais (vol. 4, nº 1 e 2, mai/nov 2002); “Breve história do Centro de São Paulo: sua decadência e reabilitação” em Urbanismo: Dossiê São Paulo – Rio de Janeiro (UFRJ/PUC Campinas, 2003) e “Os quintais e a morada brasileira” in Cadernos de Arquitetura e Urbanismo (vol. 11, nº 12, dez 2004).

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