Uma arquitetura que, antes de tudo, atende ao desejo daqueles que detêm o poder financeiro, materializa seus sonhos, e funda, assim, um mutualismo entre clientes, seus arquitetos e lojas, que ultrapassa a obra e ganha visibilidade social como expressão de status;
Uma arquitetura que preza a liberdade compositiva e usa todo o repertório formal anterior – mesmo das produções mais recentes – como referências plásticas. Com isso, revigora a noção de estilo, e pretende conferir consistência histórica à sua própria produção;
Uma arquitetura que consegue conjugar a marca pessoal do arquiteto às flutuações do gosto, e é mais resistente ao “novo novíssimo” do que à ressurreição do “velho novo de novo” revivido, agora, como “clássico”;
Uma arquitetura que se funda na tecnologia, no conforto, nas possibilidades da indústria, e na avidez pelos últimos lançamentos e novidades do mercado da construção civil;
Uma arquitetura que supervaloriza as superfícies com intenções narrativas e decorativas – especialmente as fachadas voltadas para as vias públicas –, assim como supervaloriza o espaço privado no interior das edificações, em detrimento do espaço externo, possivelmente público;
Uma arquitetura que se espelha em padrões estéticos e ambientais – tomados como modelo de civilização –, e pretende caracterizar seus proprietários como agentes avançados, representantes desse modelo superior, em seu meio.
Todas essas características parecem próprias de uma parte da produção arquitetônica contemporânea nas grandes cidades brasileiras.
As revistas de arquitetura – em especial aquelas voltadas ao público leigo –, várias obras recém concluídas nos bairros mais valorizados da maioria das cidades de grande porte, e as imagens de divulgação de parte significativa dos lançamentos imobiliários parecem reforçar tal interpretação.
No entanto, as características citadas acima se encontram dentre as “Considerações sobre o Ecletismo na Europa”, feitas pelo arquiteto e historiador da arquitetura Luciano Patetta, publicadas em português em 1987 no livro “Ecletismo na Arquitetura Brasileira”, organizado por Annateresa Fabris e editado pela Nobel e Edusp (1).
Caberia, então, interpretar parte da arquitetura contemporânea como um Neoecletismo, se é que se trata de um neo e não do velho Ecletismo ainda ativo (pois não se trata de revival, mas de survival) e aperfeiçoado como uma espécie de Ultraecletismo?
Mais do que frente a um retorno do Neoclassicismo, não estaríamos frente a uma continuidade do Ecletismo – entendido como fenômeno artístico de longa duração –, que, resumidamente, incorporou a experiência moderna reduzindo-a a mais uma alternativa estilístico-formal?
Desde o início, o movimento moderno colocou-se como único filho legítimo da Revolução Industrial, e caracterizou o Ecletismo como seu rival passadista a ser derrotado. Esse embate, gerado no séc. XIX, se acirrou ao longo das primeiras décadas do séc. XX, anos 20 e 30, quando algumas vanguardas europeias combateram duramente a ideia de uma arquitetura elitista, o historicismo, o ornamento e a noção de estilo. Ao que parece, tal luta foi desigual, talvez muito longa para o pouco fôlego do enérgico, afoito e contraditório movimento moderno. A eventual vitória dependia da multiplicação de esforços, ampliados como força coletiva, capaz de romper a estrutura social e transformar a sociedade pela arte. Para uma pequena, mas entusiasmada torcida, cada golpe dos heroicos modernistas parecia o anúncio inequívoco da vitória final. Mas, vistos à distância, tais esforços podem parecer pequenos face ao abraço lento e sufocante de desdobramentos do Ecletismo.
Hoje, tomando por exemplo a arquitetura construída em cidades como São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto, o Ecletismo parece ter vencido pelo cansaço, minando, lenta e continuamente, a oposição modernista. Nessas cidades – assim como em outras grandes cidades brasileiras –, uma parte significativa da arquitetura contemporânea dita Neoclássica segue princípios ecléticos de composição. Como se, conforme a lógica da indústria cultural, o vórtice eclético houvesse incorporado o oponente em si mesmo, tornando-o mais uma possibilidade plástica de seu próprio caleidoscópico repertório arquitetônico. E não se trata de um fenômeno exatamente contemporâneo, afinal, desde meados do séc. XIX, o Ecletismo parece ter reduzido convenientemente a arquitetura à moda, ao sabor do gosto pessoal, e tal redução agradou plenamente à cultura cumulativa e consumista do mundo moderno.
Mais recentemente, a partir dos anos 50 – com a internacionalização do American Way of Life – a experiência arquitetônica moderna perdeu força, decaiu como “Estilo Internacional”, e foi diluída em meio à produção massiva de edifícios muito mais afeitos aos humores do mercado imobiliário do que às questões éticas e estéticas do racionalismo moderno.
Depois da queda do muro de Berlim, então, os ideais socialistas dos núcleos de vanguarda, definitivamente, não conseguiram mais fazer frente à predominância da onda eclética fin-de-siècle XX que, na virada do milênio e primeira década do séc. XXI, ganhou força com o globalitarismo (2), o predomínio dos interesses do mercado sobre as questões públicas locais, e o entendimento limitado da arquitetura como produto planejado para um certo mercado consumidor.
Não custa lembrar que o Ecletismo, desde meados do XIX, constituiu uma parte significativa da produção arquitetônica do mundo moderno, e nunca houve, em larga escala, o abandono das referências historicistas preconizado pelos arquitetos modernistas, logo reabilitadas por vertentes pós-modernas, por exemplo. No mar de edificações urbanas, edifícios exemplares da arquitetura moderna no Brasil, como o Esther, o conjunto de Pedregulho, e o Copan, não deixam de ser exceções.
O que garantiu sobrevida à arquitetura eclética – e constitui a sua principal diferença com relação aos revivals do séc. XIX –, é que esta não definiu exatamente um estilo arquitetônico, mas sim um procedimento de composição sintético e inclusivo, que se apropria dos vários estilos e elementos identificados pela história da arte e da arquitetura como referências para projetos “originais” afinados com o gosto de quem os adquire.
Atualizado, esse procedimento projetual da somatória de partes constitui o método compositivo de certas vertentes da produção contemporânea de arquiteturas, que, assim como o “moderno Prometeu” de Mary Shelley (1797-1851) (3), entende a beleza plástica no sentido cumulativo – a soma de belas partes deve resultar em um todo ainda mais belo –, e costura suas criaturas.
Parece ter sido justamente a continuidade da relação simbiótica entre arquitetura e poder financeiro, ao longo do séc. XX, que garantiu a perpetuação do Ecletismo como a principal vertente arquitetônica da modernidade. No horizonte, não parece haver motivos para mudanças, o que reforça a ideia do Ecletismo como vigoroso fenômeno de longa duração. Aparentemente, a arquitetura eclética continua a satisfazer os anseios de uma minoria privilegiada, ávida por uma arquitetura imaginativa, fantasiosa, e lastreada na ideia de história e cultura. E uma das caraterísticas centrais dessa arquitetura é conseguir conjugar, com habilidade inigualável, a modernidade e a tradição, incorporando lentamente as oposições como variações possíveis de sua própria estética abrangente.
No interior paulista, por exemplo, casas e edifícios em estilo dito “clássico contemporâneo” ou “neoclássico” reeditam, agora com o dinheiro da cana de açúcar, as antigas casas-sede das fazendas e os palacetes urbanos da segunda metade do séc. XIX, à moda ultraeclética. E se no início do séc. XX, o engenheiro vanguardista Flávio de Carvalho reclamava que os arquitetos de então não sabiam projetar com compromisso construtivo, hoje, o racionalismo construtivo – menina dos olhos do movimento moderno na arquitetura – orienta a aplicação de placas pré-moldadas com relevos ornamentais simplificados e grosseiros a estruturas independentes, em edifícios de planta livre, repletos de sancas de gesso.
Também cabe lembrar que a ambiguidade, a multiplicidade, a efemeridade, a resignificação, a simulação e a liberdade compositiva – características que no discurso contemporâneo pós-estruturalista associam-se à arquitetura contemporânea –, constituem a própria essência do Ecletismo. (4)
Tais reflexões sobre a arquitetura contemporânea, no entanto, não pretendem conduzir à uma resignação quanto a uma suposta condição eclética, mas sim provocar uma revisão crítica de certos princípios do movimento moderno, e uma reavaliação de posições, sem renegar as contradições e paradoxos que lhe são inerentes.
Para tanto, reconsideram-se os seguintes aspectos:
- O entendimento da arquitetura moderna como estilo funda-se na supervalorização das superfícies, dos materiais e das formas arquitetônicas, menosprezando a conformação espacial que a interação entre matéria e “vazio” constitui. Esta é justamente uma das propostas mais radicais do movimento moderno na arquitetura: a ênfase no espaço aberto, contínuo, visualmente ou fisicamente integrado, que rompe os limites tradicionais entre interno e externo. Incapaz de entender o fenômeno cultural dessa estética abstrata da continuidade e do “vazio” – confundida com algo como um estilo minimalista –, a cultura de mercado apega-se à materialidade da arquitetura moderna, aos cheios, à massa, à sua concretude, enfim, que pode ser mais facilmente mensurada, contabilizada e negociada. Daí a imagem estereotipada da arquitetura moderna como caixas de concreto, aço e vidro, sem menção nenhuma às possíveis qualidades espaciais citadas acima.
Tal ignorância mantém condições culturais favoráveis à proliferação de pseudo-arquiteturas modernas, maneirísticamente travestidas em arquitetura contemporânea, já que o que vale é a aparência das superfícies (5). No universo privado da arquitetura elitizada, a superliberdade estilística apregoada pelo ultraecletismo parece uma compensação à falta de liberdade que a condição urbana impõe como resultado das desigualdades sociais. Na moda arquitetônica tudo é possível, até porque o urbanismo parece ter se tornado impossível. Falta liberdade aos que têm muito, e se protegem atrás de muros, assim como falta liberdade aos que não tem nada a perder.
- Há um paradoxo entre a arquitetura e a lógica da substituição de produtos da qual depende a sociedade de consumo. Historicamente, a arquitetura caracteriza-se pela perenidade, pela durabilidade, pela permanência. No entanto, à sociedade de consumo interessam arquiteturas efêmeras – frívolas como moda passageira –, frequentemente renovadas. E se as alterações espaciais, eminentemente arquitetônicas, são inviáveis pelo alto custo, alteram-se as fachadas, as superfícies, os materiais de revestimento. Substituem-se os móveis sem mexer na estrutura, trocam-se os tacos por carpete de madeira, as pastilhas de vidro por grafiato. Em um país como o Brasil, onde a arquitetura é inacessível à grande maioria das pessoas, defender arquiteturas descartáveis pode ser hipocrisia.
- O movimento moderno trouxe à tona a incômoda questão da arquitetura como urbanismo, e ampliou a responsabilidade do arquiteto, para além do lote, à escala da cidade. Foi essa ampliação de responsabilidades que definiu a formação do profissional arquiteto e urbanista moderno. No entanto, nas cidades brasileiras contemporâneas onde o planejamento urbano, quando existe, é geralmente um instrumento de legalização da especulação imobiliária e da injustiça social, parece bastante conveniente que a formação e a atuação dos arquitetos concentrem-se cada vez mais nas superfícies de fachadas e na decoração de interiores – tidas como socialmente inofensivas – do que no cenário de conflitos da “coisa pública”. No imaginário brasileiro, o arquiteto é cada vez menos um urbanista, e cada vez mais um decorador, quando muito com “responsabilidade social”, o que parece ser resultado de um processo muito amplo, com vários desdobramentos, dentre os quais programas populares de televisão que transformam em espetáculo a reforma de residências (6). Enquanto ouvem-se as vinhetas das emissoras alguém pergunta: mas há algum problema nisso?
- Mesmo com todas as contradições internas, parece inegável que o movimento moderno pretendia a deselitização do arquiteto, o que parecia razoável tanto numa perspectiva de um futuro socialista quanto capitalista, e tanto num universo de demandas públicas quanto privadas, pois o crescimento populacional do mundo moderno indicava uma inevitável ampliação da clientela em potencial. Essa deselitização aconteceu, mas parcialmente, apenas. No início do séc. XIX, o profissional que servira até então à antiga nobreza, passou a servir à burguesia, e depois à pequena burguesia, e no Brasil dos anos 50/60, ao estado e à uma classe média esclarecida. Mas, nunca houve uma real democratização do acesso da população ao profissional de arquitetura no Brasil. Ampliou-se a formação de arquitetos e urbanistas, mas não houve um crescimento proporcional da clientela. Formou-se então um paradoxo quanto à função social dos arquitetos: enquanto, de um lado, boa parte da população precisa urgentemente de um suporte de projeto e obra, porque possui recursos limitados e vive em condições precárias, do outro lado, há um excesso de profissionais disputando um espaço exíguo para servir a uma minoria privilegiada para quem a economia (atualmente travestida em sustentabilidade) é mais um item de luxo. O resultado é a desvalorização do profissional, o achatamento dos honorários, a concorrência desleal e antiética, e o predomínio do Ultraecletismo como uma condição contemporânea de sobrevivência no mercado da construção civil. Que condições de trabalho enfrentarão os milhares de jovens arquitetos amanhã?
- Nunca houve consenso quanto ao que se convencionou chamar como movimento moderno na arquitetura. Mas, entre os chamados “arquitetos da liberdade” (7), franceses do final do séc. XVIII, como Boullée e Ledoux, parece ter havido o entendimento de que o belo artístico do neoclassicismo pressupunha a ética da solidariedade. Assim, a construção de uma sociedade democrática e industrial para a qual projetavam bibliotecas, teatros, museus e escolas só valeria a pena se fosse uma sociedade inclusiva. Nas palavras de Katinsky: “a humanidade constituída de indivíduos só progride (e a ideia de progresso se firma ao longo do século), se todos progredirem – eis a nova moral nascida dessa racionalidade...” (8). O Neoclassicismo pode ser interpretado, neste contexto, como uma retomada, consciente e idealizada, de elementos da arquitetura grega, que confeririam fundamentação artística aos princípios democráticos e à vida urbana. Nesse sentido, longe de ser Neoclássica, a arquitetura contemporânea Ultraeclética, lhe é oposta em essência.
É claro que neste terreno só há opiniões, e nenhuma verdade. O que se tem aqui é apenas uma reflexão possível, que não encerra e, quando muito, pode estimular outras reflexões e opiniões sobre o tema. Para finalizar, uma questão: que características deveria ter uma arquitetura adequada aos valores da sociedade de consumo contemporânea?
notas
1
PATETTA, Luciano. “Considerações sobre o Ecletismo na Europa” In: FABRIS, Annateresa (org.). Ecletismo na Arquitetura Brasileira, São Paulo, Nobel e Edusp, 1987.
2
Termo usado pelo geógrafo Milton Santos para expor as perversidades da globalização.
3
O título original do romance de Shelley é “Dr. Frankenstein; or the Modern Prometheus” (1816-18).
4
REIS FILHO, Nestor Goulart. “Crítica do Ecletismo” In: Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1970.
5
Há que se formular aqui também uma crítica às apropriações maneiristas de soluções arquitetônicas da obra de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, que resvalam na velha noção de escola, em seu pior sentido e, por isso, podem reforçar a ideia de que há de fato um estilo “moderno”, um estilo “brutalista” ou um estilo “arquitetura paulista”.
6
Considerando o desenraizamento de muitas das soluções arquitetônicas propostas, como será o resultado de avaliações pós-ocupação em casas reformadas pelos programas de televisão?
7
JACQUES, Annie & MOUILLESEAUX, Jean-Pierre. Les Architectes de la Liberté. Paris: Gallimard, 1988.
8
KATINSKY, Julio Roberto. Renascença: estudos periféricos. São Paulo: FAUUSP, 2002.
sobre o autor
Artur Rozestraten, arquiteto e urbanista (FAUUSP, 1995), Mestre e Doutor junto ao Depto. de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAUUSP, 2003 e 2007). Professor junto ao Depto. de Tecnologia da FAUUSP, São Paulo (2008).