Introdução – uma terceira via?
Num momento de extrema lucidez, Rem Koolhaas escreveu que o que os arquitetos fazem normalmente é criar soluções racionais para problemas irracionais. Por mais contraditória que essa situação seja, ela reflete uma verdade: a arquitetura de uma sociedade irracional (ou assim percebida pelos seus críticos) não consegue se libertar da mesma, abraçando o paradoxo como parte de seu modus operandi, mesmo que o arquiteto chamado a atuar não compartilha dos mesmos valores que a sustentam. Isso é, uma arquitetura que se realiza e se torna obra construída, apesar da irracionalidade do programa que a gerou.
Essa constatação já levou um profissional/teórico como Robert Venturi, ainda nos anos 70 do século passado, quando publicou seu influente Complexity and Contradiction in Architecture - um ensaio erudito sobre os limites da razão (diga-se modernista) – a demonstrar a insuficiência da racionalidade quando aplicada aos corriqueiros fatos de uma sociedade capitalista, baseada no consumo de massa. Em seu outro trabalho de peso, Learning from Las Vegas, Venturi exibe sua percepção das estratégias utilizadas na arquitetura comercial nos EUA, a arquitetura dos strips comerciais como uma maneira de defender soluções híbridas que pudessem conjugar racionalidade (o galpão) e representatividade (a ornamentação ou fachada decorada, voltada para o espaço público), no lugar do duck, o pato, ou seja, uma forma total para a edificação, capaz de comunicar a função do edifício como algo íntegro (representando a aposta modernista para um projeto global da sociedade).
Essa discussão no mínimo interessante representou um dos pilares teóricos da pós-modernidade, que explorou as contradições entre esse total design moralizador (baseado numa ideologia de socialização dos benefícios de uma sociedade de massa) e uma sociedade burguesa voltada ao consumo, frívola e gulosa, que atingiu essa socialização por outro caminho, deixando os capitalistas com grandes lucros e uma imensa classe média com um padrão de vida jamais visto na história da humanidade.
Coincidindo com as dificuldades econômicas e a ausência de liberdade encontradas no mundo socialista (quem pode ser a favor de um “admirável mundo novo”?), essa revisão tinha a clara intenção de buscar um novo caminho, dentro do capitalismo avançado, para a arquitetura, o que levaria, entre os anos 70 e 90, a fenômenos como os Five Architects (a racionalidade adaptada ao consumo da elite americana) e o New Urbanism (bairros tradicionais no lugar dos prawl suburbano). Dois exemplos da capacidade do capitalismo de consumir ideias até opostas e torná-las partes do big business.
Uma alternativa à sociedade “irracional” (ou seja, de consumo sem limites) foi aquela representada pelos arquitetos que, ao contestar seus aspectos perversos, abandonaram a arquitetura in toto, através da recusa (racional) de colaborar com as suas práticas. Um exemplo disso é o nosso Sérgio Ferro, que vem se dedicando ao ensino, à pintura e à elaboração de textos críticos sobre a crueldade nos canteiros.
Outra foi a de abraçar a “lógica” do consumismo, o que levou a uma arquitetura que se alimentou fartamente dessa complexidade e contradição, tornando-se, na maioria das vezes, um pastiche de estilos e formas incongruentes, propositadamente conjugadas no melhor estilo venturiano. Fazendo, diga-se de passagem, enorme sucesso na classe média americana e entre os novos ricos brasileiros, especialmente no setor residencial. Aqui não há porque mencionar exemplos, por todos conhecidos.
Finalmente, se ergueu, não sem dificuldades iniciais, uma terceira via entre o “suicídio” e a “prostituição”, representada por uma volta ao moralismo modernista, ou seja, a busca de uma sociedade melhor através de uma “volta para o futuro”: a retomada da modernidade inacabada (Habermaas), e, mais recentemente, a questão da sustentabilidade vem reforçar essa visão de um mundo melhor, no qual se exige da sociedade (e de suas arquiteturas) respeito à natureza terrestre e uma consciência sobre o legado para futuras gerações.
Os “limites ao desenvolvimento”, defendidos pelo Clube de Roma ainda nos anos 1960, lançaram um inédito desafio ao capitalismo triunfante: desenvolvimento sustentável. Hoje, após quatro décadas de lutas pelo ambientalismo global, se um projeto de arquitetura não abordar de alguma forma esse tema, isso é considerado quase uma heresia.
No entanto, continuamos a nos defrontar com uma situação incômoda: o que constitui uma arquitetura de qualidade, quando nós defrontamos com produções tão variadas como as de Tadao Ando ou Zaha Hadid, para citarmos apenas dois vencedores do Prêmio Pritzker?
De um lado, uma arquitetura de extremo purismo formal, baseada numa geometria ortogonal de cunho euclidiano, que remete invariavelmente ao funcionalismo e ao domínio do coletivo, e do outro a adoção de formas fluidas e aleatórias, que, segundo a autora, representam o pós-fordismo e a era das redes da informação, interpretadas de forma bastante pessoal.
Esse artigo sugere que, entre uma arquitetura da razão coletivista e outra da emoção individualista, há um terreno fértil para arquiteturas que poderíamos chamar de lógicas. Ou seja, projetos (e obras) capazes de resistir a uma discussão centrada na adequação ao caso específico e a decorrente preocupação com justificativas, no interior do próprio projeto, sobre as escolhas realizadas pelo autor ou os seus autores ao longo do processo de elaboração de seu trabalho. Levando, assim, para uma solução sustentada por um paradigma representativo da realidade social e bem resolvida com relação a um determinado programa, um determinado sítio e seu contexto urbano, que se sustenta como uma resposta contemporânea para uma questão atual.
Para atingir essa lógica arquitetônica, é necessário, em nossa opinião, fundir as duas abordagens, gerando uma arquitetura cuja complexidade inerente corresponde à da vida, com a convivência de razão e emoção, ou a “emoção e a regra”, título de uma bela obra de Domenico di Masi.
A arquitetura de uma terceira via.
1. A arquitetura da razão
Todo estudante de arquitetura é obrigado, em algum ponto de sua educação, a ter que se explicar sobre o que o levou a essa ou aquela solução em seu projeto. Situação normalmente incômoda, essa é repetida pelas escolas do mundo afora e assume, sempre, um caráter analítico, quase inquisitivo, e, não raras vezes, inibidor.
Filha conceitual da revolução da razão, iniciada após séculos de obscurantismo religioso na Toscana no século XVI, a racionalidade passou por várias evoluções até chegar aos nossos dias: renascimento, iluminismo, positivismo, cientificismo. Em seu caminho, nomes de filósofos ilustres, como Descartes, Spinoza e Hegel, e político-sociais como Rousseau e o próprio Marx, fora os homens que fizeram a revolução científica e sua nova sociedade, de Leonardo a Einstein, de Newton a Hawking.
O método científico, baseado na progressão de uma hipótese para uma tese, através da comprovação matemática, veio embasar rodo desenvolvimento técnico-científico dos últimos quinhentos anos, levando o homem para a Lua e para a magia dos computadores e a Internet.
A transição de um paradigma essencialmente físico-formal como o da renascença para o funcionalista, que ainda predomina em muitas arquiteturas atuais e é o herdeiro do lado normativo do movimento moderno, se deu através de rupturas com os tipos arquitetônicos tradicionais, abandonados a favor de soluções espaciais baseadas numa clara definição de funções, demarcadas pelo programa e separadas pelo projeto.
Enfim, uma arquitetura que se espelhava na máquina e na indústria, ou que se tornava uma clara representação dessas, gerando novos fenômenos como os oitocentistas Crystal Palace e a Torre Eiffel e, já adentrando o século XX, os primeiros arranha-céus norte-americanos em Chicago e a produção serial de casas populares (Siedlungen), preconizada por arquitetos como Ludwig Hilberseimer, além dos edifícios de vidro de Mies van der Rohe a Bauhaus de Walter Gropius. Essas obras deixaram clara essa articulação entre arte e indústria, arquitetura e a máquina, um novo tempo.
Arauto desse movimento, o primeiro Le Corbusier e sua defesa do alemão Zeitgeist, traduzido em francês como Esprít du Temps, apresentou uma série de casas e projetos nos quais o ângulo reto, a fachada branca e as colunas de seus pilotis em secção circular falavam de uma arquitetura racional, oriunda dos prismas puristas do oitocentista Ledoux, na época da revolução francesa. A razão que imprimiria uma nova ordem social e econômica, despida de excessos ornamentais e tendo seu tempo marcado pelas novas velocidades atingidas por locomotivas, automóveis, navios e aviões, estaria assim sendo representada pela arquitetura de cunho funcionalista. A arquitetura recuperaria, assim, parte do brilho que os engenheiros construtores de silos e transatlânticos haviam definitivamente retirado dos arquitetos das catedrais.
Modulo, modulor, série, partido, economias de escala e ritmos acertados com esse novo espírito dos tempos entrariam, assim, no DNA de arquiteturas consideradas por usuários um tanto frias e abstratas, mas capazes de gerar obras primas do próprio Le Corbusier, como sua Ville Savoye, a bela produção californiana de Richard Neutra, a casa modernista de Warchavchik, os edifícios de Rino Levi, as primeiras obras de Oscar Niemeyer, que porém, ao atingir o sucesso, se distanciou do ângulo reto e enveredou para outras expressões, curvilíneas, inspiradas na natureza e no corpo feminino, distanciando-se do rigor racionalista de suas primeiras obras.
O translado do branco ascetismo dos anos 1920 ao concreto aparente das décadas de 1950 e 1960 não trai a linha mestre dessa escola do pensamento: a razão dirige o destino humano e o diferencia do natural, já os meios usados são variáveis. Através dessa racionalidade são possíveis significativos ganhos de prazo e custo, clareza analítica e rigor sistêmico, constatáveis na produção de obras racionais, nas quais as operações são essencialmente quantitativas e todo elemento supérfluo é eliminado (a abominação de Adolf Loos da ornamentação Beaux Arts é exemplo de racionalidade modernista).
Essa arquitetura da razão, de certo minimalismo e economia de meios e recursos, fez sua história e ainda se encontra em produções contemporâneas importantes, devidamente atualizadas, como podemos achar na obra do citado Tadao Ando e – porque não? – do nosso Pritzker, Paulo Mendes da Rocha. O reino do less is more.
A própria pressão exercida pela tecnologia avançada dos nossos tempos – por exemplo, a da informática, com a universalização do uso do CAD nos projetos de arquitetura –, união da exatidão com a rapidez (duas das ‘Seis propostas para o Próximo Milênio’ de Ítalo Calvino), traz para o campo racionalista uma cobrança adicional para a busca da síntese, de uma nova objetividade, uma reaproximação ao campo da engenharia e da razão pura.
Sua intrínseca simplicidade leva, porém, a fáceis aplicações, gerando obras de recursos formais limitados, nas mãos de autores menos dotados: as nossas cidades são hoje repletas de obras “racionais”, erguidas em função dos recursos menores necessários para sua execução. Isso tem levado às críticas daqueles que gostariam de ver respeitados outros valores, mais qualitativos, como os simbólicos e os expressivos, até para diferenciar edifícios entre si e retirá-los da mesmice e a mediocridade.
A arquitetura da razão tem, portanto suas limitações expressivas e, num plano conceitual, seus adversários: diria que a principal é a arquitetura da emoção, situada no outro lado do espectro do campo arquitetônico, o reino das formas e da expressão.
2. A arquitetura da emoção
Quando Gaudì chacoalhou a oitocentista sociedade catalãcom suas obras oníricas, que abandonavam a linguagem beaux arts e abraçavam a aparente aleatoriedade da natureza, nada mais fez do que explodir os sentidos humanos para além dos limites da razão, para aquele território do inconsciente que tanto fascinou Freud, seus seguidores e seus pacientes no mundo afora, até os dias de hoje.
No meio de uma revolução industrial que já varria o planeta, Gaudí foi capaz de erguer sua casa Batlò e seu Parque Guëll, além da inacabada catedral, que até hoje se impõem por sua força expressiva e inventividade construtiva, cenários de um mundo surrealista que precedeu de algumas décadas a arte de Dali, outro grande artista espanhol, já no século XX.
É o irracionalismo, uma corrente filosófica e intelectual que vem se opondo à dominação técnico-científica com um olhar mais abrangente dos fatos humanos, originada na Grécia de Pitágoras e Empédocles, incluindo no novecento desde Darwin aos filósofos Hobbes e Weber, a fenomenologia de Husserl e, mais recentemente o pensamento complexo de Edgar Morin e a teoria de Gaia de Lovelock.
E quando Oscar Niemeyer começa sua longa caminhada no terreno plástico de formas curvilíneas que afastam os sentidos dos percursos mais familiares da racionalização construtiva, a mensagem é clara: a industrialização não deve alienar o ser humano, deve ser seu instrumento e não se transformar em seu opressivo patrão.
Afinal, se numa produção serial há uma inegável beleza na repetição de operações controladas com grande precisão pelos engenheiros, que permitem abaixar custos e levar os objetos produzidos ao mercado em condições de concorrer com seus competidores, há também algo desumano como no famoso filme de Charles Chaplin: o operário que sai da linha com um tique adquirido através da repetição de uma mesma ação.
Assim, se a razão pode trazer benefícios materiais, o ser humano se guia por valores mais complexos. Afetividade, generosidade, paixão, entusiasmo, humor, desejo, entre tantos outros, esses são os sinais reconhecíveis de que estamos falando de gente e não de parafusos.
A arquitetura da emoção é uma arquitetura que vai ao encontro dessas dimensões e é capaz de trazer ao mundo espaços como o surpreendente conjunto de edifícios do Ibirapuera do Oscar Niemeyer (especialmente a sua onírica Marquise e a atemporal Oca), o Museu Guggenheim de Bilbao e o Ninho de Pássaro em Pequim. São obras “irracionais” que abandonam a razão a favor de uma comunicabilidade imediatamente familiar às massas e, ao mesmo tempo, intrigante para os intelectuais de plantão.
Sem a menor preocupação com os orçamentos e normalmente cooptada por entidades públicas em busca de legitimação social e até exaltação, os seus autores literalmente buscam na orgia formal e espacial uma superação e uma separação dos caminhos da mediocridade produzida em série. Geralmente encontram alguma oposição inicial e até dificuldades para execução, mas são levadas adiante na medida em que o cliente quer algo excepcional.
Abandonando os tradicionais partidos e inventando novas regras compositivas, as obras da arquitetura da emoção são essencialmente libertárias e exigem altas doses de desprendimento de seus autores.
É comum ver arquitetos racionalistas torcerem seus narizes quando defrontados com esse tipo de produção, considerada “formalista”, em termos pejorativos. Ao mesmo tempo, são incapazes de um gesto humanizador e acabam tendo seus próprios trabalhos invadidos pelo decorador de interiores, ou aquele profissional que “humaniza” os espaços dos arquitetos racionais, complementando tudo aquilo que os espaços assim projetados deixaram de fazer para o bem estar de seus usuários.
Essa arquitetura que foge da razão limitante (ou desconstrutivista) em grande escala (o duck do Venturi), que se apercebe hoje em obras agitadas formal e espacialmente e multissensoriais como as do Coop Himmelblau, Zaha Hadid e Daniel Libeskind.
O museu judaico em Berlim, desse último arquiteto, é uma expressão fiel da angústia vivenciada pelo povo judeu durante a perseguição nazista e o holocausto, expressa por meio de espaços com cantos exíguos (com uma forma que decorre de uma estrela de Davi contorcida e fragmentada), planos inclinados e o uso do concreto aparente, um material frio e de certa forma banal.Estamos diante de um duck trágico, adequado para a ocasião, em oposição do galpão decorado do consumismo pós-moderno.
Já no centro de convenções do Cairo, um complexo imenso de cerca 500 mil metros quadrados, Zaha Hadid define os espaços com a fluidez das dunas do deserto, representando aquela cultura milenária de uma forma inusitada e ao mesmo tempo coerente com seu habitat natural.
Enfim, a arquitetura da emoção carrega símbolos que são facilmente compreensíveis pelos usuários e ao mesmo tempo adotam uma linguagem contemporânea que foge do ângulo reto convencional da arquitetura da razão.
É o caso do museu de Niterói de Oscar Niemeyer que, pouco tendo a ver com o programa de um museu, abre o olhar do visitante sobre a baia da Guanabara, como a maior obra de arte de todas as possíveis, adotando uma solução muito mais qualificável de mirante do que um espaço tradicional dessa natureza.
Críticas que podem ser feitas a essa arquitetura é seu monumentalismo, sua parca relação com estruturas preexistentes, seus custos astronômicos (de construção e de manutenção, sua dificuldade de construção) e até sua insustentabilidade. Um exemplo que vem á mente é a sede das telecomunicações de Pequim, pelo próprio OMA do ousadíssimo Rem Koolhaas que, ao ser perguntado se sua arquitetura libertária fazia sentido num país autoritário com a China, respondeu que sim, ao abraçar com otimismo o futuro da grande nação asiática. No entanto, fica a pergunta: os contribuintes foram ouvidos?
Ao mesmo tempo em que aumenta o poder comunicacional da arquitetura numa era de comunicações avançadas, ela parece sucumbir diante dos fatos mundanos que atestam a existência de limitações pragmáticas.
Isso ocorre especialmente em países em desenvolvimento, nos quais a ausência de recursos financeiros ostentados pelas elites do primeiro mundo ou por países de concentração do poder numa estado absolutista limita a possibilidade de sua adoção, sem causar, como nos casos recentes brasileiros, o Teatro de Dança de Herzog e de Meuron em São Paulo e a Cidade da Música de Christian de Portzamparc no Rio de Janeiro, uma sensação de gasto excessivo e divórcio com relação à limitante realidade socioeconômica local.
Sua “adversária” é a arquitetura da lógicaque, se a condena por tais excessos e insensibilidade social, não deixa de incorporar algumas de suas qualidades expressivas no seio de sociedades democráticas nas quais os gastos são, ou deveriam ser, preocupação de todos aqueles cujos impostos erguem as obras de uso coletivo, sem limitar demais a imaginação de seus autores e a qualidade de sua produção.
3. A arquitetura da lógica
Desde Aristóteles, a lógica vem sendo objeto de estudo filosófico e se tornou campo científico respeitado no meio acadêmico través da lógica matemática, atingindo outras áreas do conhecimento, como a lógica da informação. Os métodos lógicos mais aplicados são a dedução e a indução. Toda obra paradigmática determina um conjunto de respostas de projeto que podem ser deduzidas de alguns princípios operacionais que visam refletir a ordem social dominante ou emergente. Seria então possível falarmos de uma lógica arquitetônica?
Certamente, ela deveria considerar a racionalidade como origem da própria lógica, já que sem os recursos do intelecto humano e de uma “mente privilegiada” é impossível gerar obras inteligentes.
Por outro lado, terá que se deixar contaminar por certa sensibilidade e comunicabilidade, ao abraçar a dimensão “irracional” ou semântica das mensagens, o deleite das formas que se nutrem da emotividade e, por que não, do erótico e dos nossos desejos e instintos, seguindo a indução como maneira de apropriação da realidade.
Lógica seria, nessa definição, uma arquitetura capaz de reunir essas duas abordagens aparentemente opostas de projetar, forjando uma hibridez formal e espacial capaz de satisfazer as nossas necessidades racionais e emocionais, simultaneamente. Sempre, porém, a partir de um bem definido e assumido paradigma de projeto, capaz de interpretar e, principalmente, representar, a sociedade contemporânea, em justa medida. No mundo dos produtos de consumo poderíamos dizer que um Rolex ou uma Ferrari fazem isso, mas a que preços!
Porque será que uma arquitetura da lógica, ou seja, da razão conjugada à emoção, contenção e joie de vivre, não pode ser acessível aos nossos bolsos? Aí me vem em mente algo mais mundano: um fusca, ou “besouro” nas palavras de seu inventor holandês que cedeu sua patente para os alemães da Volkswagen: racionalidade e emotividade conjugadas num objeto só, familiar eacessível para todos!
Para os defensores do uso de paradigma para determinar a adequação de determinada arquitetura aos desafios da contemporaneidade, diria que estamos falando do holismo (do grego holos, o todo), na medida em que esse paradigma pretende satisfazer as necessidades do homem em sua plenitude psicológica e material, e ao mesmo tempo respeitar os ecossistemas e aos limites ambientais do planeta em benefício das futuras gerações, a base do desenvolvimento sustentável.
Se a razão nós ajuda a entender o fenômeno da vida e do universo que nos cerca, a emoção celebra a infindável riqueza plástica das formas naturais que adaptam fauna e flora aos fluxos vitais dos ecossistemas, gerando composições decorrentes do que Santiago Calatrava chama de lições da Mãe Natureza, considerada natura materet magister (mãe e professora).
Portanto, se podemos colocar os brilhantes Tadao Ando (ou Paulo Mendes da Rocha, numa versão nacional) e sua arquitetura mental, de um lado, e Zaha Hadid, e sua arquitetura visceral, do outro, como opostos, certamente Renzo Piano e seu ex-sócio Richard Rogers, dois outros Pritzkers, junto ao nosso João Filgueiras Lima, o Lelé, estariam nessa “categoria lógica”, que gera soluções racionais e emocionais de grande beleza, ao se nutrirem dos extremos, sem jamais abraçá-los em sua totalidade.
Arquiteturas nas quais cada elemento tem um sentido, como as geométricas pétalas de uma flor (como na proporção áurea e séries de Fibonacci em seu Liber Abbacide 1202), ou a aparente aleatoriedade formal de troncos e galhos de uma árvore, nas quais o todo se conjuga com a propriedade de um pinheiro ou uma bananeira, dependendo de seu ecossistema e de sua região climática, enfim, de seu contexto urbano ou metropolitano (uma terceira via na construção de cidades, como argumentou o próprio Christian de Portzamparc no seu já clássico artigo “A terceira era da cidade”).
Exemplos disso, no Brasil, são os hospitais da rede Sarah Kubitschek do Lelé, com seu sofisticado sistema de ventilação natural que gera coberturas abobadadas em formato ascendente (para levar o ar quente para o alto) ou, no ritmo de um país que acelerou seu crescimento, o novo terminal do aeroporto de Guarulhos de Mario Biselli e Arthur Katchborian, a ser possivelmente erguido em breve, que apresenta a forma reconhecível de um avião pousado na pista e, ao mesmo tempo, segue uma ortodoxia racional em sua composição axial e adota uma engenharia construtiva de ponta (vidro e aço) que permite grandes vãos abobadados, próprios de uma aerodinâmica transladada para uma arquitetura sensível aos fluxos (aéreos e humanos) contemporâneos, na escala metropolitana.
No plano mundial vem à mente o genial Centro Cultural da Nova Caledônia de Renzo Piano, cujas estruturas e brises foram parcialmente executados em bambu, um reconhecimento da cultura local, junto com uma racionalidade de planta e com a adoção de outras tecnologias construtivas atuais.
São obras primas da “lógica” na arquitetura, admiráveis e eternas – surpreendentes na melhor definição do mestre Oscar– eao mesmo tempo familiares por tocar fundo na psique coletiva.
Capazes, portanto, de ir além da “irracionalidade social”, demonstrando que, mesmo que nenhuma sociedade possa ser considerada perfeita, o papel da arquitetura de qualidade é mostrar-lhe um caminho virtuoso que lhe é possível, imaginado no desenho e verificado no espaço.
Caminho certamente complexo, aquele de uma arquitetura lógica torna inviáveis as cópias e meras reproduções estilísticas e, ao mesmo tempo, é capaz de promover uma cultura na qual coletivismo e individualismo se fundem, a natureza é compreendida e respeitada como mentora da nossa existência e das nossas necessidades psicofísicas, acima de tudo, e na qual o tempo pode continuar a ser lido como relógio das rupturas.
Marcado, também, por projetos e obras que o celebram em toda sua intrínseca riqueza, como cristais que desabrocham de opacas estruturas rochosas, a refletirem sua passagem de forma brilhante. Capazes, dessa forma, de pará-lo, como num passe de mágica, e, assim, atingir a atemporalidade de uma obra prima.
sobre o autor
Bruno Roberto Padovano é arquiteto e professor da FAU USP.