O objetivo principal desta memória foi traçar o percurso profissional e verificar possíveis relações teóricas que nos permitam resgatar e entender o debate acadêmico, bem como referenciar possíveis ações de urbanismo, tendo como objeto a metrópole paulista, onde trabalhei por mais de trinta anos.
Hoje minha pesquisa principal é sobre grandes projetos urbanos, pois entendo que em São Paulo, ainda não temos um modelo adequado que permita a redução das desigualdades existentes. A experiência européia, ao contrário da americana e asiática, parece mais adequada e esclarecedora por incorporar instrumentos e medidas de inclusão social, ter coordenação pública e não ser conduzida pelos interesses privados.
A crítica acadêmica aos grandes Projetos Urbanos é importante, mas insatisfatória. David Harvey (1) nos explica que o capitalismo (re)produz a pobreza e intervenções urbanas são, historicamente estabilizadoras da acumulação. As grandes transformações haussmanianas para Paris, o rodoviarismo de Robert Moses, para Nova York e o boom imobiliário chinês são os exemplos apontados. Queremos acreditar, entretanto, que, mesmo dentro do capitalismo, podemos melhorar a vida da maioria da população, com investimentos urbanos redistributivos. Esta crença, sem grandes ilusões, norteou (e vem norteando) meu percurso profissional e acadêmico, que vem se pautando sobre temas recorrentes: planos diretores, preservação do patrimônio histórico, verticalização, desenvolvimento local e projetos urbanos.
Planejamento e patrimônio
Para que e para quem interessa a preservação do patrimônio histórico? Com este tipo de indagação na cabeça, escrevi com meus colegas de inventário Sarah Feldman e Horácio Costa um texto de reflexão a respeito da nossa prática, para apresentar na reunião da SBPC em São Paulo na tensão pré-abertura de 1978. Este texto, intitulado “Transformações urbanas: preservação ou destruição”, foi também publicado pelo jornalista Júlio Moreno, especialista em urbanismo, na revista CJ Arquitetura, em número sobre patrimônio histórico (2).
O interesse por patrimônio histórico se ampliou no curso de especialização da FAU USP, denominado Patrimônio Ambiental Urbano, onde conheci os professores Ulpiano Bezerra de Meneses e Milton Santos, este último recém-chegado do exílio afro-europeu (3). A reflexão advinda do curso nos permite ampliar a questão do conflito preservação versus desenvolvimento e ampliá-la para a questão ambiental.
Porque é difícil preservar o ambiente e desenvolver as cidades? Porque a sociedade urbano-industrial não se preocupou com a dilapidação dos recursos naturais? Essa consciência só se desenvolveria bem depois da conferência de Estocolmo, em 1972, com o conceito de desenvolvimento sustentável presente no relatório Bruntland de 1987 e com a conferência da Terra no Rio em 1992. O conceito de preservação do ambiente urbano foi aplicado na definição da APP – Área de Proteção de Patrimônio da Baixada do Glicério e do Pátio do Colégio, realizada na Cogep e não regulamentadas em lei.
Também fundamental na minha formação de pesquisadora foi participar na Cogep – agora transformada em Sempla, Secretaria Municipal de Planejamento – do grupo de pesquisa coordenado por Gabriel Bolaffi, sobre evolução dos preços fundiários em São Paulo. A consultoria de Warren Dean, bem como a pesquisa e experiência realizada no Arquivo Histórico de São Paulo, despertou um gosto pelo resgate de elementos documentais para reconstruir histórias.
Por pesquisas amostrais, a equipe levantou as ofertas de preços de terrenos de 1900 até 1980, que indexados permitiram perceber sua evolução crescente como tendência geral, assim como suas oscilações, que buscamos explicar por aspectos conjunturais.
Apesar da pesquisa não ter sido publicada, ela gerou alguns trabalhos acadêmicos. O relacionamento com Gabriel Bolaffi me incentivou a pesquisar sobre a verticalização de São Paulo, que viria a ser parte de um trabalho maior. Além disso, inspirou o objeto da pesquisa acadêmica iniciada no curso de mestrado “Estruturas Ambientais Urbanas”, em 1978, na FAU-USP.
A pergunta inicial que deveria ser respondida pela pesquisa era: uma área urbana é cara, ou melhor, adquire um preço mais alto pela sua ocupação intensiva, ou a possibilidade do uso intensivo já confere a possibilidade de se auferir preços fundiários mais altos? Essa questão é recorrente entre os urbanistas europeus e americanos desde o começo do século XX. Em Gant, no Congresso de Urbanismo, em 1910, e no Plano Regional de Nova York, de 1916, ela é retratada, como informa Vitor da Silva Freire (4).
Ser orientanda de Gabriel Bolaffi, na primeira fase da pesquisa, permitiu não só ganhar um tema que me acompanha até hoje em minhas preocupações acadêmicas, como também participar de um grupo de leitura com pesquisadores que continuam tendo grande interlocução no meu trabalho: Nabil Bonduki e Raquel Rolnik. Ambos tinham, na época, estudos complementares ao meu: a relação Estado/Urbano, legislação e ilegalidades, crescimento horizontal e periférico da cidade, com grande interlocução com Lúcio Kowarick.
Os estudos da verticalização e os planos de São Paulo
O tema da pesquisa da verticalização foi sugerido por Gabriel Bolaffi no âmbito da Pesquisa de Evolução do Preço da Terra em São Paulo. Até hoje ele faz parte das minhas preocupações, pois é uma característica essencial das cidades brasileiras.
Interessava, naquele primeiro momento, verificar a relação entre a valorização fundiária e o crescimento vertical, uma questão antiga para os urbanistas. Mais adiante, fui buscar onde e quando aconteceu a verticalização em São Paulo. A explicação definitiva do processo, desvendada no mestrado e no doutorado sobre o tema, ainda está por ser revelada. Por que ocorre a verticalização em São Paulo, no Brasil e com as formas que assumiu e vem assumindo?
Parte da resposta está no entendimento da produção social do espaço urbano, no papel do estado como agente produtor e, principalmente, na evolução e estruturação do setor imobiliário paulista, nacional, e agora internacional.
Os primeiros arranha-céus construídos para renda dão lugar aos condomínios fechados e aos edifícios inteligentes do terciário, avançados produtos de um novo rentismo internacional.
E quanto à indagação para onde e quando ocorreu a verticalização em São Paulo? A resposta veio com a “descoberta” do registro de elevadores da Prefeitura, criado em 1920, e que continha a lista de todos os edifícios da cidade, manuscrita por ordem de licenciamento até 1939 sem distinção de ano e, após esta data, discriminados anualmente. Isto me permitiu elaborar um gráfico inédito do crescimento vertical da cidade a partir de 1940 até 1980, ano de início da pesquisa. A descoberta da referida fonte, essencial para a pesquisa, pode ocorrer após a construção conceitual de verticalização entendida como a possibilidade de multiplicação do solo urbano, permitida pelo elevador.
A construção de um quadro conceitual teórico, que levou anos para ser elaborado, permitiu a aproximação adequada com o material empírico. A Escola de Sociologia Urbana francesa foi essencial para a formulação da teoria. Uma vez que não existe de forma constituída uma teoria do urbanismo, somos obrigados a emprestar conceitos da economia, da sociologia, da geografia e até da filosofia para compor um instrumental que permita aproximações e mediações para alcançar nosso objeto real.
No caso da verticalização fui buscar em O capital e seu espaço, de Alain Lipietz (5) o entendimento de que o quadro construído segue uma periodização análoga ao desenvolvimento do capital. Em O tributo fundiário urbano (6) – livro do mesmo autor, que traduzi e não publiquei – encontrei o debate sobre a formação dos preços da terra urbana, que junto com os livros Os promotores imobiliários, de Christian Topalov (7), e A questão urbana, de Manuel Castells (8), me permitiu avançar ainda de forma limitada sobre a produção do espaço urbano e o processo de planejamento. Jean Lojkine e seu livro Estado capitalista e a questão urbana (9), me ensejou entender o papel e o conceito de Estado, essencial para a produção de edifícios. O que é o Estado na cidade (e no mundo capitalista)? David Harvey no seu livro Cosmopolitanism (10) afirma que é uma ficção, mas naquela época me contentei com a definição dos marxistas: o Estado representa as classes dominantes e articula seus diversos segmentos (capital industrial, financeiro, comercial, etc.) e produz as condições gerais para a reprodução do próprio capital.
O Estado, através de sua ação tributária, estabelece normas, leis e planos (ação normativa) para investir na produção da cidade (ação de investimento), através da sua ação de gestão. No caso da cidade capitalista o que se percebe é que a ação tributária, geral para toda a sociedade, produz benefícios para poucos. Isto é, todos nós pagamos impostos, enquanto planos e leis são elaborados no sentido de (re)produzir as condições gerais para o desenvolvimento do capital, para o benefício de poucos.
Esta questão foi importante na formulação do Plano Diretor de São Paulo de 1991, cujo princípio básico era a redução de desigualdades sociais, através da redistribuição de renda proporcionada pelos investimentos públicos. Historicamente, esses investimentos beneficiaram, na cidade de São Paulo, a população de mais alta renda.
As diferenças entre economistas neoclássicos e marxistas, a respeito da formação do preço da terra urbana, me ajudou a entender a verticalização. Para os marxistas a demanda capitalista por terra é que determina a valorização fundiária. Por outro lado o aumento da população e a produtividade da terra (coeficientes de aproveitamento) podem incrementar os preços dos terrenos.
Entender a organização e o papel na cidade da indústria da construção civil também é essencial para explicar a verticalização e a forma que ela assume nas diversas cidades brasileiras e no mundo.
A especificidade da indústria da construção civil e os obstáculos ao seu desenvolvimento foram apontados por Lojkine. A necessidade constante de base fundiária para a reprodução da ICC (indústria da construção civil) é um limite. Um paradoxo foi constatado em São Paulo. A partir do conceito de verticalização – entendido como a multiplicação do solo urbano possibilitada pelo elevador – nos perguntamos por que a legislação paulistana reduziu, ao longo do século XX, os coeficientes de aproveitamento, ou seja, a possibilidade de superar um dos limites do desenvolvimento da ICC ao multiplicar a base fundiária urbana. Assim chamei a minha dissertação de mestrado de A (des)verticalização de São Paulo (11).
A explicação para a constatação reside no papel da propriedade da terra na economia brasileira. A redução dos coeficientes favorecem menos o capital produtivo e mais os proprietários fundiários urbanos: a redução dos coeficientes de aproveitamento expandiram a demanda por terra apropriada para edifícios como mostram os mapas da pesquisa, e ao mesmo tempo, elevaram os preços do solo urbano de São Paulo.
Isso foi necessário porque a história de São Paulo coincide com a desistência da construção do metrô e a expansão da indústria automobilística. O padrão de verticalização da cidade se ampliou e se elitizou, através da legislação urbanística, ampliando também a demanda por automóveis. São Paulo é vertical e não densa, porque o sistema viário e de transporte não permite.
A dissertação de mestrado apresenta o panorama do crescimento vertical e uma periodização do fenômeno. Esse panorama, o paradoxo da pesquisa inicial e o processo de elaboração do Plano Diretor de 1991, definiram o conteúdo da pesquisa de doutorado: as origens do pensamento urbanístico da Cidade de São Paulo e a própria origem do crescimento vertical.
No Plano Diretor 1989/91 constatamos as limitações da legislação de zoneamento de São Paulo na regulação da cidade: 65% da população viviam (e vivem) em condições irregulares: cortiços, favelas e loteamentos clandestinos.
O zoneamento atende somente ao mercado formal. Chamou-me a atenção nos debates para a elaboração do Plano Diretor de 1991, a defesa, dos técnicos e do próprio setor imobiliário, do zoneamento. Naquela época propúnhamos eliminar as diferenças de equidade que o zoneamento estabelece e transferir para a municipalidade a outorga do direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento igual a 1 (um). O segmento de proprietários de terras cujo coeficiente era (4) quatro vezes a área do terreno, não quis perder seus privilégios adquiridos desde 1972 quando foi promulgada a 1ª lei de zoneamento assim denominada, da cidade de São Paulo.
Buscamos uma negociação com o coeficiente 2 e a venda do direito de construir acima desta base. Houve um rompimento com o setor imobiliário, até então um dos interlocutores mais presentes, na véspera da entrega do Plano Diretor à Câmara Municipal. Pelo que soubemos houve divergências internas no próprio Secovi – Sindicato das Empresas Imobiliárias, pois o capital produtivo também é proprietário de terras.
Posteriormente houve um “mesão” de negociação com diversos segmentos e ONG's. Os ambientalistas também estavam descontentes, embora o plano fosse preocupado com a questão ambiental e principalmente social.
A outorga onerosa da venda do direito de construir iria para um fundo que se voltaria para investimentos nas ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social, para melhorar as condições urbanas e habitacionais da população de mais baixa renda da cidade. Embora naquela época não tenha sido aprovado, o Plano Diretor Estratégico (PDE) 2004, traz muitos elementos contidos no Plano de 1991, também incorporados no Estatuto das Cidades, lei nacional que regula o desenvolvimento urbano, aprovada em 2001.
Uma questão que decorre do tema descrito é a da longa duração do processo de legitimação de instrumentos de urbanismo. Outra é a necessidade de um processo de interlocução amplo e diverso para a construção de um ideário urbanístico. Apresentamos o Plano Diretor não só em São Paulo como em muitas cidades do Brasil e isto permitiu uma construção coletiva de idéias. De novo, meus companheiros de academia, Raquel Rolnik, Coordenadora do Plano Diretor, e Nabil Bonduki, Superintendente de Habitação Popular formularam junto com Ermínia Maricato (Secretária de Habitação), as bases essenciais do Plano. Paul Singer, Secretário de Planejamento, se empolgou com a possibilidade de propor mediações em relação a sua obra seminal sobre desenvolvimento econômico e evolução urbana.
Com Christian Topalov (EHESS – École des Hautes Études em Sciences Sociales, de Paris) e de Luiz César de Queiroz Ribeiro (IPPUR – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, do Rio) cheguei ao debate sobre as origens do urbanismo moderno. Na pesquisa de Doutorado verifiquei que o urbanismo de São Paulo poderia ser considerado modernizado e não moderno. Para Topalov, o urbanismo moderno tem como objeto a cidade, o plano como instrumento principal e a questão social como discurso central. O urbanismo moderno propõe a transformação da sociedade e a redução de desigualdades como medida da própria reprodução capitalista. O urbanismo modernizador tem o capital e a sua reprodução como questão central (12).
É o que encontramos em São Paulo nos discursos de Vitor da Silva Freire (13). Ou na redução dos pés direitos das residências e dos apartamentos como medida de aumento de produtividade, como encontramos em Anhaia Melo e sua “Cidade como Negócio”. Ou ainda em Prestes Maia, com gabaritos propostos para São Paulo de 50 metros ou mais, estimulando o crescimento vertical e o “rendimento urbano”.
A verticalização é um tema que não me abandona até hoje. Em 2007-2009 estabelecemos uma rede de pesquisadores que estuda a verticalização nas cidades brasileiras nas suas mais variadas formas. Hoje, vários estudantes de pós-graduação estudam os condomínios fechados, os edifícios inteligentes do terciário avançado e as diversas formas que assumem o capital transnacional e homogeneízam as cidades.
Em São Paulo a qualidade dos apartamentos e dos edifícios nos primeiros períodos do crescimento vertical e sua relação generosa com o espaço público da cidade, vem se perdendo. A chamada necessidade de segurança vem fechando os espaços verticais para a própria cidade. Muros e grades internalizam e fecham a vida dos moradores de edifícios, tornando-os homogêneos e similares aos novos condomínios fechados, cerceando também as perspectivas dos espaços públicos.
O Plano Diretor 1991, do Governo da Prefeita Luisa Erundina, foi extensa e intensivamente discutido. Ele lançou sementes que resultaram na construção de importantes idéias, incorporadas posteriormente no PDE 2004. Para mim, o grande aprendizado foi perceber como é difícil, mas não impossível a mediação / interlocução com setores antagônicos (setor imobiliário, ecologistas e movimentos populares), na construção de um ideário comum.
Zoneamento e governança ambiental
Em 1996 assumi a Secretaria de Planejamento e Meio Ambiente de São José dos Campos com a tarefa de elaborar a lei de uso e ocupação do solo de um Plano Diretor aprovado no ano anterior no final da gestão da Prefeita Ângela Guadagnin.
Em síntese os conflitos foram os mesmos observados durante a elaboração do Plano Diretor PD 91. As elites e empresários buscando preservar áreas residenciais de alto padrão e, no caso de São José, reforçar muros de loteamentos fechados. A busca de maiores densidades em áreas centrais e em áreas de proteção ambiental. E movimentos populares e ecologistas disputando espaços na cidade. São José tem uma especificidade geográfica denominada “área do banhado em depressão”: no centro da cidade fica várzea do Rio Paraíba, que constitui uma paisagem especial. O conflito até hoje é a preservação desta paisagem que, naquela época, já estava ameaçava de ser invadida por prédios altos..
Os debates na cidade, sobre zoneamento, me permitiram organizar em parceria com o Lincoln Institute of Land Policy, coordenado por Martim Smolka, o Seminário “Políticas Públicas para o Manejo do Uso do Solo”, que se transformou numa publicação do Instituto Polis, até hoje muito demandada pelo seu interesse e atualidade.
Merece destaque a presença de Franco Mancuso e de Mark Gottdiener no referido seminário, ambos referências constantes dos meus trabalhos acadêmicos e do meu doutorado, finalizado em 1994. O primeiro, da Escola de Veneza, ao escrever As experiências do zoning, explica historicamente a construção desse instrumento que surge para separar usos, na Alemanha Bismarckiana, mais precisamente em Frankfurt em 1875. Separar o uso residencial do industrial e regular densidades era essencial nas primeiras cidades industriais, cuja concentração demográfica carregava o risco de doenças e de convulsões sociais.
Mancuso descreve muito bem como o zoneamento foi também utilizado para excluir a população indesejável dos bairros elitistas, baseados nas lavanderias dos chineses em São Francisco no final do século XIX. Seus exemplos iluminam e explicam a idealização dos governantes nas cidades brasileiras, em especial em São Paulo, com os bairros jardim, zoneados já em 1931, por Anhaia Mello e o artigo 40 do Código de obras de 1934,que definia ruas residenciais, antes da lei de zoneamento de 1972.
O sociólogo americano Mark Gottdiener também é lembrado até hoje por apontar a importância dos planejadores frente às forças de mercado, comparando-os aos domadores de elefantes, tentando mudar seu percurso. Isto nos remete aos limites da nossa profissão frente ao desenvolvimento das cidades (14).
O quanto podemos intervir nas cidades de forma mais justa sem parar o desenvolvimento do capital? O quanto podemos garantir boas condições de vida para a população como um todo? Já vimos como o zoneamento protege o espaço das elites urbanas, não só teoricamente com Mancuso, mas nas experiências de São José e São Paulo. Como garantir um espaço nas cidades para a população de baixa renda, que é excluída das áreas mais valorizadas e adequadas à urbanização?
A reforma urbana dos anos 1960 protagonizada, originalmente, pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, e a Constituição de 1988, resultaram no Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. Após 40 anos de luta a aprovação do Estatuto definiu instrumentos que limitam o direito de propriedade, mas ainda não são aplicados nas cidades, na sua plenitude. Embora aprovado em nível nacional cada cidade ainda é necessária a construção de uma legitimidade aprovada pelas forças locais.
A valorização fundiária constante e crescente nas grandes cidades “empurra” os mais pobres para as áreas de risco, inundáveis, proibidas pela legislação de serem ocupadas. Ou ainda para loteamentos periféricos, distantes das áreas de emprego, sem equipamentos e infraestrutura adequada. O artigo 182 da Constituição de 1988 prevê sanções às áreas vazias, ou subutilizadas seus nas cidades, pressionando seus proprietários a colocá-las no mercado possibilitando assim, por aumento de oferta a redução da valorização fundiária urbana. Esses instrumentos previstos já em 1988, para que a terra urbana cumpra sua função social, e ratificados pelo Estatuto da Cidade, devem ser regulamentados pela legislação municipal, que encontra reações à sua implementação. Esse exemplo reforça a tese de Gottdiener sobre o alcance do trabalho do planejador urbano.
Em São José dos Campos constatei que é possível superar esses limites, trabalhando tecnicamente com as equipes das prefeituras, capacitando-as para a discussão com a sociedade civil da elaboração da lei de zoneamento e da revisão da PGV. A interlocução e negociação com a sociedade civil pode ser um elemento de legitimação de políticas públicas. Essa possibilidade se ampliou na experiência do ABC.
A gestão compartilhada
Quando fui convidada para assessorar o Prefeito Celso Daniel (15) em assuntos regionais, tomei conhecimento mais de perto do Consórcio do Grande ABC e da Câmara Regional recém-criada. Minha primeira atividade foi participar de um seminário de experiências internacionais de “redesenvolvimento” regional de antigas áreas industriais esvaziadas ou dramaticamente afetadas pela reestruturação produtiva: Detroit, Bilbao, Barcelona, Galícia, Vale do Rhur, Randstat e Milão. Aprendemos que a saída para a crise requer esforço institucional que articula poder público, sociedade civil e iniciativa privada no centro desse novo desenvolvimento: a questão urbana. Projetos Urbanos redesenham o futuro com a construção coletiva de novas atividades.
Nesse seminário também percebi que nem tudo é globalização e muita coisa é possível de ser construída no nível local, aqui entendida como subnacional, regional ou municipal. Em 1997, um representante do Cepal apontou que 20% do PIB mundial é produzido globalmente, portanto, 80% à época (talvez 70% hoje), é produzido localmente – uma cifra nada desprezível.
Também pude perceber a importância dos sindicatos de trabalhadores na construção de políticas públicas. No caso de Sesto San Giovanni, cidade irmã de Santo André, situada na Região Metropolitana de Milão, os sindicatos tiveram um papel central na transformação das indústrias em micro e pequenas empresas que não só deram oportunidade de trabalho aos egressos industriais como ocuparam os galpões tombados com outras atividades, que as anteriormente, propostas: shopping centers e centros culturais. Os Sindicatos de trabalhadores, a Prefeitura e os empresários, conseguiram, dentro de uma construção coletiva de um Projeto Urbano a reocupação da cidade: 70% da área de siderurgia foi esvaziada e reocupada com atividades votadas às micro e pequenas empresas.
As experiências apresentadas no Seminário, a do Vale do Rhur, da Galícia e de Roterdã atribuíram também aos arquitetos o redesenho da transição da sociedade urbana industrial para outra voltada para a questão ambiental e do conhecimento. A transformação das cidades esvaziadas, em novas articulações produtivas, que também ficou clara com as experiências do vale do Silício e a Terceira Itália.
Um denominador comum a todas as experiências era a ativação do capital social (16) e que buscamos implementar no Grande ABC. A organização social da região ajudava. Em 1994, quando o Consórcio criado por Celso Daniel em 1990, dava sinais de retrocesso, em razão de sua não reeleição, foi lançada a campanha “vote no Grande ABC” para eleger deputados da região e buscar implementar bandeiras históricas. Causas como a Universidade Pública, obtida em 2004 com a criação da UFABC e grandes investimentos em infraestrutura, drenagem e ações de sustentabilidade.
Essa campanha consolidou, em 1995, o Fórum do Grande ABC, ONG de ONGs com 115 entidades representativas. A Câmara do Grande ABC articula de forma informal as sete prefeituras, a sociedade civil organizada e o Governo do Estado. Posteriormente, com o Governo Lula, o Governo Federal passou a integrar a Câmara e contribuir na ação regional compartilhada.
O BID ajudou com recursos para consultorias. O Banco Mundial, o BNDES e a Caixa Econômica também foram mobilizados e continuaram os investimentos na região conquistados através da sua mobilização social. Num dos debates da Câmara em Ribeirão Pires tive a oportunidade de conduzir Jordi Borja, que encantou componentes da Câmara regional do ABC. Celso Daniel com ajuda de Raquel Rolnik e sob a coordenação de Mauricio Faria, produziram o projeto urbano “Eixo Tamanduatehy” que embora se localizasse em Santo André retomou o debate metropolitano até então perdido.
Embora tenha produzido resultados tímidos, o projeto se tornou paradigmático e buscou, através de uma consulta a escritórios de arquitetura, internacionais e nacionais, construir uma visão de futuro para uma área industrial esvaziada e ocupada por empreendimentos pontuais e por moradias precárias.
Juan Busquets, Christian de Portzamparc, Eduardo Leira e Cândido Malta Campos Filho, lideraram equipes que incluíram outros como Nuno Portas, Manuel Herce, Jorge Wilheim, Bruno Padovano, Luiz Bonfim e muitos outros. A importância dessa iniciativa foi mobilizar a sociedade local e alargar o debate de projetos urbanos metropolitanos no circuito técnico. É importante ressaltar que o jornal “Diário do Grande ABC” teve um papel de apoio midiático e difusão de idéias na construção das Políticas Regionais, destacando-se a participação de Alexandre Polesi. Ele se envolveu diretamente no Projeto Eixo Tamanduatehy propondo até um box informativo(um escritório local de informações) implantado na própria área, para informar a população sobre as transformações propostas.
A visualização das propostas também foi possível, através da construção de uma grande maquete, nos moldes da cidade de Roterdã, permitindo aos cidadãos entender os possíveis projetos e sua forma urbana concreta.
O Eixo Tamanduatehy e a trajetória de Jordi Borja no Brasil, principalmente no Rio, ensejaram debates e estudos dos quais resultaram uma visão crítica sobre o planejamento estratégico contemporâneo e os projetos urbanos. Neste âmbito, Otília Arantes, Carlos Vainer e Erminia Maricato produziram o livro A cidade do pensamento único (17), muito útil por esta análise crítica, mas que não aponta saídas para o urbanismo contemporâneo.
Um debate entre Celso Daniel e Carlos Vainer no IMES (Instituto Municipal de Ensino de São Caetano do Sul, hoje UNICSUL, Universidade de SCS), em dezembro de 2001, foi muito importante para que eu percebesse que, apesar de concordar com parte da visão crítica a respeito da competição entre cidades, é possível construir uma visão de urbanismo progressista, com justiça social.
Meu debate com Otília Arantes, quando estava estruturando o programa de pós-graduação do Mackenzie, e a quem gostaria de contratar, me mostrou algumas diferenças com os três autores do livro. Acredito que através de políticas urbanas podemos reduzir desigualdades, melhorar a vida da população e criar cidades mais belas. Isto estava presente já no meu Doutorado em 1994 e na minha vida acadêmica.
A relação com a universidade também esteve presente na Ação Regional do Grande ABC. Merece destaque a pesquisa inovadora que estruturamos com o antigo IMES, sobre serviços e sua classificação absolutamente necessária para entender as transformações produtivas contemporâneas. Isto esteve presente nas minhas preocupações quando assumi em 2001 a Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (e não Emprego como no nome anterior) da Prefeitura de Santo André.
Projetos urbanos, sustentabilidade e inclusão social
Minha preocupação com a transformação de áreas em reestruturação produtiva, que surgiu com o Eixo Tamaduatehy em 1998, permanece até hoje. Ela se desenvolveu ainda mais no âmbito da Emurb – Empresa Municipal de Urbanização quando fui chamada pela Prefeita Marta Suplicy para coordenar o Programa de Reabilitação da Área Central e depois presidir a própria Emurb, entre 2002 e 2004.
Nesse período produzi, junto com meus companheiros de urbanismo na FAU Mackenzie, o livro “A Cidade que não pode parar: Planos Urbanísticos de São Paulo no Século XX”. Candido Malta Campos Neto me ajudou a organizar e implementar a idéia que tivemos em Buenos Aires, Silvana Zioni e eu, quando vimos o livro Mi Buenos Aires herido (18), sobre os planos da cidade. As viagens são sempre fontes de circulação de idéias. Denise Antonucci, Luiz Ackel e nossos estudantes de graduação e pós-graduação participaram da elaboração do livro.
Nele mostramos que Planos e Projetos Urbanos que existiram, são complementares e não antagônicos e foram implementados concomitantemente na cidade de São Paulo sempre ao sabor dos interesses capitalistas hegemônicos na cidade. Isso contradiz alguns autores que consideram Planos apenas como discurso. Eles também servem de referência para a metrópole improvisada ou, como queria Lucio Kowarick (19) nos anos 1970, dentro da “lógica da desordem”.
A relação com o BID na estruturação do financiamento de 100 milhões de dólares para o centro de São Paulo me permitiu avançar no conhecimento de Projetos Urbanos no mundo. Além de Villes Nouvelles, dos projetos de Milão, Bilbao, Londres e Barcelona, Paris tornou-se foco das minhas pesquisas.
A ZAC – Zone d’Amenagement Concerté, zona de planejamento negociado da Citroen, da Renault e Paris Rive Gauche são exemplares, mas pouco se assemelham a São Paulo, que não tem ainda Projetos Urbanos. A Nova Luz poderá se tornar referência para os 25% de área urbanizada de Operações Urbanas que foram propostos pela Prefeitura de São Paulo como Projetos Urbanos.
Após a Emurb, onde ficou clara a intervenção limitada por interesses econômicos, tive a oportunidade de dirigir a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde estruturamos o curso de doutorado sob a então coordenação de Gilda Bruna.
Minha pesquisa principal hoje tem como objeto grandes Projetos urbanos. Não temos no Brasil um modelo de gestão, com inclusão social, para essas intervenções contemporâneas. Harvey e outros autores marxistas (Arantes, Davis, Vainer) apontam que a pobreza é inerente ao capitalismo e essas transformações só atendem à demanda da acumulação. Exemplos internacionais, como na França e na Holanda, apontam que é possível construir cidades e garantir, moradia, espaços públicos e qualidade de vida a partir de bons projetos urbanos. O meu interesse hoje é avançar em relação à crítica acadêmica imobilizante: Como poderemos construir um modelo inclusivo no Brasil?
notas
NE
Este texto foi apresentado na EHESS – École de Hautes Études em Sciences Sociales no dia 7 de fevereiro de 2011 e debatido pelos professores Alain Lipietz (Cepremap) e Cristina Leme (FAU USP), como última tarefa de pós-doutorado, iniciado em dezembro de 2006, sob a coordenação do professor Afrânio Garcia e apoio do professor Ignacy Sachs, ambos da EHESS.
NA
Por problemas de edição, ficaram sem o merecido destaque professores que marcaram minha trajetória acadêmica e política: Maria Adélia Aparecida de Souza, minha orientadora de mestrado e doutorado, Milton Santos, Flávio Villaça, Celso Lamparelli e Ermínia Maricato.
1
HARVEY, David. Le Capitalisme contre le droit a la ville. Paris, Amsterdam, 2011.
2
FELDMAN, Sarah; SOMEKH, Nádia; Costa, Horácio. Transformações urbanas: preservação e destruição. C J Arquitetura, São Paulo, v. 19, 1978, p. 42-44.
3
Deste autor, ver: SANTOS, Milton. O espaço dividido. São Paulo, Edusp, 2004; SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo, Edusp, 1970.
4
FREIRE, Victor da Silva. Os melhoramentos de São Paulo. In: Revista Polytecnica, n. 33, vol. VI, São Paulo, fev./mar. 1911.
5
LIPIETZ, Alain. Le capital et son espace. Paris, Maspero, 1977.
6
LIPIETZ, Alain. Le tribut forcier urbain. Paris, Maspero, 1974.
7
TOPALOV, Christian. Les promoteurs inmobiliers. Paris, Mouton, 1974. Do mesmo autor, ver: TOPALOV, Christian. De la Planification a l’ecologie, maissance d’um nouveau paradigme de l’action sur La ville ET l’habitat? Conferência apresentada na Visa Housing. Montreal, 1992; TOPALOV, Christian. De la cuestion social a los problemas urbanos los reformadores y la poblacion de las metropolis Del siglo XX. Conferência apresentada no departamento de antropologia da Universidade de California. California, Bekerley, 1986; TOPALOV, Christian. Le profit, la rente et la ville. Paris, Economica, 1984; Topalov, Christian. La urbanizacion capitalista. Mexico, Edicol: 1979.
8
CASTELLS, Manuel. La question urbaine. Paris, Maspero, 1972.
9
LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo, Martins Fontes, 1979.
10
HARVEY, David. Cosmopolitanism and the Geographies of Freedom, Nova York, Columbia University Press, 2009.
11
SOMEKH, Nadia. A (des)verticalização de São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1987.
12
Ver sobre o tema: SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo, Nobel, 1997.
13
FREIRE, Victor da Silva. Op. cit.
14
GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo, Edusp, 1993.
15
Deste autor, ver: DANIEL, Celso. Poder local e socialismo. São Paulo, Perseu Abramo, 2002.
16
PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia. São Paulo, FGV, 2008.
17
ARANTES, Otília B. Fiori; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 75-103.
18
VEDIA, Juan Molina. Mi Buenos Aires herido: planes de desarrollo territorial y urbano (1535-2000). Buenos Aires, Colihue, 1999.
19
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sobre a autora
Nadia Somekh é professora titular da FAU Mackenzie, conselheira do IAB / Conpresp e ex-presidente da Emurb (2002/2004).