No início dos anos 1950, após ter escrito um longo ensaio sobre Jean Genet, intitulado Jean Genet, comédien et martyr (1), Jean-Paul Sartre concebe um ambicioso projeto literário: escrever um ensaio ficção, isto é, criar um novo gênero literário que, finalmente, seria a fusão do romance, da narrativa de viagem, do ensaio político e do diário íntimo. (2) O seu enredo era a narrativa das atribulações de um turista francês – na realidade, um alter ego do autor – que deambulava pelas cidades italianas de Nápoles, Capri, Roma e Veneza, enquanto tecia diversas reflexões de ordem moral sobre os italianos, sobre a política, sobre a Estética e, naturalmente, sobre a sua condição de turista em solo estrangeiro. Essa narrativa ambígua ganhou o misterioso título de La reine Albermale ou le dernier touriste; (3) contudo, o filósofo francês jamais concluiu esse projeto, cujos fragmentos foram publicados em forma de livro apenas em 1991 – onze anos portanto, após a sua morte – por sua filha adotiva Arlette Alkaïm-Sartre. As razões para o abandono desse projeto literário ainda estão para ser elucidadas, porém, o que é dado como certo é que a partir do início dessa década Sartre praticamente encerrou a sua carreira de escritor ficcional, contentando-se em escrever ensaios filosóficos e políticos, além de ter tido, como sabemos, uma atribulada militância política nos mais diversos espectros da esquerda europeia. (4)
Nesse sentido, essa narrativa não tem – e nem poderia ter – a forma acabada de uma obra, e um dos fatores que contribuíram para isso – além, naturalmente, do fato de que o seu autor não a tenha concluído – foi a perda de muitas das páginas do manuscrito: ora, algumas partes desse heteróclito texto foram escritas sobre folhas esparsas de agenda ou de blocos de recados telefônicos, o que, talvez, tenha levado a sua posterior dispersão. Assim, não causa estranheza que, nesse ensaio ficção, os capítulos – cujos títulos foram, na maioria das vezes, atribuídos por Arlette Alkaïm-Sartre – não tenham conexão entre si e possuam procedimentos de escritura diferentes. Portanto, é possível e talvez até mesmo desejável que esses capítulos – que, aliás, não raras vezes são extremamente curtos – não sejam tratados como um bloco, mas, ao contrário, isoladamente, de maneira a enfatizar as particularidades de cada um.
Tendo essa possibilidade em mente, o objetivo desse artigo é analisar um único capítulo de La reine Albermale, intitulado En gondole: le gothique et l’eau, no qual a personagem, esse turista francês que jamais é nomeado ao longo do texto, faz algumas reflexões sobre o caráter particular da malha urbana da cidade de Veneza e sobre uma das suas construções mais emblemáticas: o Ca d’Oro. E tudo isso a partir de um ponto de vista bem particular: em uma gôndola, ou seja, no nível da água. Acreditamos que a análise desse capítulo seja importante porque revela uma faceta de Sartre que normalmente se desconhece: a de um Esteta interessado no urbano e na arquitetura. Ora, é bem conhecido que o filósofo francês nutria grande afeição pela música e pela pintura, tendo escrito sobre ambos os domínios, mas é menos conhecido o seu interesse pela arquitetura. Realizadas essas considerações iniciais, vamos, então, ao próximo capítulo, no qual analisaremos as “considerações flutuantes” do turista francês, para cumprir o objetivo desse artigo.
Visitando o Ca d’Oro, em Veneza
A narrativa La reine Albemale ou le dernier touriste pode ser considerada um “anti-guia de viagens”, posto que todo o tempo a personagem procura demonstrar o seu desconforto com o fato de fazer turismo, uma atividade que ela julga fútil e, às vezes, ridícula. (5) Não foi fácil, portanto, para a personagem, cometer esse “fragrante delito de turismo”, que seria o de subir em uma gôndola e atravessar os canais de Veneza: “Turistas se cruzam em gôndolas nos estreitos canais e cada um acha o outro docemente ridículo, e cada um pensa: Veja! um estrangeiro.” (6) Mas, o turista acaba por vencer o seu medo de parecer ridículo a si mesmo e aos outros e embarca, finalmente, na gôndola, com o mesmo sentimento de quem subiria em um fiacre na cidade de Roma, uma vez que ambos os passeios são normalmente reservados a turistas que desejam ter uma “genuína experiência falsa” (7). E, dito de outra maneira, em um fiacre em Roma ou em uma gôndola em Veneza o turista não estaria fazendo senão o que dele se espera: ou seja, turismo.
O gondoleiro, que não seria senão um cicerone que cumpre a dupla função de barqueiro, passa a descrever sucintamente os monumentos de Veneza em uma espécie de litania: aqui o Ca’ da Mosto, século XIII, acolá o Ca Matteotti, século XVII, do outro lado o Mercado de peixes, construção moderna. Essa descrição apressada, contudo, mais banaliza esses monumentos do que informam, e estes perdem, aos olhos da personagem, qualquer interesse. Todavia, perto de um monumento em especial, o gondoleiro pára a sua embarcação, era o Ca’ d’Oro... Mas a personagem não partilha esse suposto entusiasmo: “Então eu olharei o Ca’ d’Oro. Ou melhor, o Turista, convocado em regime de urgência, o olhará por mim.” (8) E confessa que, pensando no rico e vasto conjunto arquitetônico de Veneza, esse palácio seria desprovido de um interesse arquitetônico especial.
Talvez essas reflexões da personagem apontem para um dos aspectos mais curiosos da relação entre a arquitetura e o turismo, o fato de que não necessariamente o julgamento da indústria do turismo – mais interessada no espetacular do que propriamente no Estético – coincidirá com o julgamento dos historiadores e dos críticos. Ora, sabemos que há, em muitas cidades italianas, várias obras que marcaram profundamente a História da arquitetura, com abundantes registros em livros especializados, mas não se encontra diante delas sequer um único turista; (9) e, convém acrescentar, muitas vezes sequer são permitidas visitas.
O Ca’ d’Oro, visto da gôndola, pareceu-lhe desinteressante e foi percebido apenas como mais um simples objeto de contemplação de turistas “convocados em regime de urgência”. Dito de outra maneira, trata-se do sentimento de expectativa que todo turista pode experimentar diante de uma paisagem natural ou de um monumento os quais se aguardava conhecer com ansiedade, e que, ao final de alguns poucos segundos, transforma-se em decepção. Afinal, não foi Sartre que escreveu, em 1945, para o jornal Le Figaro, a sua profunda decepção com boa parte das cidades norte-americanas que conheceu?
E é uma decepção quando você chega a Wichita, a Saint-Louis, a Alburqueque, ou a Menphis, em constatar que, atrás destes nomes magníficos e promissores, se esconde a mesma cidade Standard, em malha xadrez, com os mesmo semáforos que regulamentam a circulação e o mesmo ar de província. (10)
No caso de La reine Albermale trata-se de um nome muito conhecido e promissor que se revela apenas como mais um palácio em uma cidade que conta com inúmeros. (11) E, justamente por ter se decepcionado, a personagem faz referência a um interessante fenômeno denominado por ele de “potência poética do nome”, termos emprestados a Marcel Proust e que indicam que, por vezes, as palavras significam mais que as coisas que nomeiam ou, ainda, são responsáveis por lhes conferir um significado especial e suplementar. (12) Ora, o Oro dessa Ca’, o qual ornamentava os seus pequenos detalhes, já não existia há muito tempo: “(...) este [o nome] cobre há séculos esse palácio de um ouro invisível.” (13) Ou seja, foi-se o ouro, ficou o nome, elemento responsável por parte da celebridade turística do palácio. Mas, para além da fama suplementar criada pelo nome, quais seriam os aspectos menos turísticos e mais históricos e arquitetônicos desse palácio? Contam aos turistas que esse palácio foi concebido, como muitos outros em Veneza, para tentar rivalizar com o Palácio dos Doges, sonho perseguido por todos os patrícios. Mas... Hélas, já se estava em uma época em que os ricos comerciantes já não eram mais tão ricos assim... Então, a solução encontrada, segundo a personagem, seria a utilização de certos artifícios arquitetônicos:
A finalidade era sempre a mesma: produzir grandes efeitos com poucas causas, suportar toda uma construção com um único dedo; sustentar uma edificação inteira por meio do vazio, dar à força o aspecto um pouco inquietante da fragilidade. Contudo, como seria muito caro, tomou-se o partido de cavar o vazio colocando-se aberturas. (14)
A personagem alude ao fato de que, na falta de recursos, os mestres construtores venezianos tiveram que lançar mão de novos procedimentos para buscar a efeito pretendido, que era o vazio e a leveza dos primeiros pisos das construções que, por sua vez, suportariam o pleno dos pisos superiores, como é o caso do Palácio dos Doges. Contudo, esse procedimento não teria sido bem sucedido na maioria das construções – ou assim, ao menos, entendeu a personagem –, porque o cheio estaria sendo suportado pelo cheio, uma vez que construir loggias com delicadas colunas de filigranas de pedra seria por demais oneroso. O Ca’ d’Oro, contudo, apresentaria um efeito de leveza mais bem sucedido, uma vez que, ao ter sido dividido claramente em duas seções, o resultado inevitável foi a sua conformação em uma parte plena (a fachada com as suas janelas) e uma parte vazia (a loggia): “O Ca’ d’Oro é mais ousado: ele é dividido em dois retângulos cujo primeiro está para o segundo como em uma relação de 2/5 a 3/5; mas no lugar de colocar o cheio sobre o vazio, foi colocado o vazio de um lado e o cheio de outro.” (15) Assim, segundo a personagem, esse artifício permitiu que, ainda que não se tenha ultrapassado em beleza o Palácio Ducal, o Ca’ d’Oro apresentasse uma solução arquitetônica satisfatória, e com importantes consequências estéticas: “Mas o que isso significa? De fato, de um lado nós temos a imobilidade do mineral: ele não pesa, ele não suporta nada: ele é. Do outro lado, nós temos o vazio, mas que suporta o vazio.” (16) Ou seja, na visão da personagem o Ca’ d’Oro instaura uma dialética entre o pleno e o vazio, ou, dito de outra maneira, uma dialética entre o ser e o nada...
Mas esse reconhecimento não vai sem uma objeção: se de um lado há o pleno sentido como a imobilidade do mineral, do outro teriam suprimido por completo o esforço, e a arquitetura tornar-se-ia apenas uma simples fachada decorada, ou, como escreveu a personagem: “É, simplesmente, uma decoração: faz-se sobre o belo coffret incrustações de vazio.” (17) Mas não seria esta, justamente, a particularidade do chamado gótico italiano? (18) E talvez seja justamente essa particularidade local o que desagrada essa personagem que é, não nos esqueçamos, um turista proveniente do país que é o berço dessa arte. (19) E na pena de um autor como Sartre, talvez não haja Estética dissociada da Moral e da Política (20), como se pode observar nessas frases emitidas pelo seu alter ego: “Eu confesso que, se por um lado essas rendas me encantam, por outro me irritam um pouco: o Gótico, de toda maneira, nunca foi na Itália o que foi na França: a obra de uma cidade.” (21) A personagem alude à importância social da construção das grandes catedrais francesas, uma obra coletiva feita para abrigar a todos os cristãos do Ocidente. (22)
O gótico italiano, em contrapartida, seria a obra de corporações, de confrarias e de patrícios, todos mais interessados em exibir ao povo – pelo fausto e pela grandiosidade arquitetônica – a sua riqueza e o seu gosto do que em construir um espaço coletivo. Esta é, ao menos, a visão da personagem que naquele momento era o “porta-voz” de um intelectual que, no fim dos anos 1940, tornou-se um autor e militante esquerdista. (23) E a relação profunda entre o Gótico italiano e a elite dessa região é afirmada de maneira bastante assertiva, como se pode perceber nessas frases: “O Gótico é, na Itália, um refinamento da elite; é esta a origem do seu preciosismo e, igualmente, dessas sábias sínteses do estilo lombardo com o Gótico que se assemelham a esses concílios de eruditos.” (24) Seria este, igualmente, o motivo pelo qual o Gótico francês, uma vez implantado e praticado nessa região torna-se uma síntese de elementos decorativos rebuscados. O arco ogival, por exemplo, que no Gótico francês (mas não nos referimos ao Gótico dito Flamboyant) tem uma utilidade precisa e uma lógica impecável, torna-se, na Itália, um mero elemento decorativo extremamente complicado, com círculos e ogivas que se cortam e se cruzam nas fachadas sem que a sua utilidade construtiva seja, ao menos, minimamente evocada. (25)
Mas veremos que a personagem não tem somente objeções e admoestações a essa arte que teria complicado enormemente o Gótico do seu país natal. Ora, Veneza não é uma cidade como as outras, o elemento que calça as suas vias comunicantes é líquido, e, assim, reflete continuamente as suas construções dobrando-as em imagens cambiantes. E cambiantes seriam, igualmente, as pedras dessas construções decoradas de maneira tão complicada: “Finalmente, essas perpétuas transformações cintilantes de ogiva em círculo e de círculo em ogiva, essas interrupções e deslocamentos refletem no imóvel o movimento perpétuo da água.” (26) Mas a personagem não se refere à totalidade das construções venezianas, nem mesmo ao conjunto dos seus palácios, refere-se a um palácio em especial: o Ca’ d’Oro. E visto dessa maneira, esse palácio é a síntese da cidade sobre o solo da qual foi construída: “De certa maneira, é a pedra que se torna a imagem da água.” (27) Do modo como compreendeu a personagem, pedra e água se fundem em uma única imagem, assim como cidade e arquitetura, já indissociáveis, tornam-se claramente um único elemento.
Últimas considerações
Tentamos demonstrar no capítulo anterior que Sartre não era indiferente à arquitetura e ao urbano, e que possuía certa compreensão – assim como um repertório – sobre a arquitetura, ou, ao menos, sobre a arquitetura clássica. Mas é igualmente certo que Sartre não descrevia, a partir da sua personagem, o que seria uma cidade pouco conhecida, mas escrevia sobre uma cidade que, além de sobreviver do (e ao) turismo internacional, é um lugar mítico, construído de água e de pedra, e na qual, como vimos, a pedra torna-se líquido ao se refletir na superfície da água. E o Ca’ d’Oro, outrora visto “sem interesse”, com a sua complicada fachada de filigranas e de arcos que se cortam e se cruzam, é, para a personagem, a melhor imagem de Veneza. Assim, se essa cidade é água, pareceu-lhe normal que as suas construções também o fossem: “Como na água, que a tudo confunde, as coisas são inutilmente complicadas, elas imitam os seus desvios e as suas repetições, por meio dos seus quadrilobages.” (28) Ora, em Veneza a água é gótica, mas é gótica à italiana.
Se a nossa asserção anterior é correta, é mister admitir que a questão das particularidades do Gótico italiano em face da arte francesa que lhe originou foi tratada pela personagem de Sartre não sem ambiguidades, uma vez que lhe fez algumas objeções a partir do sense de la mesure (termo, reconhecemos, usualmente reservado à Ética e não à Estética). Isto é, a lógica construtiva do Gótico tornou-se, na Itália, um conjunto intrincado e desmesurado de elementos decorativos que se dobram e se repetem, “agitados” como a superfície da água em um dia de brisa. Contudo, as suas objeções diminuem para, paulatinamente, cederem espaço à compreensão de que aquela é a arquitetura de Veneza, cidade atípica cujos canais fazem, inelutavelmente, parte integrante da malha urbana. Assim ele compreende a “lógica” daquela arquitetura que, finalmente, não é outra coisa senão a lógica da própria cidade: “Quiseram encarnar na pedra o elemento água? Esses palácios saem da água ou é a pedra que, levando até o fim o movimento, engendrou a água?” (29) Essa pergunta retórica é o romanesco desse livro que, como já escrevemos, é literariamente ambíguo, e, no final, uma única construção – julgada inicialmente “sem interesse” – torna-se a metonímia de toda uma cidade, como anteriormente já fora a metáfora do desejo de refinamento e do bom gosto burguês das suas elites.
notas
1
A esse respeito, ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 243.
2
Sartre assim explicou esse projeto literário em uma entrevista concedida a um periódico alemão: “A minha editora parisiense Gallimard queria um texto sobre a pintura, algo que fosse fácil de ilustrar. Eu mesmo tinha, na origem, projetos muito diferentes. Desde 1947 venho a Itália quase todos os anos; e tenho uma queda por esse país e queria lhe consagrar uma volumosa monografia, com o contexto histórico, os problemas sociais, as constelações políticas, a Antiguidade, a Igreja, o turismo, tudo devia estar ali. Depois eu percebi que o tema era amplo demais, grande demais.” Gespräch mit Jean-Paul Sartre. Em: Welt am Sonntag. Apud: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970, p. 314. Tradução nossa do Francês para o Português.
3
Servimo-nos do termo “misterioso” porque a tal Rainha Albermale muito provavelmente jamais existiu, ao menos não há nenhum registro histórico que nos permita asseverar a sua existência. Tratava-se, nesse caso, de criar certo ambiente pitoresco em relação ao país da narrativa. A esse respeito, ver: CONTAT, Michel. Autopsie d'un livre inexistant: La Reine Albemarle ou le Dernier touriste. Em: Item [On line] Disponível em http://www.item.ens.fr/index.php?id=172593.
4
A esse respeito, ver: a) CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970; b) LEVY, Bernard-Henri. O século de Sartre. Trad.: Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
5
A este respeito, ver: CONTAT, Michel. La Reine Albemarle ou le Dernier touriste. Em: Item [On line] Disponível em http://www.item.ens.fr/index.php?id=172593.
6
SARTRE, Jean-Paul. La reine Albemale ou le dernier touriste. Paris: Gallimard, 1991, p. 70. Tradução nossa do Francês para o Português.
7
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 71. Tradução nossa do Francês para o Português.
8
Idem. Ibidem.
9
A não ser, naturalmente, o caso do “turismo especializado” realizado por profissionais da área; mas, aqui, referimo-nos a um turismo mais banal e corriqueiro, realizado por puro lazer.
10
SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amérique New York, ville coloniale Venise de ma fenêtre. Paris: Éditions du Patrimoine, 2002, p. 39. Tradução nossa do Francês para o Português.
11
Mas, como teremos a oportunidade de verificar, a opinião desse turista sobre o Ca’ d’Oro transforma-se na medida mesmo em que passa a considerá-lo esteticamente.
12
Há várias páginas da Recherche em que há essa relação privilegiada entre as palavras e as coisas, mas por economia de páginas, remeto o leitor a esse único trecho: “Eu sabia que ali residiam castelãs, o duque e a duquesa de Guermantes, eu sabia que eles eram personagens reais que verdadeiramente existiam, mas, cada vez que eu pensava neles, eu os representava para mim seja em tapeçaria, como no caso da condessa de Guermantes no “coroamento de Ester” da nossa igreja, seja em nuanças movediças como no caso de “Gilberto o Mau” no vitral que passava do verde ao azul, quer fosse o momento ainda de tomar água benta ou de chegar as nossas cadeiras; seja completamente impalpáveis como a imagem de Genoveva de Brabant, ancestral da família de Guermantes, que a lanterna mágica fazia com que passeasse sobre as cortinas da minha janela ou subir ao teto – enfim, sempre envolvido pelo mistério dos tempos merovíngeos e banhado como um pôr do sol alaranjado que emana desta sílaba: ‘antes’.” PROUST, Marcel. Du côté du chez Swann – Deuxième partie. Paris: Galimmard, 1946, p. 288. Tradução nossa do Francês para o Português.
13
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., 1991, p. 71. Tradução nossa do Francês para o Português.
14
Idem. Ibidem.
15
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., 1991, p. 72. Tradução nossa do Francês para o Português.
16
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., 1991, p. 71. Tradução nossa do Francês para o Português.
17
Idem. Ibidem.
18
Assim como o Gótico civil dos Países Baixos e da Bélgica: a vista da Grande Place em Bruxelas nos confirmaria esta última asserção: não havendo nem arcos botantes nem cúpulas (o que seria impossível e mesmo impensável na época: normalmente, considera-se que a primeira construção civil com cúpula na Europa é La Rotonda, obra de Palladio), o Gótico civil torna-se uma questão de decoração.
19
Como sabemos, uma personagem não tem passado senão aquele que o autor lhe confere pela escritura; porém, a personagem, ao fazer reflexões estéticas e ao se conferir claramente uma nacionalidade e uma identidade cultural, permite-nos o uso desse argumento.
20
Em 1948 Sartre publicou o seu livro de Crítica Literária, no qual não apenas criticava asperamente viagens e viajantes, mas como, igualmente, ligava definitivamente a literatura à política. Para mais detalhes, ver Referências.
21
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 71. Tradução nossa do Francês para o Português.
22
Devemos admitir, naturalmente, que falta certa sutileza a essa compreensão que é, finalmente, maniqueísta, mas devemos observar que, mesmo que o turista francês desse ensaio ficção seja um alter ego do autor, ainda assim é uma personagem. Nesse sentido, Sartre estaria mais interessado em narrar as reflexões de um turista diante de uma construção emblemática do que realizar as considerações de um crítico ou historiador de arquitetura.
23
Curiosamente, nos anos 1930 Sartre era apolítico, e visitou pela primeira vez a Itália, ao lado de Simone de Beauvoir, aproveitando-se de descontos em passagens de trem oferecidos pelo regime fascista: “Naquele ano, Mussolini organizara uma ‘exposição fascista’ e, para atrair turistas estrangeiros, as estradas de ferro italianas concediam uma redução de 70%. Aproveitamos sem escrúpulos.” Na realidade, essas frases reveladoras são de Simone de Beauvoir. A força da idade. Trad.: Sérgio Millet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 156.
24
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 73. Tradução nossa do Francês para o Português.
25
“[...] essas leves casas de tijolos não precisariam nem um pouco de ogivas; as abóbadas mouriscas do Fondaco dei Turchi seriam suficientes. A ogiva não é senão um refinamento, uma elegância a mais; um ornamento que lhes vem do norte. De resto, aqui elas se decompõem, são pessoais demais para que fossem aceitas sem modificação, era preciso que eles mostrassem que elas derivam do círculo; para obtê-las seria suficiente deslocar o centro do arco pleno. Ou então se tomam circunferências e as cortam. Para se fazer uma série de arcadas venezianas, tome um arco pleno e o corte em dois pontos simétricos por dois outros círculos tangentes um ao outro e coloque a sua coluna no ponto de tangente desses dois círculos.” Essas análise e “receita” são do nosso autor. SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 73. Tradução nossa do Francês para o Português.
26
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 74. Tradução nossa do Francês para o Português.
27
Idem. Ibidem.
28
Idem. Ibidem.
O termo quadrilobage faz referência a ornamentos góticos que são divididos em quatro partes.
29
Idem. Ibidem.
bibliografia complementar
SARTRE, Jean-Paul. O que é literature?. Trad.: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2004.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.