Em tempos atuais a maioria das sociedades enfrenta a desalentadora e angustiante perspectiva de crescente caos urbano, decorrente do obsoleto e contraditório modelo de ocupação urbana implementado desde a era industrial. O cenário de acúmulo de riquezas sem a necessária distribuição equitativa de benefícios sociais acentuou os conflitos intraurbanos. Se para Aristóteles a cidade era o lugar para se viver bem, atualmente, esta se tornou antônimo à qualidade de vida, desprivilegio não só das cidades latino-americanas ou de economias de desenvolvimento tardio, como também das cidades ditas industrializadas e desenvolvidas.
No Brasil, a intensa urbanização pós-moderna das últimas cinco décadas imprimiu uma súbita concentração de indústrias, serviços e trabalhadores, que somado à mecanização do campo e da cidade transformou, não só o déficit habitacional, como a escassez de emprego, nos grandes problemas sociais da urbanidade. O aumento exponencial da população, ao passo que se oferece excedentes de mão-de-obra bem vindos ao sistema econômico, pois achata o valor do trabalho humano e barateia os custos de produção, passou a exercer efeitos sociais contrários à ordem vigente das ideologias burguesas. Para Milton Santos (1), nasce desse fenômeno uma nova forma de movimento social para este século, que se apropria dos meios técnicos de informação e impõe forte pressão social aos poderes políticos e econômicos nacionais. Partindo desse princípio, as ideologias que sustentam “a cidade do pensamento único” (2) passam a sofrer fortes impactos das reações e mobilizações sociais em prol de uma sociedade e um mundo menos unilateral, que considere as especificidades culturais de cada lugar, bem como priorize o ambiente e a equidade social.
A urbanização brasileira nos últimos 50 anos transformou e inverteu a distribuição da população no espaço nacional. Se em 1945, a população urbana representava 25% da população total de 45 milhões, em 2000 a proporção de urbanização atingiu 82%, sob um total de 169 milhões. Na última década, enquanto a população total aumentou 20%, o número de habitantes nas cidades cresceu 40%, especialmente nas nove áreas metropolitanas habitadas por um terço da população brasileira (3).
Todavia, nas últimas décadas assistiu-se a uma desaceleração do crescimento demográfico nacional e mundial, alterando a conjuntura da ocupação humana no território e, conseguintemente, nas respectivas cidades de um mundo cada vez mais urbano. Assim, projeções estatísticas do IBGE que em 2004 apontavam uma população brasileira no ápice com o patamar de 260 milhões de habitantes por volta de 2060, foram revisadas em 2008 (4) e, amparadas por novos cenários demográficos, ponderou-se que a população brasileira atingiria o máximo de 219 milhões por volta de 2039, quando, a partir de então, esse número tenderia a regredir lentamente. Se atualmente a população brasileira é de 185,7 milhões de habitantes (5), com uma população urbana (6) de aproximadamente 160 mi, em 2039 serão mais de 200 milhões de habitantes em áreas urbanas, o que relega às cidades brasileiras um agregado humano de 40 milhões de indivíduos lutando por espaços e oportunidades cada vez mais escassas. Portanto questiona-se, como será a situação das cidades brasileiras frente a essas perspectivas?
Este trabalho pretende apontar parte dos desafios e caminhos para a sustentabilidade urbana nacional, amparado por teorias e conceitos contemporâneos à problemática ambiental, provenientes de pesquisas nacionais e internacionais. Não obstante, deve-se compreender que a noção de sustentabilidade é evolutiva, conforme as relações científicas e tecnológicas de cada época, bem como o surgimento de novas necessidades e demandas humanas, espaciais e ambientais. Nesse contexto, entende-se que o urbanismo sustentável é um conceito em constante ajuste e adequação às necessidades humanas, resultante de experimentos, vivências, pesquisas e interações dos fenômenos socioculturais, econômicos, ambientais, tecnológicos.
Contudo, para os tempos atuais e em virtude das necessidades emergenciais, o presente estudo pretende apresentar modelos urbanos alternativos à lógica vigente e que atenuem a crítica perspectiva do modelo de vida e de cidade capitalista frente ao esgotamento de recursos e ao quadro de acentuação de crises sociais.
A compreensão da sustentabilidade urbana no contexto político atual brasileiro frente à globalização
“A atual crise urbana é também uma crise de constituição de um novo modo de regulação para as cidades – modo este que se quer compatível com as dinâmicas de um capitalismo flexível. Esta crise tem-se alimentado das novas contradições espaciais verificadas na cidade, seja por via de processos infra-políticos (da chamada “violência urbana”), seja por via de processos políticos – aqueles pelos quais se vem crescentemente denunciando e resistindo à dualização funcional da cidade entre áreas ricas e relativamente mais protegidas e áreas pobres submetidas a todo tipo de risco urbano. A busca de cidades “sustentáveis”, inscritas no “metabolismo de fluxos e ciclos de matéria-energia, simbiótica e holística” remete, por certo, à pretensão de se promover uma conexão gestionária do que é, antes de tudo, fratura política” (7).
Como estudo do contexto político nacional no caminho da sustentabilidade, Acselrad faz uma crítica a partir do documento oficial intitulado de “Riqueza Sustentável”, como um balanço dos dezoito meses de governo do atual Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (8), e sua ação político-administrativa nacional focada na inserção passiva do Brasil no âmbito da globalização como um “novo modelo de desenvolvimento”. Não obstante, o autor destaca que tal política é uma repetição da estratégia governamental de incentivo ao agronegócio exportador com a intenção primária de surgimento de tecnologias competitivas para esse mercado. Ainda, contudo, contém traços do termo denominado de “modernização ecológica”, ou seja, a referência a um meio ambiente “de negócios” (conceito de desenvolvimento já implementado pelo programa Avança Brasil, da gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso), ações estas que objetivam a “imagem ecológica internacionalmente favorável” (9).
Tal modelo citado coloca-se como uma faceta ambiental a partir das somas das divisas obtidas através do “ecotursimo” e da monocultura da celulose – esta última intencional e indevidamente apresentada como prática de reflorestamento.
Porém, o neologismo de Riqueza Sustentável fortalece ainda mais uma dicotomia sócio-econômica que perpetua na conjuntura nacional há séculos, pois diante desse modelo se tem o descontentamento daqueles que assistem a riqueza, da minoria, sobre a pobreza, da maioria, dos brasileiros.
“Aos que acreditam que a riqueza e a pobreza são polos conexos de um mesmo processo de distribuição desigual, a ideia de “riqueza sustentável” preocupa mesmo. Isso porque por meio dela somos levados a supor que, ao lado da sustentação da riqueza, vamos continuar observando, com desalento, a um simultâneo espetáculo de “sustentação” da pobreza” (10).
Contudo, o que há ainda, em pleno século XXI, é o arcaico modelo insustentável de exploração a qualquer custo, justificado pelas conformações macroeconômicas. O arquétipo nacional de inserção na conjuntura global, apesar de associar os interesses nacionais ao inevitável “modelo global”, esbarra no fator preponderante de ausência de base social interna que se beneficie também desse sistema, além do setor empresarial exportador bastante limitado enquanto gerador de empregos e distribuição de renda. Ainda há a desconsideração total da “desestruturação predatória” que as culturas de exportação produzem nas economias locais, com o consequente agravamento do “abismo social”. Longe de um modelo sustentável, o que se tem é a desconsideração total de um planejamento urbano e regional calcado em conceitos bem definidos de desenvolvimento sustentável nacional e equilibrado entre as regiões distintas. O jargão de Riqueza Sustentável é um modelo que atende à elite econômica, como sempre atenderam todas as políticas nacionais. Enquanto o agronegócio exportador brasileiro avança suas fronteiras e lucros, financiados em grande parte pelo dinheiro público, a população dessas localidades regionais, suas culturas, agricultura familiar e meio ambiente, são implodidos (ou ignorados) em favor do Biodiesel da cana-de-açúcar (produzido através de extensiva queima da cana, antes da colheita), ou de cultivo mecanizado da soja e algodão.
“Nenhum charme é atribuído às formas não globalizadas de produção. Mais uma vez, prevalecem os velhos cacoetes da retórica desenvolvimentista: dirige-se a mensagem do “desenvolvimento” para o capital, a do ‘social’ para os pobres e a do ‘ambiental’ – basicamente um ambiente ‘florestal’ – para os verdes; notadamente os internacionais (a expansão da soja na Amazônia, afirmou recentemente um responsável da área agrícola do governo, dar-se-á nas áreas degradadas ‘por causa da opinião pública internacional’.
Consequentemente, não se vislumbra nenhuma iniciativa destinada a limitar os mecanismos predatórios da vida social e do meio; nenhum esforço de originalidade que mesmo um programa moderado e pragmático poderia supor, tal como, digamos, o de um ‘agronegócio territorialmente combinado com pequena produção diversificada’, a adoção de ‘inovação técnica com reconhecimento da contribuição inventiva do saber operário e do pequeno produtor rural’ ou até um ‘empreendedorismo ecologicamente condicionado’... ou seja, um discurso que mostrasse a intenção de desacelerar os mecanismos pelos quais, nas últimas décadas, se tem reproduzido tanto a dominação sobre os trabalhadores como sobre seus ambientes” (11).
A estratégia produtiva nacional de crescimento centrado no agronegócio exportador se desmembra, atualmente, em duas correntes aliadas: a que promulga o desenvolvimentismo nacionalista (que vislumbra a criação de emprego a qualquer custo) e a de capital agro-exportador (que concorre à produção de divisas a qualquer custo), este que tem também forte intervenção multinacional. No que atende às questões ambientais, essa atual aliança de interesses critica as “restrições ambientais ao desenvolvimento”, colocando sobre a plenária das discussões a superada ideia de que não se produz um desenvolvimento em equilíbrio com o “meio natural” (claro que essa alegação está sempre alinhada com um discurso elaborado sobre a promoção do desenvolvimento econômico e geração de empregos para a sociedade, entre outras arguições). Os agentes interessados sempre se apropriam de uma campanha pública de que o licenciamento ambiental é lento e burocrático, exercendo a pressão para obtenção de um licenciamento mínimo sobre a alegação de responsabilidade ambiental das empresas. As Leis e a conquista ambiental regida pela discussão social e governamental há décadas passam a ser, dessa forma, instrumentos a serem burlados ou minimizados em favor do “desenvolvimento”. A sociedade (principalmente a parcela do poder privado e público) muitas vezes incorpora essas ideias e defendem a permissividade legal (daí tem-se as diversas Medidas Provisórias e Emendas Legislativas) (12).
O modelo atual apresentado tem seus agentes no mercado mundial, e para Acselrad (13) a força desses agentes reside exatamente sobre essa chantagem locacional, quando esses grandes investidores envolvem ou submetem os que necessitam de emprego e a geração de divisas e receita pública a qualquer custo, a partir da promessa de investimentos, aumento da arrecadação fiscal e/ou dos postos de trabalho para a população. Soma-se a esse cenário o enlace dos agentes econômicos aos segmentos políticos, tendo em vista que a promessa de “desenvolvimento” influencia a permanência ou alteração do quadro político.
No contexto de planejamento nacional, os capitais internacionais ameaçam se deslocar para outros países caso não obtenham vantagens crescentes, liberdade para a remessa de lucros para o exterior, isenções fiscais, estabilidade. Pressionando e subjugando os Estados e Municípios nos quais é menor a organização social (14) ou econômica e maior a necessidade de preservação do patrimônio ambiental e sócio-cultural, pois nessas municipalidades nas quais as instituições são menos participativas e mobilizadas junto à comunidade, tende a haver políticas urbanas e ambientais mais permissivas que, consequentemente, podem gerar impactos irreparáveis no futuro. Esses capitais internacionais selecionam seus investimentos a partir de contrapartidas mais rentáveis (ou melhores propostas ofertadas) como fornecimento de terrenos, isenção de imposto por anos, vantagens ambientais com a flexibilização (15) das Leis Urbanísticas de ordenação do território.
Diante desse cenário, a sustentabilidade urbana reduz-se a um artifício discursivo para dar às cidades um atributo a mais, “ecologicamente correto”, para a atração de investimento através da dinâmica predatória da competição interurbana (16). Dessa forma tem-se um novo modo de regulação do espaço urbano, apontando que (17):
As condições de reprodução do capital são menos coordenadas pelo Estado central e os poderes locais assumem papel proativo nas estratégias de desenvolvimento econômico. A cidade é aí o elo entre a economia local e os fluxos globais, passando a ser assim objeto das pressões competitivas internacionais.
Desenvolve-se uma competição interurbana pela oferta de possibilidades de consumo de lugar, pela atração de turistas e de projetos/eventos culturais;
Desenvolve-se competição interurbana pela capacidade de controlar funções de comando financeiro e comunicacional;
Os processos econômicos passam a subordinar as políticas sociais e de emprego. As políticas sociais são desmanteladas e substituídas por um “empreendedorismo urbano” de cujo sucesso depende o emprego e a renda, ficando os problemas da marginalização social na dependência das iniciativas das próprias organizações da sociedade;
As novas condições de governo dos processos urbanos passam a envolver também atores não governamentais, privados e semipúblicos. A coordenação dos diferentes campos de política urbana pressupõe a instauração de novos sistemas de barganha, aparecendo as “parcerias” como mecanismos de apoio aos mercados em substituição a políticas preexistentes de ordenamento dos mercados.
Enquanto os municípios competem por empresas e indústrias investidoras, cada sociedade permanecerá crescentemente desarticulada e menos participativa. Se de um lado tem-se um corpo técnico e político quase sempre desqualificado nas prefeituras (especialmente nas cidades pequenas e médias), por outro se tem uma população pobre e sem mecanismos de defesa (a cidadania) (18); pois a ausência de educação e conhecimento não permite que essas pessoas obtenham a noção mínima de direitos e deveres na sociedade. Sabe-se ainda que existem bons exemplos de participação cidadã no processo de planejamento urbano e regional, bem como na elaboração e desenvolvimento de políticas públicas em algumas cidades brasileiras, contudo, essa prática qualitativa fica restrita à alguns centros urbanos mais desenvolvidos ou participativos (especialmente, nas cidades da região Sudeste e Sul do Brasil). Contudo, na grande parte do território nacional, as disparidades socioespaciais, econômicas, políticas e culturais acabam por reproduzir um planejamento pouco participativo, ou mesmo fundamentado em posturas coronelistas (19). Nesse contexto, ao se tratar de planejamento urbano e regional integrado, deve-se revisar as posturas e processos de legislação do Ministério das Cidades, tratando as particularidades de forma distinta, e não impondo modelos ou cartilhas rígidas que não se adéquam às conjunturas locais – o que é a antítese da sustentabilidade urbana defendida neste trabalho.
Deste modo, tem-se ainda o fato agravante de que a maioria dos Planos Diretores implementados até 2006 (conforme as imposições legais do Estatuto da Cidade), não resultaram de ações participativas com a sociedade, ou pior ainda, muitas vezes decorreram de um contrato entre a Prefeitura e uma empresa (20). A elaboração de um Plano Diretor, a partir dessa relação contratual, é um risco alto para um planejamento urbano e regional eficaz; tendo em vista que é feita uma Licitação Pública e, assim, ganha a empresa que otimizar melhor a relação de custo-benefício. Em muitos casos não é considerado como pré-requisito, nesse processo, o critério de competência técnica e qualidade de serviço comprovadamente atestado, sem citar ainda as relações políticas suspeitas entre as empresas e o poder público em cada município. Sobre esse aspecto, Silva & Werle descreve que a ausência de estudos técnicos (georreferenciamento, geoprocessamento, cartas geotécnicas, geomorfologia, pedologia, estudos hídricos e ambientais diversos, entre outros), acaba por produzir planos e legislações incompatíveis com as condicionantes locais das municipalidades. Tornando-se o planejamento urbano e regional, contraditoriamente, os causadores de riscos ambientais potenciais para as cidades no futuro.
A busca pelo urbanismo sustentável
“[...] cidade sustentável é o assentamento humano constituído por uma sociedade com consciência de seu papel de agente transformador dos espaços e cuja relação não se dá pela razão natureza-objeto e sim por uma ação sinérgica entre prudência ecológica, eficiência energética e equidade socioespacial” (21).
Sob a compreensão necessária de se pensar e se propor cidades mais sustentáveis (ou menos insustentáveis) para o futuro, uma infinidade de pesquisadores em todo o mundo têm debruçado sobre a criação ou formulação de teorias que proporcionem modos de vida e de ocupação territorial menos impactantes ao meio ambiente.
Contudo, o objeto urbano contemporâneo é protagonista de um processo de espacialização antrópica que vivencia nas últimas décadas grandes rupturas conceituais (22), nas quais a sociedade deixa de ser elemento passivo na definição de espaços e lugares. Na cidade pós-industrial modernista, caracterizado como urbanismo monofuncional, prevalece a ausência do conteúdo simbólico, a perda do sentido socioespacial e de identidade entre o habitante e a cidade. A Carta de Atenas promete solucionar os problemas da sociedade industrial do século XX através de uma nova organização espacial, focado no zoneamento rígido das funções (23) específicas do território urbano, esta que resulta da ênfase à funcionalidade e que determinaria, assim, uma nova cultura urbana encenada pelo homem moderno.
Assim, a partir da classificação de Le Corbusier em formular as quatro funções da cidade moderna: habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito (recrear), e circular; tais projetos de cidade propõem a desagregação de áreas residenciais, de lazer, serviços, comércio, indústrias, etc., nas quais estas seriam conectadas por um sistema viário que elege o automóvel como principal meio de locomoção no tecido urbano. Daí surge a necessidade de se projetar um complexo sistema de vias largas e retilíneas fundamentado na hierarquia, conforme a velocidade, a classificação e o volume de deslocamento. Desse modo, as pessoas são desestimuladas a caminharem ou a utilizarem meios alternativos de deslocamento, de exercício físico e de lazer esportivo (como a bicicleta ou a corrida), face à dispersão urbana e à necessidade de perfazerem longas viagens diárias entre o trabalho e o domicílio.
O planejamento do solo urbano em setores, disperso e monofuncional, não estabelece neste “modelo progressista” sob zoning um diálogo com a dinâmica natural da cidade e seus respectivos lugares, pois impõe seu traçado rígido de quadrícula, desconsiderando as condicionantes específicas da natureza local (24). Altera-se assim a topografia, impõe-se a ocupação de áreas sensíveis às alterações antrópicas, destrói-se a mata nativa em detrimento de um paisagismo cênico e formal, definido pelo desenho artificial da paisagem.
Para Romero esse modelo de cidade “[...] leva os espaços urbanos a uma impessoalidade, um total esvaziamento do espaço público, ou melhor, uma neutralização desses espaços” (25). A autora reforça que a consequência desses espaços é a eliminação de um valor simbólico como referência para as edificações, o que neutraliza o entorno, diminuindo o sentido de vizinhança. Portanto, as pessoas não se reconhecem e passam a negar os espaços que ocupam face à ausência da noção de pertencimento, resultando no abandono do espaço público e na rápida obsolescência urbana.
O traçado urbano medieval é, sob a ótica do urbanismo modernista, considerado ultrapassado, com suas vias sinuosas e irregulares denominadas outrora de “traçados das mulas” por Le Corbusier (26). Tal modelo já nasce sob o estereótipo de “moderno”, industrial, pertencente aos dias atuais. Sob a égide desse repertório urbano, assistiu-se ao espetáculo da expansão urbana, seja de novas cidades (ou mesmo estados e países autointitulados como modernos e progressistas), ou bairros, loteamentos ou intervenções urbanas (em áreas não ocupadas ou já consolidadas).
Essa negação do conteúdo histórico e cultural pregresso compactua imediatamente com a ideologia de imposição cultural-industrial sobre o regional, eliminando as diferenças locais e, consequentemente, as barreiras do mercado global, o que potencializou a atuação dos agentes econômicos internacionais de forma irrestrita, consolidando o poder de influência das grandes potências mundiais e contribuindo para os modelos futuros de consumismo material. Na contramão desse processo, o urbanismo sustentável busca o resgate do regionalismo cultural e histórico, reconhecendo as particularidades e valorizando as relações interpessoais e humanas do cidadão com seu lugar, história e cultura. Tal contraposição conceitual frente aos processos capitalistas de produção e reprodução urbana, busca minimizar os impactos na estrutura social, econômica e ambiental das cidades, reforçando a necessidade de coexistência do local sobre o global, ou seja, um contrassenso à cidade globalizada e internacionalizada enquanto cultura de massa e consumo.
A expansão urbana contemporânea, por sua vez, ainda focada nas teorias urbanas modernistas, se dá sob um modelo de ocupação dispersa, pois as estruturas baseada em zonas impõe a baixa densidade urbana e, consequentemente, a maior ocupação e espalhamento do tecido. O recorte deste pela grande estrutura viária define maior distanciamento entre as vias principais (de alto fluxo e velocidade) e os edifícios (habitacionais, institucionais, comerciais, serviços, industriais). Assim, o pedestre se vê forçado a caminhar grandes distâncias e, caso opte pelo transporte público, terá que caminhar por centenas de metros ou mesmo quilômetros até um ponto de ônibus, ou deste até um edifício ou local desejado. Além disso, o tráfego intenso influencia drasticamente as atividades dos pedestres, pois impõe desconforto e insegurança em seu trajeto. Romero define e exemplifica com exatidão o que seria a “tirania da geometria regular”:
“A convicção de que a população pode expandir infinitamente os espaços do assentamento humano é a primeira forma, falando em termos geográficos, de neutralizar o valor de qualquer espaço determinado. Perde-se o domínio visual da paisagem, estabelecendo-se, então, as negações visuais, que aceitam que a negação sensorial seja normal na vida cotidiana. A negação sensorial implica em não se importar, em não destacar as qualidades do lugar. Na Atenas de hoje, contrariamente a da antiguidade, a expansão sucessiva fez com que se perdessem os marcos visuais (montes) que desde sempre informaram ao homem sua dimensão e situação. Esse não compromisso permite que nossos espaços (cidades, bairros, praças) sejam projetados de qualquer jeito (quando projetados!) ou vandalizados. O que, ao igual que a quadrícula imposta arbitrariamente sobre a terra, raras vezes estabelece uma relação interativa e substantiva com ela. Da mesma forma, todas as características naturais que, em princípio, poderiam ser niveladas, o são, de fato, estabelecendo com isso, em determinadas circunstâncias, uma tirania da geometria regular [...]” (27).
Esse cenário resulta em espaços públicos desérticos e destituídos de vida social, já que a rua não é mais um espaço de convivência e circulação de pessoas na cidade, mas apenas espaço de circulação de veículos. A rua perde seu sentido social e passa a exercer unilateralmente seu aspecto funcional, a lógica de uso e ocupação do solo fica setorizada e agrupada, não mais misturadas como na cidade tradicional. As atividades comerciais se voltam para o interior dos edifícios e a rua perde seu sentido de sociabilidade urbana.
O efeito do automóvel nas cidades, o movimento modernista, em conjunção às políticas urbanas e à transposição de atividades são as piores causas para que se definam os chamados “espaços perdidos” (lost space) considerados hoje, o pior dos problemas urbanos (28). A perda dos espaços públicos, sua privatização, e a segregação espacial das modernas cidades se opõem às morfologias tradicionais. Segundo Trancik (29), na cidade tradicional, a cidade em blocos contínuos direcionam o movimento e estabelecem orientação, enquanto que na cidade moderna a fragmentação e a confusão estrutural da malha urbana proporcionam a desorientação, como mostra a figura abaixo.
Para Trancik (30), nas cidades atuais projetadas dentro dos parâmetros modernos, os planejadores (designers) tentam reparar com pequenas intervenções o espaço urbano fragmentado já constituído, cujo espaço público não fora adotado como partido de projeto e planejamento. O autor critica o processo de desenvolvimento urbano que trata os edifícios como objetos isolados na paisagem, e não como elemento vital na composição da malha urbana, das praças e espaços abertos. Outro ponto essencial em sua análise é a errônea adoção de planos bidimensionais para planejamento do uso do solo urbano, desconsiderando a relação tridimensional entre as construções e os espaços, contrariando o espaço urbano como um volume externo com propriedades formais e de escala.
Como causa do processo de formação de “espaço perdido” (lost space) nas cidades norte-americanas, Trancik (31) descreve cinco fatores mais importantes nesse fenômeno urbano, sendo eles:
1) o aumento da dependência do automóvel;
2) a atitude dos arquitetos do Movimento Moderno perante os espaços abertos;
3) zoneamento e políticas de uso do solo do período de renovação urbana que dividiu a cidade;
4) relutância por parte das instituições – públicas e privadas – contemporâneas em assumir a responsabilidade pelo ambiente público urbano;
5) um abandono das zonas militares, industriais ou de transporte no núcleo urbano.
Assim, segundo Trancik (32), como resposta ao problema, o desenho urbano deve ser implementado a partir de três pontos de desenvolvimento projetual:
1) a partir do estudo dos precedentes históricos e da maneira em que o espaço urbano evoluiu;
2) da elaboração de uma compreensão das teorias subjacentes à concepção do espaço urbano;
3) do desenvolvimento de competências na síntese e aplicação destes no processo de desenho.
“In today cities, designers are faced with the challenge of creating outdoor environments as collective, unifying framework for new development. Too often the designer’s contribution becomes an after-the-fact cosmetic treatment of spaces that are ill-shaped and ill-planned for public use in the first place. The usual process of urban development treats buildings as isolated objects sited in the landscape, not as part of the larger fabric of streets, squares, and viable open space. Decisions about growth patterns are made from two-dimensional land-use plans, without considering the three-dimensional relationships between building and spaces and without a real understanding of human behavior. In this all too common process, urban space is seldom even thought of as an exterior volume with properties of shape and scale and with connections to other spaces”. (33)
A influência que o modernismo teve na morfologia do tecido urbano aliado ao crescimento populacional são parâmetros importantes de avaliação de qualidade urbana. Para Duany, o espraiamento produz um estilo de vida perverso nas grandes cidades americanas, decorrendo no que os autores chamam de “the victims of sprawl”, reféns do estilo de vida do “sonho americano”, tais como: a vida cotidiana confinada, utilização e dependência maciça de veículos (existência de grandes estacionamentos nas áreas centrais e implantação de um complexo sistema de vias), grandes distâncias diárias a serem percorridas entre moradia e trabalho, problemas psicológicos com adolescentes face à dispersão dos equipamentos urbanos e pouca interação familiar, os idosos que ficam isolados nas relações de vizinhança e em face da dependência automotiva (34). As consequências na qualidade do espaço, segundo os autores, também se repercutem; os antigos centros urbanos desvalorizam-se e tornam-se residência para classes menos favorecidas, sofrendo a deterioração da massa construída e o abandono de quem pode sair.
Com o deslocamento das empresas para as periferias a segregação social e espacial é imposta por meio de investimentos públicos em áreas de populações mais favorecidas, em detrimentos dos que ficaram para trás, nos antigos centros urbanos. Perante a indagação de: “como poderemos fazer das cidades melhores lugares para viver?”, Duany afirma que a densidade populacional é um fator importante, quanto maior a densidade, o funcionamento é melhor, porém isto não é suficiente, a escala do pedestre também mantém a vida cívica como a proximidade do centro às periferias contribui para a saúde da cidade (35). Ainda no aspecto da densidade urbana, há limites a serem considerados e que devem ser interpretados numa lógica de pesquisa local e regional, desde as condicionantes naturais e climáticas, ou mesmo socioeconômicas e culturais. Pois cada cidade apresenta características intrínsecas e que podem fugir à regra de uma alta densidade, como a de Barcelona com 300 hab/ha, seja por sua dinâmica urbana, seja por questões climáticas ou posições culturais. Assim, a qualidade urbana não deve oferecer padrões e índices imutáveis, mas compreender as diferenças sob a roupagem da sustentabilidade urbana que valoriza as particularidades.
Sob o título “The Rise of Sprawl Suburban and The Decline of Nation The American Dream”, Duany expressa de forma precisa o declínio do Sonho Americano e seu estilo de vida focado no modelo burguês de dispersão urbana e que, a partir das décadas de 1960 e 1970 passam a sofrer forte reação das comunidades contra o modelo centralizador de planejamento do Estado (36). Este fenômeno denominado de “advocacy planning” resulta na contratação de planejadores pela população organizada, como negativa ao modelo urbano vigente e um desmembramento das teorias no Novo Urbanismo recorrentes nesse período. São observadas nesse modelo de planejamento as questões como a valoração do transporte coletivo e interface regional com o local, o estímulo a um parcelamento do solo e organização de áreas residenciais a partir do conceito de cidade jardim, ênfase à gestão territorial participativa, resgate da compacidade urbana e da relação de vizinhança.
O contraponto desse modelo é proposto por Jacobs (37) – e reafirmado por uma infinidade de pesquisadores (38), – quando esta estabelece que a rua pertence às pessoas, defendendo a permanência de espaços de usos mistos e multifuncionais, e que os mesmos tenham usos diversos durante o dia e a noite, promovendo vida ao ambiente urbano. Para Jacobs, a degradação urbana está ligada à imposição social de espaços monofuncionais, assim, as residências e demais usos devem estar em áreas comuns, estabelecendo-se a diversidade sobre a monotonia, pois a autora coloca que os espaços modernos se tornam rígidos e vazios (39). A multiplicidade formal arquitetônica atribui identidade aos espaços, desde que de forma harmoniosa e natural, pertencente ao seu respectivo tempo e lugar, assim, favorece-se o contato humano e a circulação de maior número de pedestres. O ambiente multifuncional é atrativo às pessoas, que são estimuladas pela diversidade, curiosidade e necessidade de reconhecer o que é novo, e desse vínculo espacial nasce o sentimento de pertença e se estimula a expressão cultural do lugar.
“Em geral os espaços urbanos que admiramos por sua beleza e harmonia estão em regiões que têm alto grau de adaptabilidade ao sitio que o abriga, por exemplo, as ruas acompanham a declividade do terreno, os largos surgem nas interseções ou nas mudanças de rumo dos caminhos. Assim, verificamos nos tecidos antigos, facilmente reconhecidos a partir das praças e cidades, em geral lugares com sentido estético e social que, além da dimensão artística, tinham uma forma de circunscrever um espaço próprio à vida pública. Eram espaços capazes de conjugar interioridade e exterioridade, garantiam a riqueza de detalhes, se deliciavam com a imagem que deles era possível fazer” (40).
Sobre a percepção do lugar, Romero ressalta que na era pré-industrial, para as antigas civilizações, a boa relação da cidade com seu lugar constituiu uma questão de sobrevivência. A exemplo dos assentamentos humanos egípcio, grego, romano, pré-colombiano, ou mesmo feudos da Europa Medieval. Assim, para a autora, o resgate dessas referências históricas da relação entre a civilização e seu modo de ocupação sustentável transcende, necessariamente, estratégias locais de ocupação urbana no âmbito da sustentabilidade, procedendo os seguintes fatores:
- “Os recursos (reciclagem dos resíduos, otimização energética, urbanização sustentável e menos impactante ao meio ambiente, o conforto e ambiência arquitetônica e urbana);
- A paisagem e o lugar (a paisagem e a forma natural do terreno, manutenção da diversidade ambiental, respeito às condicionantes do lugar, reconhecimento da população ao seu espaço urbano e natural);
- O âmbito do público (fomento da vida cívica, proporcionar espaço aberto, seguro e acolhedor, espaços públicos e privados conectados com qualidade, estruturado por passeios, trilhas e parques de domínio público); e
- As relações sociais comunitárias (criam sentido de pertencimento e desenvolvimento comunitário a partir da interação social, participação, educação, estabelecendo uma história de vida coletiva e rica)” (41).
O urbanismo brasileiro enfrenta nas últimas décadas o desafio de criar ferramentas para deselitizar as propostas urbanísticas que tratam da relação entre espaço construído versus comunidade, instituídos de forma propositalmente segregadora e interessada. Enquanto objeto científico e tecnológico, o projeto urbano sustentável no âmbito do conhecimento técnico deve associar a cultura, a história e o social às esferas de sustentabilidade socioeconômica e ambiental, vislumbrando sempre a inclusão igualitária das comunidades e do cidadão, e não tornar este a antítese da cidade.
Considerações parciais
Nesta primeira parte, esta pesquisa versa sobre uma discussão da política urbana brasileira nas últimas décadas a partir de uma caracterização dos sistemas macro-urbanos nacionais e internacionais para, subsequentemente, apresentar algumas teorias e conceitos urbanos vigentes desde o modernismo do início do século XX e suas influências no modo de se propor, planejar e construir cidades até os dias atuais.
Segue-se, na segunda parte deste trabalho, uma complementação às teorias urbanas de interpretação do urbano, frente à sua imagem, suas escalas, à relação entre o espalhamento urbano versus a compactação (ou densificação), apresentando-se métodos e indicadores capazes de traduzir cenários urbanos que orientem a gestão e o planejamento das cidades para o futuro.
Se nas últimas cinco décadas, entre 1970 e 2010, o Brasil dobrou a sua população, crescendo aproximadamente 93 milhões de habitantes (com 93 mi em 1970, e 185,7 mi em 2010), tendo concentrado mais de 80% desse contingente em áreas urbanas na presente década, para os próximos trinta anos essa tendência urbanizadora se acentuará, ao passo que em 2040 a população brasileira será de aproximadamente 219 milhões (42) (com mais de 90% da população nas cidades). Destes, caso as projeções demográficas se confirmem, mais de 200 milhões de pessoas estarão nas cidades (hoje, cerca de 160 milhões habitam as urbes brasileiras), e esse cenário deve ser compreendido pelos urbanistas como ferramenta norteadora de políticas e gestão das cidades, premeditando e planejando ações que possam minimizar ou suprir as demandas socioeconômicas e ambientais.
Cabe aqui ressaltar que as políticas urbanas, na maioria das vezes, estiveram focadas no atendimento a interesses econômicos e/ou políticos em cada período, imersas em ideologias dominantes, desde a interiorização do poder federal através da construção de Brasília na década de 1960 – trazendo para o interior do país, por meio de Juscelino Kubitschek, mineiro e, portanto, fora do eixo Rio-São Paulo – a definição de um urbanismo ideologicamente “moderno”, disperso, segregador e dependente do automóvel, num país que deixaria de lado as ferrovias e hidrovias em favor das rodovias, em consonância com a política de instalação de multinacionais automotivas, bem como das políticas de exploração do petróleo por meio de estatais e empresas privadas (estas, em grande parte, de capital internacional). Contudo, Brasília possibilitou, numa certa escala, a almejada integração nacional que se consolidaria a partir da década de 1970, interiorizando também o desenvolvimento, as infraestruturas, a economia e, enfim, definindo a noção de nação como um todo através do avanço da fronteira capitalista para o Centro-Oeste e Norte.
Não obstante, a integração territorial não foi precedida de uma integração de planejamento urbano, seja em escala regional ou nacional (com exceção de ações setoriais e estratégicas, que nem sempre contemplavam os interesses sociais e de desenvolvimento equitativo). Como atesta Villaça, nos planos, especialmente após a década de 1930, quando há uma dissociação entre o discurso e a ação em políticas públicas, ou mesmo da confusão conceitual entre plano e projeto, há também a dificuldade sobre o método e diversidade de formas possíveis para se realizar planejamento através zoneamentos, planos setoriais, planos sem mapas, planos diretores, projeto de cidades novas, etc. (43). Villaça ainda separa a história do planejamento urbano no Brasil a partir de três períodos bem definidos (44): entre 1875 a 1930 – com os planos de embelezamentos e melhoramentos que destruíram a forma urbana colonial e exaltavam a burguesia, a exemplo de Versalhes, Washington, Haussmann e Pereira Passos; o segundo se situa entre 1930 e 1990, marcando a ideologia de planos técnicos e de base científica; e, por último, pós-1990, em reação ao segundo período, como resposta a evolução, por exemplo, do Plano Diretor (difundido desde a década de 1940 no Brasil, mas previsto como política nacional apenas na Constituição de 1988 e legalizado com o Estado da Cidade em 2001).
Todavia, nesse novo modelo de planejamento recente, politizado e de ideário participativo-democrático, as esferas das discussões se limitam ao municipal e seu poder de ação local – resultante de uma descentralização limitada em parcos recursos distribuídos pelos estados e União às municipalidades –, essencialmente sobre questões urbanísticas, tributárias e jurídicas, sem o necessário enlace com as questões científicas do urbano, da urbanização contemporânea, ou do desenvolvimento cultural, tecnológico, econômico, ambiental, local ou regional.
“As facções da classe dominante brasileira com interesses mais ligados à produção do espaço urbano estão na seguinte encruzilhada. Por um lado, têm cada vez menos condições de fazer planos que revelem suas reais propostas para nossas cidades, e por outro não têm condições de fazer planos que atendam às necessidades da maioria de suas populações. Por paradoxal que possa parecer, a obrigatoriedade de elaboração de plano diretor constante na Constituição de 1988 não apresenta outra coisa senão um discurso com o qual aquelas facções procuram ocultar esse dilema” (45).
Pode-se compreender essa dissociação entre o modelo de planejamento urbano recente e as necessidades da maior parcela da população como uma repetição de um processo político colonial já conhecido, no qual a não inclusão socioeconômica transforma o Brasil em um país de “planos de gaveta”, idealizados para atenuar as crises sociais e não para solucioná-las ou remediá-las de fato. Entretanto, por sua vez a população brasileira ainda aprende a conviver com a sua recente democracia participativa, vigente há 22 anos, mas que carece de envolvimento, conscientização e melhoria das condições socioeconômicas (condições e qualidade de vida, acesso à educação, serviços, etc.), para que seja parte da vida do cidadão, processo este já aprendido e vivenciado pelas nações mais desenvolvidas há muitas décadas ou séculos.
Na esfera das discussões sobre a dispersão urbana brasileira, a questão habitacional é ponto crucial do processo de produção e reprodução da mancha urbana. Ao passo que se compreende o déficit habitacional estimado em 7,9 milhões até 2007, reduzido a 7,2 mi com os empréstimos a partir de recursos do FGTS e do SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), constituindo num fato único na história nacional, segundo Rolnik & Nakano (46), contudo, os autores destacam que o cerne do problema não foi solucionado. Assim, apenas 10% das 500 mil operações de crédito habitacional atendiam ao mercado de habitação formal para populações até 3 salários mínimos (faixa que detém 90% do déficit), outros 169,6 mil contratos atendiam à essa classe, porém metade destes destinavam à compra de material de construção. Ou seja, consolidando ocupações irregulares e autoconstruções sem nenhuma qualidade ou assistência técnica. Por outro lado, 50% dessas novas casas e apartamentos atenderam a famílias com mais de 5 salários mínimos (detentores de 3,8% do déficit), repetindo erros de políticas habitacionais precedentes. O cenário resultante dessa política é o adensamento de favelas e ocupações periféricas irregulares, produção de edificações em desuso em áreas mais centralizadas e especulação urbana custeada por recursos públicos (principalmente, na concretização de empréstimos e oferta de infraestrutura para novas áreas), quando o número de edifícios e apartamentos “encalhados” e/ou “abandonados” com 6,7 milhões de unidades constitui quase o total do déficit habitacional nacional.
A produção de habitações para além dos limites urbanos oferece graves problemas à cidade, pois encarece tributos, aumenta investimentos e manutenção de infraestrutura urbana, dificultando a mobilidade urbana (distanciamento entre habitação, trabalho, serviços e lazer), consolidando a dependência automotiva cada vez mais onerosa (seja ela pública ou privada, individual ou coletiva), aprofundando a segregação socioespacial (pois estabelece o acesso à cidade a partir das condições sociais e econômicas da família, constituindo bolsões de riqueza e de pobreza), além do aumento do impacto ambiental decorrentes, tanto do espalhamento e ocupação de áreas naturais, quanto da produção de resíduos, impacto da malha viária no espaço da cidade ou do aumento da emissão de gases provenientes de combustíveis fósseis.
De fato, o que este trabalho pretende levantar é a indagação sobre a forma de produção, legislação e gestão de cidades sustentáveis para o Brasil, tendo em vista as potenciais obras e operações urbanas para os próximos anos – em especial, com a realização da Copa do Mundo em 2014, e Olimpíadas no Rio de Janeiro em 2016 – pois o que se verifica é que há a repetição de modelos urbanos consolidadamente errôneos (com canalizações e retificações de córregos e rios da cidade, impermeabilização do solo urbano, aumento de autopistas, construções de viadutos e rodovias, etc.), quando o mundo caminha para meios alternativos e de custo-benefício muito melhores à sociedade, minimizando impactos, compactando o tecido urbano e diversificando usos. Há, contudo, no Brasil, uma legislação eficaz na regularização e democratização do território, todavia, os interesses privados continuam a prevalecer sobre o coletivo, a exemplo das ferramentas dos Planos Diretores que nunca se aplicam na cidade legal ou em obras públicas que consolidam a valorização e especulação imobiliária sem nenhuma oposição municipal e coletiva. A cidade sustentável permeia uma série de conceitos e virtudes, inclusive a otimização econômica, contudo, não se deve desvincular de sua constituição as esferas sociais e ambientais, pois os custos futuros tendem a ser muito maiores e o caos urbano-social praticamente irreversível.
notas
1
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro, Record, 2002.
2
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Petrópolis, Vozes, 2000.
3
RATTNER, 2009
4
IBGE. Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade Para O Período 1980-2050 – Revisão 2008. Rio de Janeiro, IBGE, 2008, p. 28.
5
IBGE. Censo 2010. Dados publicados no Diário Oficial da União no dia 04/11/2010. Fonte: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/dados_divulgados/index.php>.
6
Segundo a UN-Habitat (2010), o Brasil apresenta uma população urbana em percentual de 86,5 em 2010, 89,5 em 2020 e 91,1 em 2030. Disponível em: <http://www.unhabitat.org/stats/Default.aspx>.
7
ACSELRAD, Henri. “Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana”, Revista Paranaense de Desenvolvimento, n. 107, jul./dez. Curitiba, Ipardes, 2004, p. 34.
8
Primeiro mandato, de 2002 a 2006; segundo mandato de 2007 a 2011
9
ACSELRAD, Henri. “Descaminhos da riqueza sustentável”. Portal Brasil de Fato. São Paulo, setembro de 2004. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/debate/debate-81.htm>. Acessado em novembro de 2007.
10
Idem.
11
Idem.
12
Idem.
13
ACSELRAD, Henri. “Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana”. Op. cit.
14
Para Acselrad, regiões ou municípios com menor organização social e econômica tendem a ser menos mobilizados e participativos junto à comunidade ou população regional, e conseguintemente, os agentes econômicos e políticos exercem maior influência no processo de planejamento e gestão territorial. Nesse âmbito, os interesses e as especulações econômicas e políticas não compactuam (ou não se equilibram) com o ideário de sustentabilidade social, econômica e ambiental – Tripé da Sustentabilidade –, pois focam as ações em uma das esferas em detrimento das demais.
15
A ideia de flexibilização legal no campo da gestão territorial vislumbra a permissividade e aprovação de leis menos rígidas e protecionistas em prol do desenvolvimento econômico e/ou geração de empregos. Nesse contexto, muitas municipalidades aprovam leis a partir de brechas das leis federais e estaduais, ou mesmo se utilizam da falta de fiscalização e qualificação técnica da gestão local, apoiando-se no ideário de descentralização constitucional das decisões políticas da União para os Estados e Municipalidades.
16
ACSELRAD, Henri. “Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana”. Op. cit., p. 35.
17
Idem, p. 30-31
18
Apesar da crescente participação social nas Conferências das Cidades, deve-se ressaltar que a população brasileira ainda “desenvolve” sua cidadania, esta que fora iniciada em 1988 com a Constituição Cidadã. Assim, cabe discutir se o “modelo participativo” formulado e disseminado pelas Cartilhas do Ministério das Cidades se adéqua às realidades e particularidades de cada municipalidade, região ou Estado. Cabe ainda uma crítica na disparidade representativa de delegados nos conselhos das Conferências e das Cidades, nos quais há uma distribuição: de 42,3% para Poder Público; de 26,7 para Movimentos Populares; de 9,9% para Trabalhadores Sindicais; de 9,9 para Empresários; de 4,2 para ONGs; e de 7,0% para Entidades Profissionais, Acadêmicas e de Pesquisa. Assim, compreende-se que os cientistas pesquisadores, urbanistas e estudiosos do planejamento urbano são pouco expressivos na composição das delegações o que, conseguintemente, resulta em posições e proposições legais pouco técnicas e fundamentadas nas Conferências Regionais e Estaduais, principalmente.
19
SILVA, Geovany Jessé Alexandre da, WERLE, Hugo José Scheuer. “Planejamento urbano e ambiental nas municipalidades: da cidade à sustentabilidade, da lei à realidade”, In: Paisagens em Debate, n. 5, 2007. Disponível em: <http://www.fau.usp.br/depprojeto/gdpa/paisagens/artigos/2007Silva-Werle-PlanejamentoUrbanoSustentabilidade.pdf>
20
Idem.
21
ROMERO, Marta Adriana Bustos. A arquitetura bioclimática do espaço público. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2007.
22
No campo do urbanismo sustentável, há uma ruptura conceitual decorrente principalmente das ciências ambientais, humanas e sociais aplicadas, que resultam em novas posturas teóricas sobre o meio ambiente, o homem e a cidade (especialmente, a partir da década de 1960), iniciadas por meio de teorias urbanas contrapostas aos modelos predecessores (a exemplo do modelo urbano modernista dos CIAMs). Um dos desmembramentos importantes nessa rediscussão do urbano na contemporaneidade se dá através do Novo Urbanismo nos Estados Unidos da América, na segunda metade do século XX, no qual se rediscute a cidade dispersa e seu modelo de espalhamento urbano focado na locomoção automotiva, de altos custos urbanos, com baixa densidade e pouca coesão social.
23
Através da Carta de Atenas, documento resultando do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (1933) realizado em Atenas, Grécia, no qual, através de Le Corbusier, a cidade funcionalista (A Cidade funcional: The Functional City) reduz-se às quatro funções: habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, e circular. Tais conceitos resultam em espaços urbanos setorizado de forma rígida, fundamentado num urbanismo disperso (focado no espalhamento urbano e segregação dos usos e funções), que proporcionam a dependência da locomoção automotiva, além de alto custo de manutenção da infraestrutura, pouca coesão social, obsolescência dos espaços e monofuncionalismo dos conjuntos.
24
ROMERO, Marta A. B.. “Estratégias bioclimáticas de reabilitação ambiental adaptadas ao projeto”. In: Reabilitação ambiental sustentável arquitetônica e urbanística. Brasília, FAU/UnB, 2009, p. 527.
25
Idem, p. 528.
26
Le Corbusier (1887-1965), urbanista franco-suíço precursor do movimento moderno do séc. XX criticava o desenho sinuoso das cidades medievais europeias que, segundo ele, era definido não pelo “caminho do homem” – racional e reto porque sabe aonde quer chegar – mas de acordo com o “caminho das mulas” – irracional e sinuoso – contrastando com a ideia de racionalidade dos traçados modernos que visavam a funcionalidade, a locomoção do automóvel e exaltação geométrica. CORBUSIER, Le. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
27
ROMERO, Marta. Op. cit., 2009, p. 528.
28
CARMONA, Matthew; TIESDELL, Steve. Urban design reader. Elsevier, 2003.
29
TRANCIK, Roger. Finding lost space: theories of urban design. John Wiley & Sons, 1986, p. 6 e TRANCIK, Roger. “What is lost space?”, In: CARMONA, Matthew; TIESDELL, Steve. Urban design reader. Elsevier, 2003, p. 68.
30
TRANCIK, Roger. Op. cit., 1986, p. 1.
31
TRANCIK, Roger. Op. cit., 2003, p. 64.
32
Idem, p. 69.
33
“Nas cidades de hoje, os planejadores se deparam com o desafio de criar ambientes coletivos ao ar livre, unificando para um novo desenvolvimento. Muitas vezes a contribuição dos planejadores torna-se um pós-fato de tratamento cosmético dos espaços que são mal formados e mal planejados para o uso público em primeiro lugar. O processo usual de desenvolvimento urbano trata edifícios como objetos isolados localizados na paisagem, não como a maior parte da malha de ruas, praças e espaços abertos viável. As decisões sobre os padrões de crescimento são feitas a partir de planos de uso do solo bidimensionais, sem considerar as relações tridimensionais entre os edifícios e os espaços e sem uma real compreensão do comportamento humano. Neste processo muito comum, o espaço urbano raramente é mesmo considerado como um volume exterior com propriedades de forma e de escala e com conexões para outros espaços.” TRANCIK, Roger. Op. cit., 1986, p. 1. (Tradução nossa)
34
DUANY, Andres; PLATER-ZYBERK, Elizabeth; SPECK, Jeff. Suburban nation: the rise of sprawl suburban and the decline of nation the american dream. Nova York, North Point Press, 2001, p.117-132.
35
Idem, p. 136-7
36
Idem
37
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
38
ACSELRAD, 1999, 2009; CARMONA et all, 2007; NEWMAN, 1993; GIRARDET, 1997; GUIMARÃES, 1997; ROGERS, 2001; ROMERO, 2000, 2003, 2006, 2007, 2009; RUANO, 1999; RUEDA, 1998, 1999; SACHS, 1993; WIRTH, 2005; entre outros
39
JACOBS, Jane. Op. cit., 2000,
40
ROMERO, Marta Adriana Bustos. Urbanismo sustentável para a reabilitação de áreasdegradadas. Construindo um sistema de indicadores de sustentabilidade urbana. Relatório de Pesquisa. Brasília, FAU-UnB, Dezembro, 2008, p. 528. Disponível em: <http://vsites.unb.br/fau/pesquisa/sustentabilidade/linhas_de_pesquisa/Pesquisa/Pesquisa/universal2006REL%20parte%20I.pdf>. Acesso em: 31/10/2009.
41
Idem.
42
Revisão 2008 - Projeções Populacionais do IBGE para o Brasil. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/series_estatisticas/exibedados.php?idnivel=BR&idserie=POP300>
43
VILLAÇA, Flávio. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: CZABA, Deák; SCHIFFER, Sueli R. (org.). O processo de urbanização no brasil. São Paulo, EdUSP, 2004, p. 174.
44
Idem, p. 182.
45
Idem, p. 240.
46
ROLNIK, Raquel; NAKANO, Kazuo. “As armadilhas do pacote habitacional”, Le Monde Diplomatique Brasil, Ano 2, n. 20, Março. São Paulo, Instituto Polis, 2009, p. 4.
sobre os autores
Geovany Jessé A. da Silva é Doutorando e Pesquisador da FAU/UnB, Mestre em Geografia pela UFMT-MT, Arquiteto e Urbanista pela UFU-MG. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT. Líder do “Grupo de Estudos Estratégicos e de Planejamento Integrados” – GEEPI-UFMT/CNPq, e pesquisador do Grupo de Pesquisa “A Sustentabilidade em Arquitetura e Urbanismo” da FAU-UnB e do “Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e ao Urbanismo” – LaSUS/FAU-UnB.
Marta Adriana Bustos Romero é Professora-Doutora e Pesquisadora da FAU/UnB, Pós-Doutorado em Landscape Architecture pela Pennsylvania State University - EUA, Doutorado em Arquitetura pela Universidade Politécnica da Catalunha – Barcelona/Espanha, Mestre em Planejamento Urbano pela FAU-UnB, Arquiteta e Urbanista. Líder do Grupo de Pesquisa “A Sustentabilidade em Arquitetura e Urbanismo” da FAU-UnB e coordenadora do “Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e ao Urbanismo” – LaSUS/FAU-UnB. Integra ainda os Grupos de Pesquisa “Espaços Externos, Clima Urbano e Conforto Ambietal - Espaços” e “Urbanismo Bioclimático e Sustentável - URBIS”, ambos da UFRJ.