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architexts ISSN 1809-6298


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Cristina Guimarães discute a preocupação de arquitetos e urbanistas em (re)transformar a cidade em "res civica" e o quanto essa questão de devolver a cidade à coletividade é também uma reivindicação popular


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DE OLIVEIRA GUIMARÃES, Cristiana Maria. Espaços públicos ou espaços para o público? Arquitextos, São Paulo, ano 08, n. 090.06, Vitruvius, nov. 2007 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/193>.

“No intuito de devolver a cidade moderna à coletividade expropriada ao longo do processo de constituição das grandes aglomerações urbanas contemporâneas, arquitetos e urbanistas entregaram-se, particularmente a partir dos anos 60, a uma verdadeira obsessão pelo ‘lugar público’, em princípio o antídoto mais indicado para a patologia da cidade funcional (...). A idéia diretora era a reativação, ou criação, de lugares com sentido forte, em geral ligados a práticas coletivas que impregnam a representação e a vivência da cidade pelos seus habitantes. Com isto, e dispensando-se o recurso a modelos, a cidade deveria em princípio voltar a ser uma res cívica” (1).

A preocupação em (re)transformar a cidade em res civica ocupa arquitetos e urbanistas, desde a consolidação de uma posição crítica em relação aos pressupostos da Carta de Atenas, reforçada pela concretização da incapacidade dos planos resolverem os problemas, já alarmantes, de nossas cidades.

Devolver a cidade à coletividade é também uma reivindicação popular, visível, por exemplo, no Fórum Nacional de Reforma Urbana, protagonista da primeira Conferência Nacional das Cidades, realizada em 2003, com o objetivo de estabelecer as diretrizes e metas para as políticas nacionais de desenvolvimento urbano, habitação, saneamento ambiental e transporte e mobilidade urbana, e da implantação do Conselho Nacional das Cidades (abril de 2004), composto de diversos segmentos do Poder Público e da Sociedade Civil. No período anterior a Constituição Federal, ainda como Movimento pela Reforma Urbana, foi o aglutinador de diversas organizações não-governamentais, movimentos populares, associações profissionais, pesquisadores, grupos religiosos, organizações políticas que, a partir do processo de democratização do país em meados dos anos 80, adotam uma plataforma de reforma urbana para mudar a realidade de segregação, discriminação e desigualdade nas cidades brasileiras (2).

Parte dessas reivindicações foram materializadas na Constituição Federal de 1988, que assume uma transformação radical na ótica da política urbana brasileira. Em seu artigo 182, dispõe que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais, fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. São reconhecidos constitucionalmente: 1. o papel fundamental dos municípios na determinação das políticas de ordenação territorial; 2. a função social da propriedade, estabelecendo um novo conceito para a propriedade imobiliária; 3. o direito ao planejamento urbano, como um direito coletivo. Essas posturas resgatam o sentido social, possibilitam novos paradigmas políticos e teóricos e tornam necessárias novas práticas de planejamento e gestão das cidades, referenciadas pela democratização do “direito à cidade” (3).

O Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001 - veio consolidar, criando mecanismos e instrumentos jurídicos, os pressupostos lançados pela Constituição Federal de 1988 em relação ao papel dos municípios na gestão e planejamento urbano. Essa nova lei expõe a necessidade dos municípios promoverem a devida integração entre planejamento, legislação e gestão urbana, de forma a democratizar o processo de tomada de decisões, e assim, legitimar plenamente uma nova ordem jurídico-urbanística de natureza social e ambiental. Nesse sentido, pressupõe a participação efetiva dos cidadãos no processo de formulação e implementação do planejamento urbano-ambiental, através de audiências, consultas, conselhos, Estudos de Impacto de Vizinhança, entre outros. Além disso, propõe o estabelecimento de novas relações entre o setor estatal, o setor privado e o setor comunitário, especialmente através de parcerias e operações urbanas consorciadas, dentro de um quadro jurídico-político claro e previamente definido, e de controle fiscal e social transparente (4). Essas e outras definições do Estatuto da Cidade colocam a noção política e cultural do direito à cidade no papel de carro-chefe da reforma urbana, transformando-o em um marco referencial legal e institucional para novas experiências nas cidades brasileiras (5).

Se do ponto de vista normativo as premissas para transformações urbanas, no intuito de “devolver a cidade à coletividade”, estão colocadas, como conseguir efetivá-las a partir das intervenções no espaço urbano? A pergunta que se coloca é como reativar, ou mesmo (re)criar, os espaços públicos, através das intervenções no espaço urbano, evitando, para usar as expressões de Jeudy (6), que a pretendida animação sócio-cultural leve a um sistema de signos petrificados, a uma simulação teatral da vida urbana inexistente.

A idéia de territorialidade funciona como bom operador para a reflexão sobre a apropriação dos espaços urbanos, e especificamente, sobre a relação entre as intervenções no espaço urbano e a promoção dessa apropriação, capaz de transformá-lo em espaços públicos. Usaremos como proposto por Guattari (7) o binômio conceitual espaço-território, que, a partir das diferenças de cada um, elucida a necessidade da sua complementaridade. O território funciona em uma relação intrínseca com a subjetividade que o delimita, ao passo que o espaço funciona como uma referência extrínseca em relação aos objetos que contem. A noção de territorialidade (8), assim entendida, em contraposição à de espaço, esclarece que a transformação de espaço em território se dá de maneira subjetiva. A territorialidade constitui dimensões sociais e políticas, que afetam as percepções do sujeito em relação à sua posição e papéis na dinâmica urbana, considerada como território de ação social. O território não é entendido somente pela perspectiva do domínio físico, mas também de uma apropriação que incorpora a dimensão simbólica e, pode-se dizer, identitária, afetiva.

Guattari coloca que a cidade atual é constituída por espaços lisos, e simultâneo a esse alisamento, há um processo de reestriação ou de reterritorialização. A proposta de Giddens, sobre a modernidade e suas significativas transformações na relação espaço-tempo e no papel da tradição conforma essa mesma direção teórica. Relacionados às novas configurações tempo e espaço, estão os processos de desentranhamento, que se referem ao “desentranhamento de formas de vida, sua desvinculação e recombinação através do tempo e do espaço, mas também reconstituição dos contextos a que pertencem” (9). Ele sustenta que o mundo de hoje é um mundo “pós-tradicional”, na medida em que inúmeras crenças, costumes e tradições se misturam entre si. Tradições e costumes, crenças e expectativas constituem hoje recursos adaptáveis, flexíveis “plásticos”. O mundo moderno contextualiza as tradições como contextos alternativos de tomada de decisões e como fonte alternativa de conhecimento, valor e moralidade. Essa escolha pessoal e reflexiva de opções culturais, de decisões e modos de vida pode ser relacionada a um processo contínuo de reterritorialização, para voltarmos aos termos de Guattari.

Os processos de “reconstrução” ou “reativação” dos espaços públicos também podem ser entendidos como processos de reterriorialização. Enquanto, a desterritorialização compreende os mecanismos que separam o território das suas "raízes" sociais e culturais, a reterritorialização vem a ser a criação de novos vínculos em substituição aos perdidos. Se as intervenções no espaço urbano pretendem recompor esses vínculos perdidos, os espaços públicos recriados devem funcionar como “condensadores de subjetividade” (10), capazes de superar os espaços, transformando-os em territórios existenciais. Contudo, ainda permanece a questão: como encontrar os condensadores de subjetividade ou condensadores semióticos que, em cada lugar, permitam superar os espaços para construir territórios existenciais?

Acredito que encontraremos as respostas, não nas formas, ou imagens arquitetônicas, mas no processo de idealização das intervenções, desde a escolha das propostas ao modo como serão realizadas, e por quem. Em outras palavras, torna-se fundamental pensar em quem faz o espaço público. Assim, é premente localizar a possibilidade de outro modo de repensar e refazer o espaço urbano, incorporando efetivamente a participação, tendo, como fim último, o “direito à cidade”.

Está sendo proposto aqui, antes de tudo, recuperar o sentido da arquitetura quando essa “deixa de ser considerada um mero objeto estético ou arte figurativa e passa a especular uma nova sociedade e a se relacionar com o mundo das ações e movimentos em que as pessoas realmente habitam” (11). Os técnicos, colocando-se em uma posição de aprendizagem, em substituição a do saber total, tornam-se imprescindíveis como os intérpretes das comunidades envolvidas. Os arquitetos e urbanistas deixam de ser interventores e passam a construtores do espaço público, em um processo partilhado com diversos atores, absorvendo a diversidade e multiplicidade de valores que fazem a cidade.

As intervenções totalizadoras, idealizadas e executadas e externamente às comunidades, não promovem a realização dessas como atores, mas como público. Sem atores naturais, o espaço – que não é público, mas para um público –, requer uma ativação artificial, uma cena ou um espetáculo ou algum tipo de consumo. Assim, o lugar dado às comunidades não é o de fazer o espaço, compartilhar, modificar, apropriar, mas de consumo. O produto a ser consumido é definido pelos especialistas, a partir da visão – quase sempre estereotipada – do que é melhor ou em outros casos, mais adequado para as comunidades envolvidas. Ao contrário disso, a modificação de espaços em territórios pressupõe a expressão e impressão pessoal nesses espaços. Assim, a experiência pessoal é materializada na apropriação do espaço e em sua transformação no território de cada um. Não se trata de particularizar os espaços, a idéia é a defesa de espaços públicos que possibilitem apropriações pessoais, diversas, mas simultâneas e superpostas. Para serem efetivados como públicos, esses espaços devem ser o resultado da coexistência de vários territórios superpostos, às vezes conflitantes, outras em sintonia.

A transformação de espaços em territórios existenciais supõe a decodificação desses espaços em entendimentos pessoais, símbolos próprios, lembranças e necessidades únicas. Esse processo requer tempo, possibilidades de interferências, intervenções – a chamada pátina do tempo e, muito importante aqui, do uso. Muitas vezes essas intervenções contrariam o ideal estético pré-concebido. Voltamos ao ponto crucial do debate aqui sugerido, à idéia que rege as intervenções no espaço urbano, que pretendem ser construtoras de espaços públicos. Os espaços resultantes devem ser vivenciados ou admirados? Por trás dessa idéia, está outra, anterior, referente ao “direito à cidade”. Um caminho é a proposta pronta, que através da imagem, forja um consenso, que na realidade, só existe enquanto não participação, não envolvimento e não vivência, mas como contemplação. A unanimidade alcançada nem sempre expressa uma conquista da sociedade, mas muitas vezes significa uma imposição que anula ou apaga outras possíveis leituras da cidade. Em outra hipótese, o direito à cidade é estendido à possibilidade de “fazer a cidade”, através da sua transformação pela experiência, uso e apropriação. Materializa-se em um processo contínuo de fazer-desfazer-refazer, muitas vezes contraditório, pois é expressão de conflitos, acordos e lutas.

Estamos falando de dois processos: um totalizador, impermeável; outro, em sentido contrário, compartilhado, permeável. Entre os dois casos, a diferença está em construir espaços públicos e espaços para o público, onde as pessoas são consideradas como expectadores da cena midiática. Cena, essa, construída além – ou aquém – da participação de para quem, ou em nome de quem, foi feita. Elaborando essa diferença, talvez possamos começar a identificar o que distingue a arquitetura “reativa” e a arquitetura do espetáculo. Parafraseando Brandão (12), a arquitetura como experiência e não contemplação.

notas

1
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O lugar da arquitetura depois dos modernos. 3ª ed. São Paulo, EDUSP, 2000, p. 97 e p. 120.

2
SAULE JR, Nelson. “O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democrática”. In: Mobilização cidadã e inovações democráticas nas cidades. São Paulo, Polis, 2005, p. 38-43. <disponível em www.polis.org.br>

3
MELO, Flávia C. R. “A propriedade urbana e o instrumento da transformação do direito de construir”. In: FERNANDES, Edésio e RUGANI, Jurema M (orgs). Cidade, memória e legislação: a preservação do patrimônio na perspectiva do direito urbanístico. Belo Horizonte, IAB, 2002, p. 104; RODRIGUES, Maysa Gomes. “Zona de fronteira: a expansão urbana recente na zona sul de Belo Horizonte”. In: FERNANDES, Edésio e RUGANI, Jurema M (orgs). Cidade, memória e legislação: a preservação do patrimônio na perspectiva do direito urbanístico. Belo Horizonte, IAB, 2002, p. 181.

4
FERNANDES, Edésio e RUGANI, Jurema M (orgs). Cidade, memória e legislação: a preservação do patrimônio na perspectiva do direito urbanístico. Belo Horizonte, IAB, 2002, p. 249-252.

5
SAULE JR, Nelson. Op. cit.

6
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005.

7
GUATTARI, Felix. “Espaço e poder: a criação de territórios na cidade”. Espaço e Debates, n. 16, ano V.

8
GUATTARI, Felix. Op. cit.; RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo, Ática, 1993,

9
GIDDENS, Anthony e PIERSON, Christopher. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio de Janeiro, FGV, 2000.

10
GUATTARI, Felix. Op. cit.

11
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Hermenêutica e verdade na obra de arquitetura. Disponível em <http://www.arq.ufmg.br/ia/hermeneutica.html>.

12
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Op. cit.

sobre o autor

Cristiana Maria de Oliveira Guimarães, arquiteta pela EAUFMG, Mestre pela EAUFMG e doutoranda em Ciências Humanas, FAFICH/UFMG. Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIVALE, coordenadora do Curso de pós-graduação Euro-Brasileiro de Gestão do Território e do Patrimônio Cultural/ UNIVALE.

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