O município de Vacaria, nos Campos de Cima da Serra gaúcha, a quase mil metros acima do nível do mar, dista 240 km de Porto Alegre, rumo norte. A ocupação da região tem relação com a expansão jesuítica pelo território meridional do continente sul americano e, no século XVIII e XIX, com a circulação de tropeiros indo ou vindo de Sorocaba por rotas que tinham Vacaria como a porta de entrada e saída do Rio Grande. Foi nos Campos de Cima da Serra que os missionários da Companhia de Jesus fizeram um criatório de gado de reserva para alimentar suas reduções. Eram as Vacarias dos Pinhais (1), nome que acabaria batizando o Município.
Em 1984 aadministração municipal de Vacaria demonstrava interesse em realizar uma “série de projetos administrativos de alto interesse popular (2)”. Dentre estes estava a construção de obra arquitetônica de porte, não só pelas dimensões como também pela importância da assinatura de autoria. Antes mesmo da gestação e do nascimento já tinha nome de batismo – Casa do Povo – e paternidade pretendida.
Em julho daquele ano (3) o prefeito entrava em contato com o arquiteto Oscar Niemeyer por carta com o intuito de informar-lhe a intenção da contratá-lo para realizar o projeto arquitetônico. No mesmo documento, apresenta-lhe ainda pormenores sobre as características da cidade, as aspirações da municipalidade e um esboço de programa de necessidades para o empreendimento.
Em anexo ia planta altimétrica do terreno escolhido para a obra e mapa do perímetro urbano para que o arquiteto localizasse-o na malha da cidade. Talvez este não tenha sido o primeiro contato da prefeitura com o arquiteto. A carta vai com informações detalhadas demais. Provavelmente seria a oficialização do contato realizado informalmente antes. Por outro lado, o conjunto de informações sobre a cidade e os documentos anexos nos leva a crer que o arquiteto não tinha a intenção de deslocar-se até Vacaria para visitar o terreno e conhecer mais intimamente o lócus de sua obra. E pelo indica a Revista Construção da Região Sul no ano de 1988 ainda havia a esperança de que o arquiteto visitasse a cidade para conhecer a obra que concebeu, o que indica que ele muito provavelmente jamais fez visita alguma à obra.
A obra, conforme a carta do prefeito, deveria atender ao seguinte programa de necessidades: 1º- Comícios partidários para cinco mil pessoas de pé; 2º- Conferências, palestras e debates públicos; 3º- Bailes populares e estudantis; 4º- Assembléia de classes; 5º- Festas e casamentos; 6º- Formaturas escolares; 7º- Cerimônias Cívicas; 8º- Teatros, shows artísticos e apresentações musicais (orquestras, bandas, artistas); 9º- Feiras e exposições; 10º- Churrascos populares; 11º- Local para abrigo em caso de calamidade pública.
Ainda segundo esta carta, “para o povo de Vacaria seria uma glória poder ter uma obra de Oscar Niemeyer (4)”. Mais adiante afirma que “imbuído desta pretensão que a nossa Administração na tentativa de dar ao povo de nossa terra algo mais do que lhe é permitido sonhar, aventura-se a solicitar a V. Sa. a possibilidade desta realização (5)”. São intenções que vão além do atendimento ao programa de necessidades. A construção deveria apresentar-se como um verdadeiro “cartão de visitas para Vacaria (6)”, previa o prefeito em 1984. Obra capaz de “até mesmo calar os adversários políticos, que admitiam seu valor artístico (7)”. Por isso mesmo a placa com a inscrição o CREA e o nome do arquiteto responsável pelo projeto ficara fixada diante da obra mesmo após sua inauguração (8).
O Jornal Pioneiro, em 26 de outubro de 1984, divulgava a visita do prefeito municipal ao Rio de Janeiro para tratar do projeto da construção do salão comunitário com seu autor. Os trabalhos já estavam iniciados e o jornal traz alguns poucos elementos gerais do projeto – forma geométrica, área total. Ainda segundo o jornal os custos não seriam elevados, pois, apesar do destaque internacional do arquiteto, ele teria cobrado, conforme afirmação do prefeito, “preço bem inferior à tabela dos arquitetos do Brasil”. Uma pechincha que adéqua o interesse da administração municipal em ter uma obra que destaque Vacaria no cenário regional por preço de banana, ao filantropismo do arquiteto carioca.
Meses depois, já no início de Janeiro de 1985, o arquiteto envia (9) plantas para a aprovação definitiva do executivo municipal. Dias depois, em 25 de Janeiro de 1985 é assinado o contrato de elaboração de projeto arquitetônico no valor de 60 milhões de cruzeiros (Cr$ 60.000.000) que deveriam ser pagos na entrega do projeto. O pagamento foi realizado logo depois, no dia 28 de Janeiro do mesmo ano. O arquiteto recebeu líquidos, retidos os descontos de praxe, a quantia de 34 milhões, 557 mil, 290 cruzeiros (Cr$ 34.557.290). Tempos depois o prefeito recordaria que os honorários que o arquiteto recebeu com o projeto equivaliam, na época, “a 60% do preço de um Opala Comodoro, que a prefeitura adquiriu na mesma época (10)”.
A obra foi entregue inconclusa em 1988 e o próprio prefeito municipal, num acesso de franqueza, admitia que a “inauguração precoce, sem o acabamento da obra, tinha motivos eleitorais (11)”.
Resumindo, pelo o que a documentação e as notícias da impressa indicam Oscar Niemeyer trabalhou sem assinar contrato, assinou-o quando estava com o projeto quase pronto, cobrou valor bem abaixo da tabela de honorários da categoria e a obra foi entregue pela municipalidade sem ter sido finalizada por motivações eleitorais.
A Casa do Povo fica na Rua Borges de Medeiros, número 1987. O terreno onde está localizada dista aproximadamente500 metros da principal praça da cidade, onde estão a prefeitura e a igreja. O terreno, de esquina, tem cerca de 10 mil quadrados, é trapezoidal e tem um leve aclive no sentido sudeste – noroeste. O entorno é composto por pequenas residências unifamiliares em lotes bem menores ou desocupados. Desta forma o lote a as dimensões da construção diferenciam-se e ganham importância. O acesso principal, feito a pé, se dá pela esquina a sudeste, voltado para a rua que vem diretamente da praça referida acima. O caminho leva do vértice do terreno até interior do edifício. Um acesso secundário, de serviço, se dá pelo lado sudoeste.
A obra em si – com área aproximada de3.600 metros quadrados– tem mais importância por constar no catálogo do arquiteto carioca do que por suas qualidades arquitetônicas e artísticas. O prédio é, visto de fora, um cilindro largo e baixo, atarracado e pesado, estático, todo em concreto armado. À norte, escondido, há um anexo baixo. A proporção entre altura e largura, a relação entre os cheios e vazios, denotam peso e imobilidade, atributos exatamente antitéticos à leveza, graciosidade e movimento que construíram a reputação de sua arquitetura.
A solução formal adotada pelo arquiteto para este salão comunitário é resposta que está dentro de seu repertório formal, um cilindro. A forma cilíndrica na arquitetura de Oscar Niemeyer esteve presente inicialmente no projeto não construído apresentado para o concurso para o Estádio Olímpico Nacional no Rio de Janeiro em 1941. O cilindro, neste caso, é forma clássica para arenas desde os Coliseus Romanos. Um ano depois, em 1942, reutiliza o cilindro no Salão de dança da Casa do Baile, na Pampulha, Minas Gerais. Outros projetos do arquiteto que fazem uso desta forma são o projeto irrealizado para Restaurante na Lagoa Rodrigo de Freitas, que contava ainda com marina e concha acústica, no Rio de Janeiro em 1944; o projeto para o Aeroporto de Brasília, de 1965, não construído; a Sede da Cartiere Burgo em Turim, Itália, de 1979; o Museu do Índio em Brasília de 1982; o Memorial da America Latina,em São Paulo, de 1987/88; o Parlamento Latino Americano de 1991em São Paulo, dentre outros exemplos.
No caso da Casa do Povo de Vacaria a solução é de um cilindro maior envolvendo um menor sextavado. O cilindro pequeno, no centro do maior, serve de palco para as apresentações. O grande, invólucro geral, deixa área suficiente para receber as funções de salão principal para apresentações, com platéia sentada em ¼ da área total e o restante de pé. O palco, com duas bocas, volta uma para o auditório com pouco mais de 500 cadeiras fixas que sobem escalonadas e, a outra boca, oposta a esta, para o salão onde os espectadores assistem às apresentações de pé, estando um metro abaixo do nível do palco. Há pontos cegos nessa relação palco-platéia e essa dupla abertura cria dificuldades pra quem se apresenta. Logo abaixo do palco estão depósitos, almoxarifado e 8 camarins e abaixo do auditório os banheiros para a platéia. No anexo a esse corpo principal – o das apresentações – estão as churrasqueiras.
O peso do conjunto é sustentado pelas paredes de concreto armado dos dois tambores e pela ossatura da cobertura, algo virtuosa, de vigas entrelaçadas que também sustentam um conjunto de zenitais. O salão é iluminado através delas e por aberturas circulares no tambor externo.
A construção esteve aberta ao público até o fim da década de 90. Devido a problemas estruturais e de conservação foi interditada em 1997. Um ano depois o Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais da Faculdade de Engenharia da UFRGS realizou vistorias para verificar o estado de conservação, patologias e comprometimento estrutural na perspectiva de elaborar um projeto de recuperação (12). A Casa do Povo corria o risco de ser demolida.
Em novembro de 2004 a Fundação Oscar Niemeyer, atendendo solicitação da prefeitura municipal de Vacaria de confirmação de autoria daquela construção, afirma que a obra consta do catálogo técnico do arquiteto sob o título de “Salão Polivalente de Vacaria”, realizado no ano de 1983. O reconhecimento era necessário para que se pudessem captar recursos para suas obras de conservação.
Com base no reconhecimento feito pelo autor, inicia-se a mobilização para o processo de tombamento estadual, e a conseqüente obtenção de recursos propiciada pelas leis de incentivo à cultura, em nível estadual e federal.
Em 2006 foi realizada, pelo mesmo laboratório da Faculdade de Engenharia da UFRGS, nova vistoria técnica do prédio (13) para complementar a de 1998 e dar andamento ao seu processo de conservação. Esta avaliação tinha o objetivo de determinar as condições de conservação dos elementos construtivos, estruturais e das manifestações patológicas da construção. Eles serviram de subsídio para o projeto de recuperação e reforço e “restauro” (sic) (14) da estrutura e da impermeabilização da cobertura.
Após isso a prefeitura e a Associação de amigos da Casa do Povo empenham-se para obtenção do reconhecimento do prédio como um bem de interesse público e para a realização de um projeto de restauro. Concomitantemente a essas ações, arquitetos do IPHAE vão à cidade para avaliação do bem e da documentação existente. Finalmente em 23 de Abril de2008, aedificação passou a integrar a lista de bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul a partir da publicação da Portaria N° 06/2008 no Diário Oficial do Estado. O tombamento coroa o esforço da administração municipal de Vacaria em ter a sua Brasília, em ter sua obra de destaque que a coloque no mapa, mais pelo currículo e credibilidade do arquiteto na praça do que por qualidades intrínsecas à obra.
Atualmente a construção encontra-se em reforma – e não restauração – para fazer o que parece ainda não ter conseguido. Atrair atenção e dar visibilidade ao município do planalto gaúcho.
notas
1
Para saber mais sobre a formação de Vacaria, consultar a coletânea de artigos sobre o município Raízes de Vacaria 1. Porto Alegre, EST, 1996. E para maiores informações sobre a importância do tropeirismo no espaço sulino ver Bom Jesus e o tropeirismo no Brasil Meridional. Org. Lucila Maria Sgarbi Santos; Maria Leda Costa Vianna; Véra Lucia Maciel Barroso. Porto Alegre, EST, 1995.
2
Carta de 13 de Julho de 1984 do Prefeito de Vacaria para o Arquiteto Oscar Niemeyer. Arquivo da Prefeitura Municipal.
3
Carta de 13 de Julho de 1984 do Prefeito de Vacaria para o Arquiteto Oscar Niemeyer. Arquivo da Prefeitura Municipal.
4
Carta de 13 de Julho de 1984 do Prefeito de Vacaria para o Arquiteto Oscar Niemeyer. Arquivo da Prefeitura Municipal.
5
Carta de 13 de Julho de 1984 do Prefeito de Vacaria para o Arquiteto Oscar Niemeyer. Arquivo da Prefeitura Municipal.
6
Jornal “O Pioneiro” de 26 de outubro de 1984.
7
Revista “A construção Região Sul”, número 241 – Nov. /1988, p. 24.
8
Revista “A construção Região Sul”, número 241 – Nov. /1988, p. 25.
9
Documento de 5 de janeiro de 1985. Arquivo da Prefeitura Municipal.
10
Revista “A construção Região Sul”, número 241 – Nov. /1988, p. 25.
11
Revista “A construção Região Sul”, número 241 – Nov. /1988, p. 25.
12
Notícia no site do PPG em Engenharia da UFRGS <http://www.ppgec.ufrgs.br/leme/noticias13.htm> acessado em 3 de novembro de 2010.
13
Relatório Técnico nº 25/2006 do Laboratório de Ensaios e Modelos Estruturais – LEME, Faculdade de Engenharia, UFRGS.
14
Segundo notícia de Zero Hora do dia 24/04/2008, mesmo sem haver um projeto de restauro detalhado a prefeitura pretendia, pelo que parece, iniciar a recuperação da estrutura e da impermeabilização.Fonte: <http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&newsID=a1839785.xml>. Acessado em 21/12/2010.
sobre os autores
Bruno Cesar Euphrasio de Mello é Arquiteto e Urbanista, Mestre pelo PROPUR, UFRGS.
Cícero Alvarez é Arquiteto e Urbanista, Mestre pelo PROPAR, UFRGS.