Cremos tenha sido o crítico de arte e ensaísta argentino Damián Bayón o primeiro a escrever sobre as condições em que ocorreu a produção artística do Novo Mundo face à experiência milenar europeia (1). No Velho Continente, em suas variadas regiões, a arquitetura, como as demais artes em geral, se desenvolveu num continuum onde, com muita precisão, a produção de bens se compartimenta em definidos períodos, cada qual com suas características locais singulares. Isso permite aos historiadores e críticos distinguir com exatidão os artefatos daqui e dali; a sucessão de eventos significativos, cuja cronologia e locus demarcam etapas de um caminho lentamente percorrido pelo homem sensível às coisas da estética. A eles, é fácil percorrer a seqüência dos estilos e das técnicas no universo europeu.
Na América, ao contrário, como nos disse Bayón, em aula na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, todos os gostos e estilos desaguaram misturados de roldão na produção artística do mundo americano, cujos artífices ignoravam candidamente o que fosse antecedente ou conseqüente naquela barafunda de estilemas trazidos sem maiores explicações. Os primeiros agentes culturais aqui arribados, tenham sido engenheiros militares, ou arquitetos inseridos no corpo das ordens religiosas, ou mestres de risco reinóis avulsos, todos eles, com diferenciadas informações ou experiências, trouxeram em suas bagagens as lições de seus mestres e, outrossim, esmaecidas pela distância, as recomendações dos tratadistas do renascimento e do maneirismo enquanto guardavam em suas saudades as aparências das antigas capelas, igrejas e mosteiros românicos de suas velhas aldeias rurais, de Braga, do Porto ou de Lisboa. E já cerca de duzentos anos após Cabral, se alastrou pelo litoral canavieiro o barroco introduzido no Reino pelos arquitetos e escultores italianos. Depois, ainda, com data marcada, encerrando o tempo colonial, chegou-nos o neoclássico francês pelas providências do corpo diplomático da corte fugida justamente de Napoleão, em 1808. Foi o estilo oficial do nosso Império.
Essa a circunstância brasileira onde, no cenário edificatório anterior a dom João VI, na maioria das ocasiões, uma manifestação estilística qualquer, uma modinatura específica, um agenciamento ou um partido arquitetônico determinado dificilmente poderão indicar sozinhos, sem o auxílio de documentos, a época de sua ocorrência ou mesmo situar uma construção numa cronologia qualquer. Aquele mesmo citado rei, como veremos, mal chegado ao Rio, por exemplo, inaugurou a igreja de Santa Cruz dos Militares, magnífico exemplar maneirista calcado na Gesú de Roma. Os estilos aqui chegaram verdadeiramente em tempo real de seu percurso cronológico só a partir dos franceses da chamada Missão.
Entre nós, aqueles acima citados agentes culturais, atuando nos principais centros econômicos do litoral, sobretudo na costa açucareira nordestina, tiveram suas influências absorvidas empiricamente pelos construtores locais através da observação e cópia de obras destinadas ao Governo, à Igreja, à classe dominante agrária ou aos comerciantes enricados. Os exemplares arquitetônicos sucessivos, cada vez mais afastados dos modelos originais, acabaram propiciando “contaminações” e despoliciamentos das normas estilísticas sugerindo um singular ecletismo precursor daquele histórico do século XIX.
Essa disseminação aleatória de estilos ou de maneiras de fazer, ao longo do tempo, acompanhada de uma diluição das normas acadêmicas e dos aspectos “eruditos” fez surgir uma arquitetura de alto interesse, onde o lado antropológico não pode ser olvidado porque tem presença marcante explicando justamente aquela “circunstância americana” relativa à arquitetura onde o esquecimento das regras propicia obras de recriação do maior valor. De fato, essa constatação nos fez lembrar da reação de um certo editor italiano ao título de uma obra a ele oferecida falando em “arte no Brasil”, exigindo que a publicação somente tratasse de “l’arte del Brasile”, porque naqueles dias comemorativos dos 500 anos da descoberta da América, o que realmente interessava aos estudiosos europeus era conhecer a contribuição original do artista brasileiro pertencente a uma distinta sociedade miscigenada na qual também índios e negros tiveram atuação relevante (2).
De fato, nas comemorações à volta do feito de Colombo, o que despertava curiosidade era justamente aquilo que o artista apartado na América devolvia ao europeu a partir do seu isolamento digerindo os preceitos ibéricos arribados com as caravelas. O que deveria ser mostrado a todos seriam, por exemplo, adaptações ao meio ambiente, ao clima, à nova sociedade mestiça a partir da inventividade do autóctone que sabia coisas da Europa só por ouvir dizer.
Com efeito, de início, muitos fatos aconteceram modificando a arquitetura trazida pelos recém-chegados. Vieram ao Brasil as pessoas mais variadas, do norte ou do sul lusitano, sabendo procedimentos os mais diversos, ou não conhecendo nada de mais, de modo que nunca houve um consenso sobre como agir coletivamente no quadro das construções naquele ambiente falto dos materiais mais comezinhos na pátria distante. Aqui, tão somente haviam de aproveitar dos recursos do meio ambiente e se utilizar do saber fazer dos índios até a definição dos sincretismos inevitáveis e do uso dos demorados e sucessivos meios vindos da pátria distante. Foi um começo difícil.
No processo cultural brasileiro aconteceram situações singulares que definiram e qualificaram a arquitetura nacional desde os tempos de Colônia até hoje. Deste modo, assim pensamos, temos que identificá-las e acompanhar suas existências pelo tempo afora no vasto Brasil. Numa metodologia de abordagem dessa produção “americana” chamemos essas situações singulares de “conjunturas”, a nosso ver, em número de quatro, a saber: Primeira Conjuntura, a relativa ao meio ambiente; Segunda Conjuntura, a própria da nova sociedade; Terceira Conjuntura, a proporcionada pelas regras, ordenações do reino, constituições, códigos, posturas municipais e breves papais referentes às atuações da Igreja no Brasil colonial; Quarta Conjuntura, em síntese, seria aquela à volta dos procedimentos referentes às atividades dos arquitetos e construtores face às três conjunturas anteriores, quando, também, estará presente a intenção plástica. Enfim, nesta Quarta Conjuntura estaria definido o partido arquitetônico, que é a consequência formal, tangível ou visível daqueles condicionantes e determinantes atrás arrolados.
Certamente podemos relacionar variadas ocorrências peculiares de cada uma daquelas conjunturas numa tentativa de buscar a viabilidade dessa ideia de substituir o modo atual de dividir nossa história da arquitetura em períodos ligados a ciclos econômicos ou a determinadas políticas administrativas. Essa aproximação via conjunturas, assim julgamos, permite sejam estudadas e analisadas concomitantemente as obras arquitetônicas desde os tempos de muito antigamente até hoje em todas as ilhas culturais participantes do multifacetado arquipélago da civilização brasileira.
Resumindo, nesta Primeira Conjuntura, vemos que, desde o início, os variados materiais disponíveis na natureza necessariamente não propiciaram, em todo o território, um só tipo de construção. Expliquemos: no litoral havia rochas e calhaus em abundância e fácil obtenção de cal, tirada dos sambaquis e das conchas do mar. Daí, sem titubeios, essa escolha do muro contínuo de pedra entaipada sobre o chão de areia incompressível. Em São Paulo, por exemplo, no planalto, ao contrário, pouca pedra, cal muito cara penosamente importada das caieiras jesuíticas de Cubatão, que exportavam somente o que sobrasse da solicitação santista ou vicentina. E quanto à madeira, dificuldades de transporte para os campos de Piratininga. Disso tudo resultou a natural adoção da taipa de pilão, a exclusiva técnica dos paulistas, usada continuamente no mundo bandeirante por três séculos e meio. Em Minas Gerais, por sua vez, por motivos vários, as construções em geral, fora as igrejas importantes levantadas em substituição às modestas capelas iniciais, eram de taipa de mão, algumas de excelente fatura, mormente aquela de carpintaria aprendida na reconstrução de Lisboa depois do terremoto de 1755.
No sul, as grandes florestas entremeadas de araucárias, ao serem devastadas pelos colonos alemães e italianos, já no século XIX, sugeriram as construções inteiramente de tábuas, inclusive as coberturas de plaquinhas lembrando a distante ardósia. Num segundo estágio, os tedescos aperfeiçoaram aqui a arquitetura de enxaimel, que veio a caracterizar a produção daquela operosa população chegada nos tempos ainda de D. Pedro II.
Hoje, a grandeza continental do Brasil e a disforme distribuição de recursos em paisagens variadíssimas justificam a permanência, em diversos locais, dessa natural seleção de modos de fazer, vinda dos tempos de Colônia. Somente nos grandes centros é que vige a tecnologia moderna, com o império do concreto armado e com o emprego de material importado.
A questão das condições meteorológicas também está presente na primeira situação e sua importância foi fundamental nas determinações arquitetônicas. Já de início, todos os europeus chegaram a uma constatação: em seus lugares de origem, o rigor do clima a ser enfrentado era o do inverno gelado e, para tanto, acendia-se o fogo, que, por sinal, também era usado para cozer os alimentos. Daí, desde os romanos, a pedra do lar, do trafogueiro no âmago da moradia, recebendo a fogueira aquecedora da família reunida; outrossim em seuslugares de arribada na Colônia, quase que não havia a sucessão das estações, sempre a temperatura era amena fora dos dias quentes do verão que custava a passar e, porisso, sempre que possível, os fogões e panelas fora de casa.Em muitos lares, mais de uma cozinha; a de dentro só para os alimentos de cozimento rápido, para aquecer a sopa e ferver a água do mate, do chá de congonha em São Paulo. Cozinhas dispersas,quase que ao ar livre. A contribuição efetiva da casa européia à morada brasileira foi a permanência do dormitório sob a cumeeira do telhado e da cama que, lentamente foi expulsando a rede de dormir dos índios. Dissotudo, por exemplo, a impossibilidade da mera transposição da casa integral açoriana com seu fogão central para as colônias dos ilhéus em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Aqui a situação era outra. Aqui, a casa, em vez de ser aquecida por dentro, deveria ser refrescada por fora.
Essa afirmativa é veraz e responsável pelo alpendre doméstico. Realmente, na Europa e, portanto na Península Ibérica, as casas nunca foram alpendradas. Esse tipo de cobertura existiu na Espanha e em Portugal unicamente nas capelas rurais em conseqüência da antiqüíssima determinação canônica, que impedia a presença de pessoas não batizadas no templo e, para eles, foi então reservado um lugar abrigado fora da nave, onde ficava a pia batismal. Seria esse alpendre uma versão popular ibérica da galilé das basílicas da Igreja de Roma (3).Versão popular repetida à exaustão no Brasil, comopodemos ver naspinturas e gravuras, notadamente nos trabalhos de Franz Post, no Pernambuco holandês do séculoXVII e ler nas atas da Câmara de SãoPaulo daquele mesmo século. No núcleo bandeirante das duas primeiras centúrias todas as igrejas urbanas eram alpendradas (4). Resta-nos apenas a pequena igreja de São Miguel, de 1622. Sem dúvida, o alpendre sombreador das paredes mestras da moradia brasileira veio-nos da Índia, precisamente do bangalô, a construção rural com a totalidade do telhado prolongado para fora da edificação destinado a fazer sombra, não só às paredes, mas também, para proteger do sol seus moradores aproveitando a brisa refrescante. A notícia do alpendre chegou-nos trazida pela carreira das Índias, cujos navios, em suas aguadas nos portos do Rio e Salvador, igualmente deixavam marfins, porcelanas esmaltadas, lacas, jacas, mangas e carambolas.
A nosso ver, esse alpendre volteando a casa copiado dos bangalôs(nada a ver com o bungalow americano)indianos ficou circunscrito às construções rurais do século XVIII e XIX da atual região litorânea fluminense, nas sedes dos antigos engenhos de açúcar e residências solarengas à volta do Rio de Janeiro. Talvez também tenha aparecido aqui e ali em algum engenho baiano, mas sem se tornar um modismo regional. Depois dessas citadas ocorrências, o alpendre firmou-se na arquitetura rural brasileira em geral, só na frente da construção, como área de intermediação entre o público e o privado, com o esquecimento de sua função primeira de moderador da temperatura interna da casa. Transformou-se em zona de receber e de acesso à capela sempre presente. Em São Paulo, ao contrário, a arquitetura domiciliar vernácula do mundo bandeirante repudiou o alpendre porque era conveniente que a grossa parede de taipa de suas moradas guardasse o calor da osculação solar para aquecer as dependências à noite. O alpendre à volta da construção só apareceu em São Paulo com o café, levado por famílias baianas fugidas da seca, que assolou a Chapada Diamantina nas últimas décadas do século XIX (5). Hoje, é moda inconteste.
O calor também foi o responsável pelas treliças das janelas e muxarabis, sobretudo das casas urbanas, herdeiras diretas da arquitetura árabe/berbere vigente em terras do sul português por cerca de seiscentos anos. Essas rótulas e balcões gradeados apareceram pelo país todo havendo em São Paulo, Minas, Rio, Pernambuco ou Maranhão exemplos magníficos desse recurso amenizador da canícula, pois permitia a passagem permanente da brisa pelos interiores da casa. Aliás,certo especialista em etimologia de expressões árabes disse-nos certa vez que muxarabi significa exatamente “local onde é refrescado o pote de água”, função que justifica o balanço daquele balcão treliçado para ser cruzado lateralmente pelo vento que sopra pela rua afora. Uma questão de física aplicada: a evaporação da umidade da superfície da cerâmica molhada faz a temperatura cair e a água se resfriar. É bom que se diga, somente agora com a mais avançada tecnologia é que nossa arquitetura moderna conseguiu edifícios climatizados de modo a driblar satisfatoriamente os rigores do calor tropical, soluções caras, no entanto, e exclusividade dos ricos. Enquanto isso, os pobres e remediados têm que se contentar com as inventividades ligadas à física e o curioso é que alguns recursos interessantes, como os quebra-sóis, inspirados por Le Corbusier, saíram de moda, como se fosse pecado usá-los no lugar do ar condicionado e dos vidros espelhados e protetores dos raios ultravioletas da vida. E hoje nos esquecemos dos esforços quase que desesperados de Oswaldo Bratke para chegar a soluções baratas e viáveis de problemas de ventilação, isolamento térmico e iluminação natural de casas, sobretudo as operárias, nas instalações da Serra do Navio, no Amapá, por volta de 1949/50. O pior de tudo, ao que parece, é que suas experiências e lições foram de pouco alcance, se não olvidadas (6).
A Segunda Conjuntura refere-se primordialmente, na arquitetura, aos programas de necessidades relativos às construções em geral e respectivos desdobramentos mercê de sua permanente evolução advinda do progresso e da mudança de hábitos manifestados ao longo do tempo, sobretudo nos anos seguintes à Revolução Industrial. Na nova sociedade instalada na Colônia, a partir de 1808, novos usos e costumes foram adaptados aos novos cenários, sugerindo agenciamentos de singulares partidos arquitetônicos. Foi na roça, entretanto, desde os primeiros dias, que as condições de vida plasmaram as formas dos complexos rurais.
Nos ermos das distantes propriedades agrícolas instaladas em enormes sesmarias e nos sítios formados em terras simplesmente apossadas, o dia-a-dia, além de monótono, era falto de notícias frescas, as “novidades” ali chegadas há muito já haviam ocorrido. Daí, bem-vindos os forasteiros. Os maus caminhos, raros os carroçáveis, tornavam as viagens muito demoradas e de obrigatórios pernoites. Os pousos de tropas nas estradas do interior foram programas surgidos apenas no século XVIII para facilitar o transporte de gêneros aos arraiais mineiros; para levar o açúcar ituano a Santos e, na época do imperador jovem, para transportar o café até os barcos ancorados serra-abaixo, do Rio de Janeiro para o sul. Mas, nos tempos da produção só de subsistência e de diminuta circulação de mercadorias, como dissemos, as viagens a pé (viajar à paulista, uma pessoa atrás da outra, como os índios) e a cavalo eram realmente vagarosas e a hospitalidade nas fazendas manifestou-se naturalmente como uma obrigação e não como virtude ou mera cortesia. É claro que tais hóspedes viajores variavam de categoria social. Raramente surgia o escoteiro estranho a caminho de seu destino – viajava-se em comitivas, havia os escravos e índios “administrados” carregadores de bagagens variadas acompanhando seus senhores brancos ou mamelucos significativos no estamento dos mandões. Os subalternos dormiam no chão embaixo das árvores, sob alguma coberta da sapé. Os iguais ao dono da casa em dependências ao pé da moradia ou acopladas à própria construção, conquanto independentes “da mais família”, como escreveu o padre Manuel da Fonseca em sua biografia do jesuíta Belchiorde Pontes (7). Por outro lado, um breve papal proibia terminantemente o exercício das práticas sacras como a missa, o casamento ou o batizado promiscuamente em dependências domiciliares. Daí, a razão de serem as capelas coloniais independentes, sem acesso direto ao interior da residência. O dormitório para receber pessoas de fora e a capela independente, então vieram a ser, nos tempos de Colônia, dois elementos básicos do programa da casa rural, não só paulista de serra-acima, mas verdadeiramente nacional, quem sabe, americano. Assim, ficou definida uma área construída dedicada à intermediação entre o público e o privado quase sempre determinada por um alpendre de distribuição chamado pelo Brasil afora de “pretório”, “corredor”, “varanda”, ou “copiar”. Alpendre térreo ou elevado, ao longo do pavimento assobradado. Note-se que tal agenciamento deu-se, também, nas regiões a beira-mar ou próximas do litoral, nos engenhos de açúcar do nordeste, onde os caminhos foram substituídos pelos cursos d’água navegáveis que levavam a produção aos portos de embarque.
Nas fazendas, a presença da mão-de-obra negra escrava foi fundamental para dar continuidade ao fracionamento do programa em várias construções satélites no quintal da morada principal desde os primeiros dias. Pelos motivos do clima, do regime de trabalho, pelo cardápio e pela guarida aos de fora, o programa de necessidades da casa roceira, de início, determinava outrossim a mencionada zona de contato entre o público e o privado (hóspede / capela) separada radicalmente do citado quintal, isto é, das mulheres, mucamas e das crianças. Mulheres reclusas, inclusive nas cidades, liberadas de sair à rua só com destino às missas, sempre embuçadas por compridos xales arrodeando toda a cabeça como no mundo muçulmano do Algarve e Andaluzia. Mulheres que espionavam as visitas pelas frestas das portas. O mundo das mulheres era o quintal murado de taipa ou cercado por grossos paus fincados no chão; o mundo confinado das construções satélites; do moinho; do monjolo; do telheiro do fabrico de farinha; do rancho do fogão para derreter o toicinho; para fazer o sabão de cinzas e de desidratar o caldo da cana até transformá-lo em melado e, depois, em rapadura. Quintal das “árvores de espinho” (cítricas em geral) dos marmeleiros, das parreiras, jabuticabeiras, bananeiras; dos talhões de cana para o açúcar da casa; do mandiocal para a farinha cotidiana e mais canteiros para as couves, amendoim, batatas várias, “toda sorte de carazes”, como disse Anchieta nos primeiros dias de São Paulo. Vasto quintal dos chiqueiros e das galinhas. Das roupas corando ao sol. Enfim, estão aí, as descrições dos “bens de raiz” nos inventários dos primeiros séculos mostrando toda a dispersão das pequenas construções pelo quintal, cada qual com sua função, ao contrário do que acontecia no reino distante. A habitação unifamiliar do fazendeiro totalmente isolada dentro do complexo agrícola é uma constante do Brasil colonial. Somente dos finais do século XVIII em diante é que vemos reinóis recém-chegados, sobretudo em Minas, Goiás e litoral do Rio a Santos, instalando engenhos de açúcar anexados às suas moradias. Eram eles ainda simplesmente isentos da cultura americana. Tudo como nos montes alentejanos.
Somente a presença do escravo é que poderia justificar o programa dos grandes sobrados urbanos do litoral, mormente aqueles nordestinos e, de modo especial, os do Recife. Lúcio Costa, em um de seus memoráveis textos, nos sugeriu e imaginamos que o negro escravo, dentro de casa, fosse elevador carregando pelas escadas íngremes de altos degraus pessoas achacadas, água vinda dos chafarizes, gêneros alimentícios, lenha para os fogões instalados no último pavimento, às vezes, no quarto andar; era esgoto, levando os barris repletos de excrementos senhoriais a serem despejados no rio ou até no mar; era ventilador abanando os brancos suarentos e subindo vidraças pesadas; enfim o negro-guindaste fazia a casa funcionar.
Ainda na Conjuntura Segunda, podemos, na modernidade, vislumbrar longínquos reflexos do tempo da escravatura condicionadora de programas se atentarmos à presença da chamada “edícula” nos quintais das residências urbanas das classes rica e média até hoje dependentes da mão-de-obra da empregada doméstica. Comuníssimas nas grandes cidades até os dias da Segunda Guerra Mundial e até agora planejadas nas cidades do interior, essas dependências englobando quarto de empregada, banheiro, lavanderia, quarto de passar ou garagem constituem uma exclusividade, ao que parece, somente brasileira ao segregar essas funções “subalternas”. Esse isolamento daquelas instalações de serviço logo manifestou-se outrossim nos primeiros edifícios de apartamentos fazendo surgir em suas plantas uma clara distinção de circulações, a dos familiares moradores titulares e a dos empregados, faxineiros e entregadores de encomendas. Até os elevadores eram separados e com acessos distintos. Ampla pesquisa em bibliografia estrangeira comprova essa outra exclusividade brasileira que, somente há poucos anos, tende a desaparecer, por variados motivos que não precisam ser aqui relembrados (8).
A Terceira Conjuntura refere-se a breves papalinos, determinações canônicas; às posturas, resoluções ou normas das câmaras municipais; aos códigos sanitários estaduais a até às ordens ou resoluções constitucionais. Quanto às determinações de caráter religioso, já lembramos aqui o caso da exigência de isolamento das capelas particulares em relação à área habitacional das sedes das propriedades rurais. Ordenações do Vaticano também tiveram reflexo nos espaços urbanos desde o momento em que passaram a exigir distâncias mínimas entre os conventos das variadas ordens religiosas, o que explica a trama viária de muitas cidades do Novo Mundo, como o caso do celebrado “triângulo” formado pelas ruas centrais históricas de São Paulo devido à localização final dos franciscanos, antes instalados na Rua Direita, em sua ermida pioneira, hoje igreja de Santo Antônio (9). Nos dias de Colônia, as câmaras municipais, principalmente em Minas, timidamente procuraram normalizar as construções procurando uniformizar os frontispícios das casas, tentando uma “harmonia” impeditiva de personalismos; tentaram equalizar os afastamentos e alturas das portas e janelas das construções encarreiradas nos alinhamentos das ruas, até mesmo nas ladeiras, fato que causou muita controvérsia e desobediências várias. Queriam inclusive continuidade dos espigões em construções distintas, coisa de fato desejável naqueles tempos de técnica construtiva muito limitada nos desvios de águas pluviais.
Foi nos primeiros momentos da República positivista, no entanto, que as construções em geral passaram a ser policiadas pelo Estado através de leis e códigos disciplinadores não só do modus faciendi das obras mas também como usá-las mormente atentando às questões da higiene. Pela primeira vez, no Brasil, a lei entrava dentro das casas dizendo como elas deveriam ser, contrariando os direitos sagrados de propriedade equacionados pela Revolução Francesa (10). Agora, as áreas mínimas e os pés-direitos dos cômodos teriam suas dimensões regulamentadas. Todas as dependências deveriam ser providas de janelas garantidoras do ar e da luz natural. Adeus às alcovas escuras e abafadas. Pisos e paredes ladrilhados nas cozinhas e banheiros. E assim por diante. Os palacetes do ecletismo republicano, então, inauguraram a postura envaidecedora e semostradora garantida pelo isolamento total no centro do lote e pelas quatro fachadas igualmente ajaezadas de ornamentação espantosa. E tudo dentro da lei. Leis nem sempre benquistas, principalmente quando pretendem regular gabaritos e taxas de ocupação. A história de nossa arquitetura moderna sempre está a mostrar periodicamente solicitações ou providências destinadas a abrandar os rigores da legislação, cujos autores às vezes estariam pouco atentos aos alcances financeiros embutidos entre os artigos e parágrafos bem intencionados. Leis ultrapassadas, quiçá incômodas. Essa história nunca poderá ser contada com clareza porque nossa arquitetura nestes tempos não depende só dos arquitetos mas também de empreendedores, cujos modos de agir nem sempre estão dentro da ortodoxia desejada quando vislumbram perdas ou ganhos significativos. Isso tudo para não falarmos da corrupção pura e simples que não precisa, pelo contrário, de revogação de prescrição legal alguma. E as cidades crescem à mercê dos caprichos do capitalismo.
A Quarta e última Conjuntura reúne as questões do saber fazer, os problemas da arte de construir, as intenções estetizantes e a adoção de estilos pelo Brasil afora, ontem e agora na modernidade. Evidentemente, os praticantes ou profissionais nela envolvidos em suas atuações, de modo necessário, têm que se louvar nos recursos e orientações vigentes, depois de vistas as determinações ou condições expressas nas Conjunturas anteriores. Disso tudo, resultará aquilo que chamamos de partido arquitetônico, isto é, a formalização definitiva do bem arquitetônico.
Nesta Conjuntura Quarta, ao longo do tempo, podemos perceber algumas linhas de conduta ou melhor, ações coletivas dirigidas por posicionamentos comuns face a estilos; a determinadas soluções, agenciamentos ou a modos de satisfazer certos programas, que podem levar à identificação de soluções paravernaculares regionais no universo cultural brasileiro. Algumas dessas correntes poderão ser exemplificadas rapidamente.
A primeira delas, talvez a mais importante em nossa arquitetura colonial, foi a sob responsabilidade dos engenheiros militares atuantes sobretudo na costa brasileira. Como indica a sua denominação vieram aqueles profissionais edificar fortificações e, é bom que se diga, tais obras eram pretensamente defensivas mas, primordialmente, tinham a função de demarcar a posse portuguesa do território brasileiro. Naqueles dias da recente descoberta das armas de fogo, as construções militares estavam a atender uma nova determinação: nada de torres ou elevações, agora, muralhas baixas confundindo-se com o horizonte, deixando de ser alvos fáceis. Uma nova tecnologia construtiva surgiu e logo os engenheiros italianos se especializaram para seguir as condições impostas pela chamada pirobalística. Foi nos tempos dos Felipes de Espanha, que reinaram em Portugal no período de 1580 a 1640. Nessa ocasião, toda a defesa dos portos e das divisas foi reformulada com o total abandono dos castelos e torres medievais por serem inúteis. Tiburcio Spanocchi, celebrado engenheiro militar italiano, com outros conterrâneos, foi o orientador dos fortificadores ibéricos. Assim, os engenheiros militares portugueses, não só foram introduzidos às modernas concepções fortificatórias, às novas técnicas construtivas, comotambém conheceram o estilo maneirista, a nova linguagem dos italianos, que antecedeu ao barroco. Estilo aplicado nas construções do interior das fortalezas e em obras militares em geral, que passou a ser considerado indissociável da atuação profissional. A arquitetura dos soldados portugueses nãoconheceu o barroco, foi diretamente das lições dos tratadistas como Vignola para o neoclássico histórico, que começou a reger o gosto arquitetônico do Brasil imperial mercê da atuação da Missão Francesa. Exemplo significativo desses alto na História da Arte está na igreja de Santa Cruz dos Militares, no Rio de Janeiro, projetada no último quartel do século XVIII pelo brigadeiro José Custódio de Sá e Faria francamente inspirada na Gesù de Roma, que teve como último arquiteto Giacomo Della Porta. Foi inaugurada no início do século seguinte por D. João VI, já nos dias da aceitação do neoclássico de Napoleão. Na mesma época, em São Paulo onde imperava a taipa de pilão, técnica pobre de poucos recursos, o engenheiro militar João da Costa Ferreira, ao projetar o quartel de milícias da cidade, pespegou no eixo de simetria da fachada um frontãozinho triangular, único estilema de seu repertório maneirista permitido pela terra socada entre taipais. Pequeno frontão que levou alguns desavisados a chamá-lo de proto-neoclássico quando, na verdade, ainda tinha vínculos com o renascimento (11).
Os engenheiros militares, no isolamento da Colônia, naturalmente foram impelidos a prestar auxílio à população ajudando a construir os edifícios definitivos em substituição aos primitivos exemplares sincréticos levantados com materiais e técnicas emprestadas dos habitantes locais, sobretudo conventos e igrejas. Nesta hora não podemos nos esquecer de Francisco Frias de Mesquita, o operoso militar do século XVII, que projetou e construiu, além de fortalezas, igrejas e conventos pelo litoral do país, de São Luís do Maranhão até o Rio de Janeiro passando pelo Rio Grande do Norte e Salvador. Obra de maior significado na arquitetura religiosa de Francisco de Frias, como também era conhecido, é o mosteiro e igreja de São Bento, no Rio. A partir dele e de recomendações que deixou sobre novas técnicas construtivas é longa a história de sucessivos engenheiros militares ajudando aos colonos levantar paredes, cobri-las e pintá-las com maestria. Devido a isso, por exemplo, em São Paulo, o engenheiro militar João da Costa Ferreira foi elogiado pelo governador-general Bernardo José de Lorena, que mencionou ter sido ele amado pelo povo devido à sua atuação ensinando a todos como construir bem com as disponibilidades locais. Não só foram importantes no saber fazer, também os engenheiros militares influíram no gosto, e participaram da difusão de estilemas do maneirismo. O brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim, homem do conde de Bobadela, no Rio, por exemplo, é considerado o difusor das vergas de arco abatido nas janelas e portas nos meados do século XVIII a partir de seu projeto do Palácio dos Governadores de Ouro Preto. Enfim, cabe àqueles técnicos o mérito de disseminarem pelo Brasil uma só arquitetura, de Porto Alegre a Belém dando a razão ao engenheiro francês Louis Léger Vauthier, no Recife, em meados do século XIX, quando proferiu um chute veraz: “Quem viu uma caza brasileira, viu todas” (12).
Igualmente aos engenheiros militares, religiosos travestidos de arquitetos também deram a sua contribuição levantando obras assemelhadas constituindo um rol de exemplares magníficos distribuídos pelo Brasil, mormente no Nordeste. É o caso dos mosteiros e templos franciscanos portando galilés, cuja obra prima é o Convento de Santo Antonio, de João Pessoa.
O uso da madeira nas estruturas autônomas, na impossibilidade do emprego por variados motivos dos muros contínuos de pedras, tijolos ou mesmo de taipa de pilão, fez surgir nessa Conjuntura Quarta construções de bastante interesse arquitetônico e antropológico. É o caso das casas palafitas da Bacia Amazônica; das construções de taipa de mão; das moradias de tábuas dos poloneses do Paraná; das casas ditas de enxaimel dos alemães de Santa Catarina e das construções da colônia japonesa do Vale do Ribeira, em São Paulo.
Dentre os exemplos acima citados, certamente, a taipa de mão participando de estruturas autônomas de madeira é a modalidade que mais variações construtivas apresentou ao longo do tempo pelas múltiplas regiões do país. No entanto, tais alternativas podem ser divididas em dois grandes grupos: as surgidas antes do terremoto de Lisboa, em 1755, e as aperfeiçoadas a partir daquele cataclisma. Expliquemos. As construções de grande envergadura de madeira lavrada não eram o forte da arquitetura portuguesa e conseqüentemente os paramentos de taipa de mão não apresentavam nenhum requinte memorável e, diga-se de passagem, o ferramental disponível para o manuseio de madeirame era bastante primitivo. Toda essa vulgaridade técnica foi passada à Colônia na bagagem dos emigrantes lusos. Foi na reconstrução da capital do Reino que se tomou conhecimento das estruturas “eruditas” dos países nórdicos da Europa e de lá é que chegaram a Lisboa os carpinteiros para ensinar o uso de estruturas então imaginadas para minorar ou evitar os desmoronamentos das construções em outros prováveis terremotos. Assim, os engenheiros militares e seus carpinteiros aprenderam novas maneiras de lidar com a madeira usando novas ferramentas e novas sambladuras. Na segunda metade do século XVIII, os governadores-generais das variadas capitanias e seus séquitos de técnicos puderam trazer à Colônia novidades como essa da nova arquitetura de madeira junto a outras inovações nascidas nos primórdios da Revolução Industrial. Esse novo sistema construtivo recebeu aqui o nome de “pau-a-pique”, justamente por possuir paus roliços verticais cravados ao mesmo tempo nos baldrames e nos frechais, enfiados em furos idênticos e largos possíveis graças aos recentestrados, os sucessores das verrumas de diminuto diâmetro. Essa foi a carpintaria levada para Minas Gerais e para as fazendas de café de São Paulo, não sendo entre nós, no entanto, correta a denominação portuguesa “gaiola” por não ser a armação destinada a enfrentar terremotos.
Por falar em estruturas autônomas, o contraponto dos muros contínuos, nesta conjuntura quarta, há muito o que dizer sobre o concreto armado. Ele chegou-nos como novidade depois de bem instalado o ecletismo arquitetônico sempre apoiado nas alvenarias, sobretudo de tijolos. Em SãoPaulo, em 1907, o arquiteto Victor Dubugras projeta pequena estação de estrada de ferro em Mairinque usando concreto entremeado a vergalhões de ferro em tetos abobadados com nervuras aparentes chamando a solução de “concreto armado” e com tal nome foi seu trabalho criticado e elogiado na revista da Escola Politécnica daquele ano.Já há algum tempo essa denominação se referia à presença de peças metálicas, até de arames, justapostos a argamassas variadas, como hoje existem as “argamassas armadas” de grande sucesso. Na verdade, o que agora conhecemos por concreto armado foi regulamentado e praticado com rigor científico, na capital paulista, pelo engenheiro-arquiteto Hippolyto Gustavo Pujol Jr., professor da Escola Politécnica, em cujo laboratório de ensaios de materiais de construção fez o primeiro acompanhamento de obra, aliás, projeto de sua autoria, na Rua Direita, em 1912 (13). De início, o concreto armado não teve a oportunidade de se popularizar com rapidez devido, principalmente, às dificuldades de obtenção de aço e cimento importados. Aqui, a demanda do calcáreo apropriado era muitíssimo maior que a incipiente produção nacional, que, na verdade, somente a partir da segunda metade dos anos 1920 foi capaz de satisfazer às necessidades do mercado em expansão desde o armistício de 1918, quando foram retomadas as obras em geral, sobretudo as ferroviárias com os seus túneis e viadutos. A nossa produção de cimento antecedeu cerca de duas décadas a primeira grande siderúrgica, a de Volta Redonda, conseguida graças a Getúlio Vargas em suas tratativas políticas com o governo americano no fim da Segunda Guerra Mundial em 1945. Desta data em diante, o concreto armado deslanchou entre nós quando assumimos um saber fazer excepcional, graças ao qual nossa arquitetura moderna se tornou referência mundial.
Desde os tempos iniciais, das pioneiras feitorias e das atividades dos donatários, até hoje, muitas águas passaram sob várias pontes e nesta Quarta Conjuntura relativa às operações, aos procedimentos, às atuações dos arquitetos temos que levar em conta que a globalização lentamente está a esmaecer o multicolorido panorama cultural mundial, fazendo desbotar os caracteres regionais tendendo a tornar todo o ecúmeno numa só paisagem cinzenta. No Brasil, nas grandes cidades e nas metrópoles, como São Paulo, vemos que programas de necessidades em geral, que as técnicas construtivas e que as apreciações estéticas já estão definitivamente atreladas às soluções universais gestadas nos ditos países ricos. Assim, essa nossa ideia de abordar a história da arquitetura brasileira através das quatro conjunturas agora alvitradas parece que seja factível somente até o fim de nosso tempo colonial, pois a partir de 1822, da Missão Francesa e do seguinte ecletismo desenfreado trazido pelos imigrantes, donos de novas técnicas e portadores de novos materiais, teve início o processo de universalização de nossas condutas. Isso é verdade, mas não podemos nos esquecer, no entanto, que a enormidade do tamanho do nosso país continua acolhendo regiões ou nichos, como gostam de dizer, em que as condições permanecem as mesmas do passado. Seja como for, julgamos que a brasilidade ainda existe nas atuações individuais de certos arquitetos, em cuja bagagem mental perduram herdados ou adquiridos resquícios da tradição nacional ou vestígios de nosso passado americano. Arquitetos talentosos em cuja obra se estampa a criação singular, eminentemente pessoal e única, na qual, no entanto, é percebida a nossa nacionalidade. Se Oscar Niemeyer fosse um arquiteto japonês jamais teria concebido a obra-prima que é a igreja de São Francisco de Assis da Pampulha. Este é um simples exemplo para encerrarmos esta mensagem e todos estão convidados a descobrir o Brasil no vasto repertório de nossa arquitetura moderna.
Comentários sobre as imagens
1. Casa do Padre Inácio, Cotia, São Paulo
Esta residência de c. 1753, construída pelo padre Rafael de Barros, mostra bem como está envolvida com as conjunturas mencionadas no texto desta comunicação:
a) suas paredes de taipa de pilão já nasceram diretamente de valas abertas no próprio solo, ao contrário da prática ibérica que sempre exigiu baldrames de pedra ou de tijolos. Tal fato deu-se devido sobretudo à falta de cal no Planalto. Essa adaptação acabou exigindo terrenos planos em nível onde as águas pluviais estariam impedidas de provocar erosões danosas.
b) sua cobertura de quatro águas estruturalmente é definida por quatro grandes vigas de madeira que, apoiadas nos frechais das paredes da sala quadrada, encontram-se no vértice da pirâmide onde trabalham a compressão; estando prevista, inclusive, flambagem de gosto oriental. Ao que sabemos, não houve naqueles tempos modelos ibéricos semelhantes. No sul de Portugal, por exemplo, os telhados de quatro águas eram (e ainda são) destinados a cobrir apenas pequenos cômodos providos de abóbadas de tijolos, em cujos rins apoiavam-se as delgadas e curtas peças de madeiras livres de qualquer tipo de esforço a não ser suportar o peso das telhas.
c) sua planta, da qual resulta um frontispício de coincidente simetria paladiana, é sem dúvida singular : uma grande sala semi-obscura arrodeada de camarinhas que hoje passam por dormitórios. Na verdade não sabemos com exatidão qual teria sido o programa norteador daquela casa, como das demais habitações bandeiristas.
d) do referido programa, no entanto, identificamos dois determinantes próprios das condições locais, responsáveis pela existência da varanda central, naquela época denominada “corredor”, na verdade, um vestíbulo direcionador dos passos. Tal dependência dava acesso à capela e ao quarto de hóspedes, dois itens programáticos exclusivos da solidão do mundo colonial de serra-acima.
2. Palácios e capelas
Daquelas antigas determinações canônicas exigindo separação das capelas domésticas das acomodações residenciais naturalmente surgiu nas moradas solarengas o partido arquitetônico localizando o pequeno templo algo afastado da construção principal, mas a ela visualmente comprometido através da pérgula, passagem coberta ou, então, plataforma elevada. Essa constatação está presente na casa do século XVIII do bispo do Rio de Janeiro. Tal solução comparece também no projeto do Palácio da Alvorada, em Brasília, onde Oscar Niemeyer coloca a capelinha no mesmo piso elevado da residência presidencial criando um relacionamento harmonioso indissolúvel. Nos tempos de Juscelino Kubitschek não havia naturalmente aquelas determinações canônicas e nem os futuros presidentes iriam exigir tal construção religiosa. Pensamos que essa composição arquitetônica nasceu simplesmente de um impulso do subconsciente desejoso de firmação nacionalista assumindo um partido próprio de nosso passado; sem querer, a busca e garantia de uma identidade brasileira, como o nome da cidade.
notas
NE
O presente texto foi apresentado em conferência no 1º Seminário Latinoamericano Arquitetura e Documentação, organizado pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Centro de Documentación de Arquitectura Latino-americana – Cedodal, ocorrido em Belo Horizonte, em 2008. Publicação original: LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Uma nova proposta de abordagem da história da arquitetura brasileira. In CASTRIOTA, Leonardo. Arquitetura e documentação – novas perspectivas para a história da arquitetura. São Paulo, Annablume/IEDS, 2011, p. 275-292. A edição das imagens é de Victor Hugo Mori, também autos das fotos e desenhos.
1
Dentre outras obras deste autor, ver em especial: BAYÓN, Damián. Sociedad y arquitectura colonial sudamericana. Barcelona, Gustavo Gili, 1974.
2
Depoimento de Pietro Maria Bardi a respeito da edição de L’arte del Brasile, Arnaldo Mondadori Editore, Milano, 1982; publicação baseada na obra Arte no Brasil distribuídaemfascículospelaEditoraAbrilcomtextos de José Roberto TeixeiraLeite e Carlos A. C. Lemos.
3
Ver: SAIA, Luís. O alpendre nas capelas brasileiras. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 3, Rio de Janeiro, 1939; LEMOS, Carlos A. C. Capelas alpendradas de São Paulo. In LEMOS, Carlos A. C. Notas sobre a arquitetura tradicional de São Paulo. 3. edição.São Paulo, FAU USP, 1992.
4
Sobre o assunto: LEMOS, Carlos A. C. Organização urbana e arquitetura em São Paulo dos tempos coloniais. In: História da Cidade de São Paulo – a cidade colonial. Volume 1.São Paulo, Paz eTerra, 2004, p. 145.
5
A respeito do alpendre domiciliar, ver : LEMOS, Carlos A. C. Casa paulista.São Paulo, Edusp, 1999, p. 23 e 220.
6
Bratke contou-nos seus problemas no Amapá, inclusive da rejeição inicial por parte dos operários de suas casas consideradas inabitáveis devido ao calor ali reinante. Demorou muito para que chegasse a soluções satisfatórias. A respeito: SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme Mazza. Oswaldo Arthur Bratke.São Paulo, Pro-Editores, 1997.
7
FONSECA, Manuel da. Vida do venerável padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. São Paulo, Melhoramentos, s.d.
8
LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc. 2. edição.São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 153.
9
Vernossotrabalho citado nanota 4 e,também, otextofundamental “Subsídiospara oestudo dainfluência dalegislação naordenação e naarquitetura dascidades brasileiras”,teseparaobtenção decátedra naEscolaPolitécnica da USP,em 1966, de autoria de Francisco de PaulaDias de Andrade.
10
A respeito da legislação republicana, ver: LEMOS, Carlos A. C. A República ensina a morar (melhor).São Paulo, Hucitec, 1999.
11
LEMOS, Carlos A. C. No Brasil, a coexistência do maneirismo e do barroco até o advento do neoclássico histórico. In: ÁVILA, Affonso. Barroco, teoria e análise,São Paulo, Perspectiva, 1997, p. 233.
12
VAUTHIER, Louis Léger. Casas de Residência no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 7,Rio deJaneiro, 1943.
13
CARAM, André Luís Balsante. Pujol, concreto e arte.São Paulo,Banco do Brasil, 2001, p. 126.
sobre o autor
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações, à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. (Perspectiva, 1976); A casa paulista (Edusp, 1999).