Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Leia neste artigo a carta dirigida ao povo americano escrita por Lucio Costa em 1961, quando retornava, a bordo de um navio, das comemorações do Centenário do M.I.T., em que proferiu a palestra “O Novo Humanismo Científico e Tecnológico"


how to quote

COSTA, Lucio. Carta aos americanos. A bordo do S.S. “Rio Tunuyan”. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.00, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/79/pt>.

De volta à casa, gostaria de dizer algumas palavras a vocês, americanos. Apesar de terem vida fácil, percebo que não estão felizes com o desenrolar dos acontecimentos. Estão preocupados, sentem a maré internacional subindo, não vêem saída; o futuro parece sombrio, vocês estão pessimistas. Permitam-me dizer-lhes que estão enganados. Vocês estão olhando na direção errada, batendo na porta errada. E, bem atrás de vocês, as portas estão completamente abertas, o caminho livre, vocês podem caminhar com segurança em direção ao alvorecer.

Dois anos atrás, o vice-presidente Nixon foi humilhado em sua viagem de boa vontade à América do Sul; poucos meses depois, o presidente Eisenhower foi aplaudido por onde passava no exterior, por enormes multidões. Por que isso? O que aconteceu no intervalo? Camp David. Foi uma resposta espontânea do mundo às declarações de Camp David. O chamado espírito de Camp David. E qual o seu significado? É a aceitação dos fatos, da realidade como ela é e não como preferiríamos que fosse; a predisposição para entender, e assim, coexistir.

Vocês podem não gostar da palavra – talvez a tenham ouvido demais – mas, de qualquer maneira, é a palavra correta. A primeira coisa a fazer é aceitar a idéia de coexistência.

Vocês são capitalistas. Lucro e sucesso no seu sentido mais amplo são seu objetivo principal. Sua liberdade, seus sentimentos, seus pensamentos, suas ações, passam de alguma forma por esse conceito básico. Pois bem, pelo mundo a fora, a guerra, em termos mundiais, não trás mais nenhuma espécie de proveito; eles são comunistas. Acreditam no coletivismo como meio de atingir a libertação individual, exatamente como vocês acreditam na produção em massa como meio de atingir o conforto individual. Eles têm um ideal, mas são pessoas práticas, que pretendem sobreviver. Os prognósticos letais de guerra são de tal ordem que não resta escolha – para eles ou para qualquer um de nós – senão coexistir.

Compreendo que vocês anseiam por segurança. Mas os meios de destruição sendo o que são, só existe uma forma de segurança – é evitar a guerra. Não se trata de abrir mão da luta ou de rendição, senão de render-se simplesmente aos fatos. Não é questão de opção, mas de mero fato, bendito fato, imposto não por princípios morais ou crença religiosa – mas pelo próprio conhecimento científico e tecnológico. E o fato fabuloso e tremendamente significativo é que nos encontramos no limiar de uma Nova Era, quando o processo normal da evolução, violentamente rompido durante o século XIX e primeira metade do XX pela revolução tecnológica e industrial, vai mais uma vez retomar o seu curso, só que em outro nível e numa diferente escala (o jato e o foguete não são a “evolução” do cavalo e da carroça, – são outra coisa). Uma Nova Era estará ao alcance da mão quando o desenvolvimento científico e tecnológico se sobrepuser à incompreensão. O desenvolvimento científico e tecnológico trás em seu bojo um novo conceito de humanismo, que não beneficia apenas algumas castas, classes ou setores da população, como no passado, quando era condicionado pelas naturais limitações das técnicas da produção artesanal, mas se destina a abarcar a humanidade toda.

Nós ainda vivemos oprimidos por limitações, medos e preconceitos, contingentes ou imemoriais, que nos foram impostos como se fizessem parte da nossa verdadeira natureza – mas que são, na verdade, removíveis. Nas sociedades desenvolvidas usam-se “máscaras” para defesa própria, ou para tentar impressionar os outros e “ter sucesso”; nas sociedades subdesenvolvidas, ignorância, pouco caso e trabalho pesado para um benefício mínimo impedem o crescimento e a expressão natural da personalidade. Mas nessa Nova Era que já nos envolve por todos os lados, tão próxima que podemos quase senti-la e tocá-la, o desenvolvimento científico e tecnológico, além de libertar o homem das “amarras” da fome e da pobreza, criará condições para libertá-lo também da vulgaridade e da sofisticação – estes dois extremos a que é levado pelas contingências de uma hierarquia social artificialmente imposta – e de conduzi-lo de volta àquela vida simples, plena e natural, realmente digna da sua condição.

O desenvolvimento científico e tecnológico tem, de fato, uma coerência que lhe é inerente. O seu mau uso tão generalizadamente temido é sempre resultado de fatores acidentais, estranhos por conseguinte à sua lógica intrínseca inelutável, que, levada às últimas conseqüências, é sempre a favor do homem e não em seu detrimento, posto que somos parte integrante do processo. O desenvolvimento científico e tecnológico pode ser graficamente representado por uma linha vertical: é a “maçã que cai”, pois é disto que se trata. Especulações de sentido místico, filosófico, político, comercial ou social podem fazê-la oscilar para a esquerda ou para a direita, mas não afastar-se dela além da conta, pois deixam de funcionar e perdem o sentido.

A conseqüência final do desenvolvimento científico e tecnológico é a libertação do homem e essa libertação do homem é a meta última não apenas da sua sociedade – a nova sociedade capitalista – mas da sociedade coletivista também. São ambos rios que têm diferentes cursos, mas convergem para o mesmo estuário. Vocês herdaram a liberdade desde o primeiro momento. Eles herdaram o despotismo e o utilizaram , mas o propósito marxista fundamental é precisamente este: liberdade. E, acreditem ou não, eles ainda são marxistas. É errado supor, como muitos ex-comunistas fazem – perturbados como ficaram pela pendência Trotsky-Stalin – que a competição entre Leste e Oeste não é mais ideológica, mas simplesmente uma luta pelo poder no sentido bismarckiano, e que, portanto, a URSS e a China terminarão por se confrontar pela liderança. Não se iludam com este conto de fadas.

Apesar das suas diferenças de abordagem, têm o mesmo ideal e, por mais estranho que isto possa lhes parecer, eles são pessoas honestas. Eles acreditam na Nova Era. Sentem que estão caminhando na direção certa, e de acordo com o momento histórico. Vocês, pelo contrário, rejeitando sua tradição progressista, dão as costas à Nova Era, resistem ao curso dos acontecimentos e só andam para a frente quando premidos pelas circunstâncias.

Compreendo que, estando as coisas no pé em que estão, vocês precisam de segurança, e construir para guerra e paz ao mesmo tempo é ainda vantajoso para vocês agora. Apesar de pretenderem lamentar o desperdício, vocês lucram com ele, porque assim mantêm o nível de emprego e evitam a depressão; ao mesmo tempo, ficam com a ilusão de segurança. Mas o fato, o fato real, é que a guerra em escala mundial é, de agora em diante, impraticável; mais cedo ou mais tarde vocês terão de encarar os fatos, e os fatos são claros: vocês não podem destruí-los, como gostariam; eles não podem destruir vocês, como desejariam; nenhum de vocês pode mais contar com a deterioração interna; vocês não podem continuar indefinidamente estocando destrutiva sucata, de modo que precisam planejar para a paz e o desarmamento e, como corolário, encarar a obsolescência da noção de “equilíbrio de poder”, e conseqüentemente de liderança.

É claro, a competição continuará, mas em outros termos, num patamar diferente. Em vez de “liderança”, contribuição: cada indivíduo e cada país contribuindo com o máximo de suas habilidades e de seu poderio para a formação do Novo Mundo, que não fica mais deste lado do Atlântico, e nem será do outro lado do Pacífico. Que não está mais à esquerda ou à direita, mas acima de nós; precisamos elevar nossas mentes para alcançá-lo, pois não é mais questão de espaço, mas de tempo, desenvolvimento e maturidade.

O Novo Mundo é a Nova Era. Este é o ponto. Vocês precisam aceitar e crer na Nova Era. Então, e só então, os problemas que os perseguem – a Cuba de Castro, o Laos neutro, Berlim livre, a aceitação da China, a conquista do espaço – adquirirão perspectiva diferente. “Mas isto é exatamente o que eles pretendem”. Precisamente. Eles já estão raciocinando em termos da Nova Era, e vocês também precisam aceitar estes termos e andar para frente, não para trás. Quanto mais cedo vocês entenderem esta verdade, mais participarão, se beneficiarão, e partilharão da moldagem da Nova Era. Isto é um direito natural, é parte da sua herança.

A abordagem americana e a abordagem socialista são gêmeas, ambas decorrem da revolução industrial. Vocês já deram uma tremenda contribuição à Nova Era: o Século Americano. Mas já disseram o que de original tinham a dizer. O resto do mundo não deve esperar de vocês mais nada de realmente novo, nada que vá além do que vocês já fizeram, nada além de aperfeiçoamento e apuro. O Século Americano como entidade histórica única estará terminando agora, sob seus olhos, que não conseguem perceber ou compreender a situação, e é esta a causa profunda de sua crise nacional. O Século Americano começou depois da Guerra de Secessão e está agora se encerrando – é como a felicidade, a gente só se dá conta dela quando já passou. Significativamente, o M.I.T. acaba de comemorar seu primeiro centenário – 1861-1961 – o seu século. O próximo a ser comemorado será o primeiro Século Mundial, o primeiro Século da Nova Era, para cuja conformação os Estados Unidos, a União Soviética, o Commonwealth, a Europa, a Ásia, a África e a América Latina, – todos contribuirão, cada um com o seu gênio e de seu modo particular, de maneira que o novo humanismo que o desenvolvimento científico e tecnológico trás como inerente dádiva, possa brotar, crescer e florescer.

Americanos, vocês são parte da Nova Era. Olhem para a frente – esta é a sua tradição.

notas

1
Nota de Maria Elisa Costa – O presente texto foi escrito em 1961, quando nos Estados Unidos a opinião pública, preocupada com o futuro, estava deprimida diante do espantalho comunista. No mesmo ano de 1961 dois fatos ocorreram em simultâneo. No meio do Pacífico nascia um menino de pai completamente preto e mãe completamente branca, de nome Barak Hussein Obama. No meio do Atlântico, o arquiteto Lucio Costa, voltando de navio depois de apresentar sua palestra – “O Novo Humanismo Científico e Tecnológico” – nas comemorações do Centenário do M.I.T., escreveu a bordo uma carta dirigida ao povo americano, que só veio a ser publicada décadas depois (COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 383-384). O discurso de posse do novo presidente dos Estados Unidos é, exatamente, a resposta à Letter to the Americans, 48 anos depois... O discurso de Barak Obama pode ser lido em diversos websites.

[tradução Maria Elisa Costa]

sobre o autor

Lucio Costa (1902 – 1998), arquiteto e urbanista brasileiro formado em 1924 na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Autor do projeto urbano de Brasília e de obras como o Museu das Missões, o Park Hotel Friburgo, o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York, associado a Oscar Niemeyer, entre outros. Foi membro da equipe responsável pela criação do Ministério da Educação e Saúde. Autor do livro “Lucio Costa – Registro de uma Vivência”

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided