Introdução
O estudo dos valores a partir de diversas teorias - a axiologia - tem despontado como tema de pesquisa em diversas áreas do conhecimento. No campo da conservação (1) do patrimônio cultural os valores passaram a ser vistas por alguns como fontes críticas para a tomada de decisão, e principalmente pela compreensão de que as ações de conservação são significativamente influenciadas por uma faixa mais extensa de interesses vinculados aos diferentes atores envolvidos no processo. Assim como apontam as pesquisas desenvolvidas pelo Getty Conservation Institute (GCI), sabemos que o patrimônio material tem sido tradicionalmente avaliado e conservado por seus atributos culturais como beleza, apuro artístico, etc. No entanto, recentemente percebe-se que outras motivações, como os valores econômicos e políticos, também tem se tornado importante fator de influência na gestão da conservação. Principalmente, nas sociedades contemporâneas podemos dizer que os fatores econômicos muitas vezes têm precedido e influenciado na forma de valorização do patrimônio e na tomada de decisão sobre a sua conservação (2).
Frente às transformações conceituais ocorridas no campo do patrimônio, e ainda à emergência do relativismo cultural e epistemológico (3), vamos notar cada vez mais o afloramento de valores divergentes nas ações de conservação, situação em que teremos na realidade um número ampliado de atores interessados e envolvidos no processo. Neste contexto, entende-se hoje que a conservação é um processo social, ou seja, uma atividade que resulta de processos espaciais e temporais específicos (4). Assim, este artigo discutir a necessidade do avanço no conhecimento científico sobre o processo de valorização do patrimônio e sua relação com o estabelecimento de políticas culturais mais democráticas.
A partir de uma revisão bibliográfica (5) percebe-se que pesquisas apontam que, para se fazer com que o campo da conservação avance na construção de políticas públicas mais democrática e sustentáveis seria preciso envolver as esferas da conservação em seus contextos específicos, informando os processos de decisão, fomentando os vínculos entre as áreas do conhecimento envolvidas, e capacitando os profissionais da conservação e organizações a responder melhor no futuro, através “da prática e da política” (6). Neste sentido é que têm sido feitas críticas à agenda de pesquisa baseada nos aspectos materiais do patrimônio apontando as limitações que suas contribuições envolvem, principalmente porque estas não ensinam como avaliar significados complexos e valores que envolvem este tipo de atividade, além de como negociar as decisões. Desta forma torna-se necessário o desenvolvimento de pesquisas sobre os processos de avaliação e valorização dos bens culturais, as quais são apontadas como “da mais alta relevância na contemporaneidade, na medida que ela[s] nos permite[m] identificar e entender os valores envolvidos na área da conservação, condição necessária para a formulação de qualquer política mais abrangente para o patrimônio” (7).
Definição e concepções sobre a natureza dos valores
Nesta discussão, cabe ainda ressaltar que os valores do patrimônio têm sido vistos muitas vezes como “contingentes” e ou como “objetivamente” dados. Na primeira concepção, os valores não são encontrados nos objetos, assim como não seriam vistos como “imutáveis”, como antes estabeleceram as teorias anteriores da conservação. O discurso predominante no campo da conservação muitas vezes se pautava na noção de que o “valor” seria uma qualidade “intrínseca” dos objetos. Acreditamos que nenhuma concepção de valor poder-se-ia apoiar completamente, quer seja na visão objetivista, quer seja na visão subjetivista. Com a compreensão sobre sua objetividade social, o valor seria visto por como “um produto da interação entre o artefato e seu contexto”, onde o valor não emanaria do artefato em si mesmo (8).
Nesta problemática, seria fundamental compreender de onde vêm os valores. Aqui, a concepção da contingência do valor enfatiza a importância do processo social de formação do valor. Isso não quer dizer que a concepção contingente do valor não eliminaria possibilidade de que alguns valores possam ser universalmente aceitos. Nesta concepção, tomando como exemplo o caso das Pirâmides do Egito, poderíamos pensar que seus “valores socialmente construídos são vistos como universais porque são amplamente aceitos, não porque são verdades objetivas” (9).
O termo “valor” como o utilizamos hoje em quase todas as atividades humanas deriva da economia, onde segundo a análise de Marx, foi possível desvendar suas características essenciais em termos gerais. Segundo Vázquez, a análise do valor econômico de Marx revelara-se muito fecunda, no sentido que evidencia seu significado social, permitindo responder a uma questão essencial sobre a “objetividade ou subjetividade dos valores ou sobre o tipo particular de sua objetividade” (10). Na análise marxiana, é possível perceber a dupla relação com as propriedades naturais de um objeto e com o próprio sujeito que o utiliza, sem os quais não existiria o “valor de uso” (11). Este, por sua vez, que depende da “utilidade” do objeto natural e que só pode existir para o homem, no meio social; esta utilidade não seria algo “etéreo”, mas sim esta estritamente ligada às propriedades do objeto. Assim, o objeto pode existir com suas propriedades materiais; estas, seriam suporte do valor de uso, somente ser apreciado pelo homem social. Seria interessante notar, por contraposição, que enquanto o “valor de uso” de um objeto está relacionado à sua utilidade e a um significado dado socialmente, o “valor de troca” de um objeto se relaciona à quantidade deste mesmo objeto, não mais às suas propriedades.
Quando um objeto possui valor de uso, dizemos que este satisfaz uma necessidade humana, independentemente de ser natural ou produto do trabalho humano. No entanto, quando estes produtos se destinam não somente a serem usados, mas sim trocados, estes se transformam em mercadoria, adquirindo um duplo valor: de uso e de troca, diferentes entre si. Desta forma, interessa aqui ressaltar que tanto o valor de troca como o de uso tornam-se propriedade do objeto somente em relação ao homem, como uma propriedade humana e social, embora esta propriedade não se apresente no objeto (no caso, a mercadoria) com a clareza própria do valor de uso; além disso ambos os valores atribuídos ao objeto só existem em função de suas propriedades naturais e em relação ao homem social.
Assim é que se compreende que os valores são criação dos homem, existindo no e pelo homem. Num outro sentido, as coisas naturais só adquirem valor para os homens, quando incorporadas por estes, numa relação especial, no seu mundo de coisas humanizadas, onde suas propriedades objetivas podem tornar-se valiosas. Desta forma, pode-se dizer que os valores possuem uma objetividade especial que se distingue da objetividade física dos objetos que existem ou podem existir independentemente do homem, à margem da sociedade. Sua objetividade seria então uma objetividade especial -humana e social- que não se reduziria ao psíquico do sujeito nem às propriedades materiais de um objeto real. Tratando-se assim de uma “objetividade que transcende o limite de um indivíduo ou de um grupo social determinado, mas que não ultrapassa o âmbito do homem como ser histórico-social” (12). Dentro desta concepção da natureza dos valores, estes existiriam assim segundo uma objetividade social, num mundo social. Acreditamos que seria esta objetividade social que nos possibilitaria o reconhecimento de valores universais, como dito anteriormente.
Hoje temos a compreensão de que um mesmo produto humano pode assumir vários valores, embora um deles possa ser o determinante. Assim, podemos dizer, como o faz Vázquez, que uma obra de arte pode ter valor estético, mas também um valor político ou mesmo moral. Nesta avaliação, seria “inteiramente legítimo abstrair um valor desta constelação de valores, mas com a condição de não reduzir um valor ao outro” (13). Assim, podemos avaliar uma obra de arte sob o ponto de vista de seu valor religioso ou político, por exemplo, mas sempre com a condição de não tentar deduzir destes valores seu valor estético. Se um indivíduo condena uma obra de arte segundo um ponto de vista moral, nada afirma sobre seu valor estético; simplesmente estaria afirmando que a obra em questão não realiza o valor moral que julga que esta deveria realizar.
Compreendendo esta abordagem, poderíamos pensar se seria legítimo priorizar determinados valores de um objeto ou lugar, em detrimentos de outros valores, atribuídos a partir de diferentes julgamentos de valor. Nos parece que seria necessário partir dos diferentes ângulos de visão sob os quais o patrimônio pode ser observado, agindo de forma a garantir a manutenção de sua "significância cultural", ou seja, manutenção dos diferentes significados que são abarcados pelo patrimônio (14).
O papel dos valores na conservação de bens culturais
Observando a trajetória do campo do patrimônio, vamos perceber que a atividade de conservação de bens culturais foi concebida em relação ao conhecimento e aos métodos científicos baseados na lógica objetiva e, consequentemente, parecendo estar além da compreensão dos julgamentos de valor. Por outro lado, o processo de tomada de consciência histórica moderna e a emergência da crítica como instrumento de conhecimento da realidade vai tornar explicitas as relações estabelecidas na avaliação, proteção e conservação dos bens culturais até então implícitas. Assim, vamos perceber hoje que na conservação contemporânea a questão dos valores vai se tornar um tema central. Desta forma, segundo Jukka Jokilehto, a conservação vai ser caracterizada hoje principalmente como um processo reflexivo, notando-se que a definição e o tratamento do patrimônio cultural tem sido caracterizada pela existência de julgamentos de valor conflitantes, que não podem ser reduzidos a um único critério (15).
Sabemos que o patrimônio material tem sido tradicionalmente avaliado e conservado por seus atributos culturais como beleza ou outro sentido associado aos lugares, edificações ou objetos. No entanto, hoje se percebe que também o patrimônio é valorizado tanto em termos econômicos, como politicamente, socialmente, espiritualmente, etc. Além disto, cabe notar que decisões que muitas vezes influenciam fortemente na atividade de conservação do patrimônio, estão desvinculadas dos domínios discursivos e práticos desta atividade. Neste sentido, percebe-se que outras motivações, provindas de interesses econômicos e políticos por exemplo, também têm se tornado importante fator para a gestão da conservação de bens culturais.
Neste contexto, nota-se que os desafios desta atividade surgem dos contextos e não dos bens em si, ou seja, dos valores que são a estes atribuídos. Segundo Avrami, seria mais importante que os envolvidos na conservação se preocupassem com as funções que o patrimônio desenvolve na sociedade, seus usos, etc., que são as fontes reais de seu significado e a razão de ser da conservação. Neste sentido, muitos pesquisas já estariam sendo desenvolvidas, por exemplo, na Inglaterra, pela English Heritage, nos Estados Unidos, pela National Park Service e na Austrália pelo ICOMOS, na tentativa de incorporar os valores mais efetivamente no planejamento e gestão da conservação, inclusive nas tomadas de decisão.
Compreende-se que toda ação de conservação é modelada pela atribuição de valor, num dado contexto social, com determinados recursos disponíveis, prioridades, escolhas, etc. Assim, para Avrami, os desafios contemporâneos da conservação emanariam de três fontes distintas: primeiramente, das condições físicas dos bens -incluindo materiais, estruturas, deterioração, etc.; em segundo lugar, dos contextos de gestão -incluindo fundos e recursos, políticas, etc.; e finalmente da “significância cultural” e valores sociais -incluindo os significados do patrimônio, atores, impactos das intervenções, etc. É interessante notar que as observações acerca da necessidade de se entender a conservação nos processos sociais que a envolvem tornam-se mais prementes quando percebemos que os esforços de pesquisa no campo têm se dado majoritariamente sobre as condições físicas dos bens culturais e patrimoniais; no entanto, a elucidação da atividade de conservação enquanto uma complexa prática social que nos permite perceber que mesmo as intervenções sobre o patrimônio não derivam apenas de suas condições físicas, mas sim de seu contexto social, incluindo aí outros fatores existentes. A dissociação entre a conservação do patrimônio e seu contexto social seria vista como bastante danosa para a própria subsistência da atividade, já que desta forma esta correria o risco de perder seu próprio lugar na agenda social.
A elucidação da atividade da conservação enquanto um prática social, aponta a necessidade de compreensão de como se dão as formas de atribuição de valor ao patrimônio, ou seja, “como os objetos, coleções ou edificações e lugares são reconhecidos como patrimônio” (16), conforme vimos, já que estes surgem de “julgamentos de valor e decisões conscientes” (17), onde os valores podem ou não estar explicitados. E é o entendimento deste processo que nos permite dizer, em última instância, que a finalidade da conservação não vai ser mais a manutenção dos bens materiais por si mesmos, mas sim a manutenção dos valores neles representados (18). É neste sentido, concordando com Avrami, que compreendemos que a intervenção física atende apenas às exigências de determinados valores, e principalmente torna-se apenas um dos “meios” para se obter este “fim”. Desta forma, num processo dialético, percebe-se que “a atividade de conservação do patrimônio modela a sociedade e é modelada por esta” (19), e suas atividades respondem às exigências de diferentes valores. É neste sentido que compreendemos, segundo David Lowenthal, que “o patrimônio nunca é meramente conservado ou preservado; ele e modificado –tanto acrescido (enhanced) quanto degradado- por cada nova geração” (20). Assim, compreende-se que a conservação de bens culturais envolve uma série de processos culturais, sociais e valorativos, não se tratando apenas da categorização em uma coleção de objetos e lugares.
Hoje vamos perceber, por exemplo, que o processo de atribuição de valor se inicia quando indivíduos, instituições ou comunidades decidem que algum objeto ou lugar é merecedor de conservação, ou seja, que representa algo sobre eles ou sobre um passado que mereça ser lembrado e que deve ser transmitido às futuras gerações. No entanto, percebemos mais explicitamente que o patrimônio é valorizado de diferentes formas, segundo diferentes motivações, as quais vão corresponder a diversos ideais, éticas e epistemologias. Assim, poderíamos pensar nos divergentes resultados que poderiam surgir deste processo, já que “diferentes forma de atribuir valor, por outro lado, leva a diferentes abordagens na preservação do patrimônio” (21).
Considerando essa problemática, no período de 1998 até 2005, o Getty Conservation Institute (GCI) desenvolveu uma pesquisa denominada “Research on the Values of Heritage”, sobre os valores do patrimônio, que objetivou estabelecer vínculos entre as abordagens econômicas e culturais de valorização do patrimônio (22). O Instituto então publicou os resultados da pesquisa, primeiramente em três volumes de ensaios, como Economics and Heritage Conservation: A Meeting Organized by the Getty Conservation Institute, resultante de um encontro ocorrido em dezembro de 1998, em Los Angeles, e publicado em 1999. Posteriormente publicaram Values and Heritage Conservation: Research Report, no ano 2000, que trata especialmente de um conjunto de textos que trazem uma abordagem multidisciplinar sobre o tema da valorização do patrimônio cultural e depois o relatório de pesquisa intitulado Assessing the Values of Cultural Heritage: Research Report, em 2002, que apresenta um conjunto de abordagens valorativas, conceitos e metodologias provenientes de diversas áreas do conhecimento. Resumidamente, os resultados apontaram para a inexistência de metodologias reconhecidas e amplamente aceitas para se avaliar (assessment) os valores envolvidos, tanto quanto as dificuldades de se comparar os resultados de avaliação de valores econômicos e culturais.
Um dos pontos importantes da discussão travada no encontro de 1998, seria a preocupação com a crescente avaliação do patrimônio em termos de valor econômico, em detrimento de outras abordagens de avaliação. Acreditava-se, por outro lado, que na avaliação econômica os métodos utilizados seriam insuficientes para identificar os vários valores do patrimônio, ou seja, os valores relacionados a seu “significado histórico, simbólico e espiritual, sua função política, suas qualidades estéticas, além da própria capacidade do patrimônio em auxiliar as comunidades a negociar e formar sua identidade” (23). Outra conclusão relevante do encontro foi a compreensão de que o patrimônio é essencialmente uma noção pública e coletiva. Para Mason, “mesmo que o patrimônio seja certamente valorizado por indivíduos, sua raizon d’être é, por definição, sustentar a esfera do interesse público e do bem público” (24). Desta forma, percebe-se ainda mais a necessidade de melhor compreender os processos sociais que estão por trás da atividade de conservação, com o objetivo de estender as decisões sobre os múltiplos valores atribuídos ao patrimônio.
O patrimônio cultural na esfera do interesse público e do bem público
É a partir desta constatação que gostaríamos de continuar nosso trabalho, discutindo a noção coletiva do patrimônio cultural, que, ao nosso ver, derivaria da própria noção de bens culturais enquanto “recursos”. Nesta direção, em seu ensaio intitulado “Valor e significado nos recursos culturais”, William D. Lipe nos apresenta, mesmo que indiretamente, uma perspectiva sobre a questão da escolha de quais “recursos” culturais deveriam ser protegidos e preservados, e quais deveriam ser relegados à destruição. Partindo de uma análise do campo da arqueologia, o autor, define a gestão dos recursos culturais como uma atividade “que trata dos objetos que serão recebidos do passado e como serão usados no presente e futuro”, e “representa a emergência de uma consciência de si mesmo para um processo normalmente implícito tão antigo quanto a cultura humana” (25). Seria, então, na compreensão deste processo de gestão que o autor buscaria desenvolver uma discussão sobre a necessidade de uma estrutura apropriada para se fazer escolhas, tomar decisões. Neste sentido, Lipe trata primeiramente da relação entre os bens culturais, vistos como “recursos”, e os valores, partindo da idéia de que o valor dos objetos deve ser entendido em relação a alguma finalidade ou uso. A discussão sobre os valores contribuiria para a compreensão de como os bens culturais materiais do passado podem ser entendidos como recursos culturais, e principalmente qual seria seu papel em prover a continuidade cultural.
Lipe também parte daquela concepção de que os valores não são inerentes aos recursos culturais, mas sim atribuídos pelos indivíduos e dados pelo contexto cultural, sendo assim vistos como relativos. Com isso, o autor compreende a complexidade da atividade dos envolvidos na conservação de bens culturais, principalmente no que diz respeito à escolha dos recursos a serem usados no presente e preservados para o futuro. Essa perspectiva se torna mais complexa quando partimos da compreensão de que estas decisões seriam sempre re-avaliadas no futuro segundo padrões ou critérios que não poderiam ser previstos (26). Neste sentido, o autor nos adverte que um recurso cultural pode ser “usado” (e a partir daí, valorizado) de forma diferente, segundo cada geração, por exemplo. Deste ponto de vista, quando tratar de um recurso, num tempo futuro, o valor nele percebido não será idêntico ao seu valor em seu contexto original, pois provavelmente nenhum recurso cultural antigo tenha a mesma função no contexto atual da mesma forma que no passado.
Neste esquema proposto pelo autor, percebe-se que a sociedade atuaria tanto ativa quanto passivamente na conservação dos bens enquanto recursos; no entanto, percebe-se que a sua habilidade para tal atuação estaria relacionada à existência de determinadas instituições sociais. Estas instituições é que proporcionariam o estabelecimento do entendimento público, apreciação dos recursos, etc. Segundo esta mesma perspectiva, Lipe clamaria por uma abordagem universal, assim como coloca Hannah Arendt, no sentido em que, para o mesmo, hoje teríamos a consciência da importância da conservação ambiental e cultural para a manutenção do “mundo comum” ou do “interesse humano comum”, em detrimento de uma perspectiva nacionalista (27). Para Lipe, se destruímos ou consumimos esses recursos em benefício privado, os retiramos da esfera pública e impossibilitamos que outras gerações os encontrem, assim como o fizemos.
Assim como apontou a English Heritage, em 1997, hoje podemos perceber a necessidade de lhe dar com a sobreposição das interpretações do significado do patrimônio, permitindo discussões entre os profissionais envolvidos na conservação e o restante da sociedade. No entanto, percebemos também o papel dos experts no esclarecimento dos diferentes significados do patrimônio; estes devem oferecer as informações necessárias para que a população local possa, por exemplo, compreender o porque -do ponto de vista científico e acadêmico- da importância de um determinado aspecto do patrimônio para o nível municipal, regional, nacional ou mesmo internacional. Assim, torna-se necessária uma abordagem que permita a compreensão mútua sobre o sentido de um ambiente construído, como uma alternativa efetiva e poderosa de ampliar o conhecimento e envolvimento públicos.
Assim, nos parece pertinente a idéia de que, considerando a construção tanto da noção coletiva de patrimônio, assim como a do interesse público na conservação dos bens culturais, a prática da conservação, vista a partir da problemática apresentada, vai demandar um espaço público também assegurado por procedimentos democráticos, que garantam um equilíbrio que só pode ser alcançado mediante a formação de compromissos, onde as negociações pressuporiam a disponibilidade de cooperação, ou seja, a disposição de, respeitando as regras do jogo, chegar a resultados, minimamente aceitáveis, que possam ser aceitos por todas as partes, ainda que por razões distintas.
Neste sentido pode ser profícua a idéia do delineamento de um modelo deliberativo de espaço público, que se apoiaria no consenso de fundo baseado no fato de que os cidadãos partilham de uma mesma cultura, desenvolvido em amplos e diversificados espaços públicos autônomos e em procedimentos de formação democrática da opinião e da vontade políticas, institucionalizadas. Este modelo de democracia conta com a intersubjetividade dos processos de entendimento, os quais se realizariam na forma institucionalizada das deliberações, nas instituições parlamentares ou mesmo na rede de comunicação dos espaços públicos políticos. Tal modelo pode ser encontrado nos trabalhos de Jürgen Habermas (28). Aqui, nos parece interessante considerar o novo arranjo político onde Habermas vai destacar o papel de uma formação horizontal da vontade política baseada no consenso alcançado argumentativamente e orientado ao entendimento mútuo. Seria, então, neste sentido que o espaço público e a sociedade civil, na concepção republicana, teriam um papel estratégico e fundamental, ou seja, o papel de garantir “a força integradora e a autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos” (29).
Habermas oferece uma abordagem contida em sua ética da discussão (30). Para ele, a ética da discussão não visa obter, a partir do conteúdo normativo das pressuposições pragmáticas da argumentação, um princípio moral universal. Para Habermas, mesmo que as questões políticas envolvam quase sempre aspectos morais, seria verdade que essas questões exigiriam respostas ou decisões por parte das instâncias políticas que não seriam de natureza moral, pois certas questões políticas relacionar-se-iam a questões empíricas, a interpretação de fatos materiais, a explicações, a prognósticos, etc. Neste sentido, a maior parte dos conflitos, enfim, provêm da colisão de interesses de grupos e diz respeito a problemas de partilha, que não podem ser regulados a não ser em meio à formação de compromisso.
Na realidade, mudanças necessárias no arranjo político já tem sido apontadas por diferentes pesquisadores no que diz respeito à formulação de políticas públicas. Hoje, por exemplo, percebe-se que as políticas públicas urbanas têm passado por modificações significativas, especialmente nas últimas décadas do século XX. Como aponta Maria de Lourdes Dolabela Pereira, onde nota-se que "a adoção de novos dispositivos legais e interinstitucionais, bem como a multiplicação de interlocutores – dentre os quais destaca-se a preponderância das comunidades” (31), têm demandado alterações nestas políticas, assim como a aprendizagem de novos modos de ação política. Por outro lado, vamos perceber que há outra uma mudança nestas políticas: “a centralidade do Estado é substituída por relações contratuais entre Estado e coletividades locais e cresce a importância da coordenação de atores com interesses e lógicas diferentes” (32). As novas políticas urbanas vão ser caracterizadas pelas pelos espaços descentralizados de negociação e deliberação, parcerias, pela contratualização e negociações que envolvem esses diferentes atores.
Patrimônio compartilhado, valores compartilhados ou entendimento mútuo de valores divergentes?
Conforme vimos, nos parece necessária a superação da oposição entre as perspectivas objetivista e subjetivista dos valores culturais, afirmando, sim, a possibilidade de se pensar a sua objetividade especial, humana e social. Asim poderíamos pensar a conservação do patrimônio a partir de uma perspectiva intersubjetiva. No entanto, seria necessário ainda pensar em como integrar diferentes valores culturais no estabelecimento de políticas de patrimônio. Vimos que uma análise da atividade de conservação do patrimônio hoje pode nos direcionar para uma necessária construção da confiança e entendimento mútuo, assim para o compartilhamento das responsabilidades, institucionalização da participação pública, principalmente quando nos damos com significados complexos do patrimônio. Neste sentido, nos parece, discutir a integração dos valores nas políticas de patrimônio, seria discutir o contínuo refinamento dos mecanismos de tomada de decisão, assim como o desenvolvimento de procedimentos de deliberação e entendimento que nos permitam tratar das dificuldades políticas e culturais que esta atividade envolve.
Em suas considerações sobre a realidade da gestão do patrimônio cultural na Austrália, Isabel McBryde menciona o caso de Uluru, localizada na parte central do país, que é conhecida como um lugar de grande significância para os aborígines, com seus valores enraizados nas afinidades espirituais entre a terra e o povo. No entanto, apesar de se conhecer a existência desta relação, a autora aponta que “poucos podem compartilhar estes outros valores, ou perceber as muitas camadas de significado relacionadas à sua imagem” (33). Neste sentido, a autora se interrogaria sobre como poderia uma pluralidade de valores culturais atribuídos a um único lugar, por diferentes grupos em na sociedade serem reconhecidos e incorporados na gestão deste bem cultural.
Por fim, nos perguntamos, juntamente com a McBryde, sobre qual seria então o desafio da conservação: um patrimônio compartilhado, valores compartilhados ou uma compreensão compartilhada de valores diferentes? Na realidade, a autora avalia que, em algumas situações de gestão o que estaria havendo seria, no máximo, uma abordagem multidisciplinar, onde as diferentes visões seriam consideradas, mas não seu compartilhamento. Desta forma, para a autora, seria necessário sonhar o sonho (talvez impossível) do patrimônio compartilhado, dos valores compartilhados e de uma compreensão compartilhada dos valores culturais.
Considerações finais
A partir da problemática apresentada, percebemos que as ações de determinados atores na conservação do patrimônio são e sempre foram orientadas por diferentes interesses e valores, que, por sua vez, vão manter uma relação entre si, variando segundo diferentes contextos culturais que os envolvem. Acreditamos que o estudo dos valores culturais poderiam orientar a definição das formas conservação dos bens culturais contribuindo para a formulação de políticas públicas mais democráticas e sustentáveis, a partir da conformação de um arranjo político que responda às novas questões colocadas no campo do patrimônio. Consequentemente, percebemos a necessidade de se discutir o papel dos diferentes atores (com seus valores e interesses) na construção da noção coletiva de patrimônio cultural. Aqui, nos parece razoável considerar a perspectiva segundo a qual seria necessário contar com a intersubjetividade dos processos de entendimento mútuo para garantir uma forma de gestão que ofereça as condições de possibilidade de reconhecimento e manutenção da significância cultural do patrimônio, além da definição e escolha das diferentes abordagens possíveis de preservação. Assim, nos parece que as ações de conservação e preservação poderiam estar mais vinculadas aos aspectos relevantes do patrimônio. Neste sentido, nos parece que essa perspectiva nos permitiria considerar a questão sobre como conservar o que é relevante para a sociedade, num dado momento e envolvendo determinados grupos, compreendendo como as diferentes posições podem negociadas, possibilitando o entendimento sobre o que se pretender conservar e como, suscitando assim a discussão sobre a utilização dos recursos culturais de forma a mantê-los inseridos na esfera do interesse público e do bem público.
notas
NA
Artigo extraído da dissertação de mestrado do autor “Os valores do patrimônio cultural: uma análise do processo de tombamento do conjunto IAPI em Belo Horizonte / MG”, orientada pelo prof. Dr. Leonardo Barci Castriota, defendida na UFMG, disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFMG no endereço www.bibliotecadigital.ufmg.br.
1
Neste artigo, utilizamos a definição terminológica preconizada pela Carta de Burra. Conforme esta, a "conservação" designa todos os cuidados a serem dispensados a um bem para preservar-lhe as características que apresentem uma significação cultural. Ver CURY, Isabelle; INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTORICO E ARTISTICO NACIONAL. Cartas patrimoniais. 3.ed., rev. e aum. Brasilia: IPHAN, 2004
2
MASON, Randall (ed.). Economics and Heritage Conservation: A Meeting Organized by the Getty Conservation Institute, December 1998. Los Angeles: J. Paul Getty Trust, 1999.
3
D’AGOSTINI, Franca. “Três formas de relativismo”. In: Analíticos e Continentais. 1 reimp. São Leopoldo: Editora Usininos, 2003.
4
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora UNESP. 2000.
5
AVRAMI, Erica; MASON, Randall; DE LA TORRE, Marta. Values and Heritage Conservation: Research Report. Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 2000; MASON, 1999; DE LA TORRE, Marta. Values and Heritage Conservation: Research Report. Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 2000.
6
AVRAMI, Op. Cit., 2000, p. 6.
7
CASTRIOTA, Leonardo Barci. “Conservação e valores: pressupostos teóricos das políticas para o patrimônio”. In: Topos Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 04, 2005. p. 8.
8
MASON, Randall. “Assessing Values in Conservation Planning: Methodological Issues and Choices”. In: DE LA TORRE, MARTA, ed., Assessing the Values of Cultural: Research Report. Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 2002, p.8.
9
MASON, Op. Cit., 2002, p.8.
10
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. “Os Valores”. In: Ética. 26 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.138.
11
MARX, Karl. O Capital. Vol. I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Ver especialmente a análise de Marx sobre os dois fatores da mercadoria, pp. 57-63.
12
VÁZQUEZ, Op. Cit., 2005, p.147.
13
VÁZQUEZ, Op. Cit., 2005, p.150.
14
Termo utilizado conforme definição da Carta de Burra.
15
JOKILEHTO, Jukka. A History of Architectural Conservation. Elsevier: Burlington, 1999.
16
AVRAMI, Op. Cit., 2000, p.6.
17
Idem, Ibidem.
18
Neste sentido compreendemos o significado das afirmações de alguns teóricos, segundo as quais apontam que as políticas culturais e de pesquisa relacionada a patrimônio cultural não teriam porque reduzir suas tarefas ao resgate dos objetos ‘autênticos’, ou seja, importaria menos a capacidade de destes de permanecerem ‘puros’, iguais a si mesmos, mas mais os processos sociais e a sua representatividade sócio-cultural. Ver CANCLINI, Néstor Gárcia. “O Porvir do Passado”. In: Culturas Hibrídas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. 4. ed. 1 reimp. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
19
AVRAMI, Op. Cit., 2000, p.6.
20
LOWENTHAL, David. “Stewarding the Past in a Perplexing Present”. In: AVRAMI, Erica; MASON, Randall; DE LA TORRE, Marta. Op. Cit., 2000. p.23.
21
AVRAMI, Op. Cit., 2000, p.8.
22
Em sentido amplo, abordagens culturais englobam os diferentes valores do patrimônio. O instituto trabalhou com dois tipos básicos de abordagens, a econômica e a cultural. Ver DE LA TORRE, Op. Cit., 2002.
23
MASON, Op. Cit., 1999, p.2.
24
MASON, Op. Cit., 1999, p.3.
25
LIPE, William D. “Value and meaning in cultural resources”. In: Approaches to the Archaeological Heritage, ed. H. Cleere. New York: Cambridge University Press, 1984, p.1.
26
Seria interessante pensar, aqui, na origem das preocupações de Lipe que traria uma perspectiva da arqueologia bastante influencia por uma visão relativista da cultura, assim como o é a antropologia, por exemplo. Assim podemos lembrar rapidamente que, em muitos casos, pela dificuldade em se avaliar determinada intervenção ou mesmo o valor de determinado objeto, e pensando muitas vezes nas perdas que esta intervenção poderia gerar. Pense-se por exemplo em quantas informações seriam perdidas se algumas características deste objeto fossem desconsideradas pelos critérios de avaliação utilizados. Neste sentido, por exemplo, é que na arqueologia são tomadas decisões de não intervenção em determinados objetos.
27
ARENDT, Hannah. “A Esfera Pública: o Comum”. In: A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
28
HABERMAS, Jürgen. “O Espaço Público, 30 anos depois”. In: Caderno de Filosofia e Ciências Humanas, ano VII, no. 12, abr 1999, p. 7-28.
29
HABERMAS, Jürgen. “Três modelos normativos de democracia”. In: Revista Lua Nova, no. 36, 1995, p. 40.
30
HABERMAS, Jürgen. “O que é a Pragmática Universal?”. In: Racionalidade e Comunicação. Lisboa: Edições 70, 1996.
31
PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela Luciano; MACHADO, Luciana Altavilla V. P. “As políticas públicas para a preservação do patrimônio”. In: Revista Fórum Patrimônio: Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, vol 2, no. 1, 2008, p. 10.
32
PEREIRA & MACHADO, Op. Cit., 2008, p. 11.
33
MCBRYDE, Isabel. “Dream the impossible dream? Shared heritage, shared values, or shared understanding od disparate values?” In: Historic Environment, vol. 11, no. 2-3, 1995, pp. 8-14. Seria interessante apontar que Uluru foi reconhecido como Patrimônio Mundial, na categoria Paisagem Cultural Associativa, em 1994, por sua associação a um sistema de crenças tradicional dos mais antigos do mundo. Ver mais detalhes em no site da World Heritage Centre: http://whc.unesco.org/. Ver também RÖSSLER, Mechtild. Linking Nature and Culture: World Heritage Cultural Landscapes. In: UNESCO. Cultural Landscapes: the Challenges of Conservation, Itália, 2002, e BUGGEY, Susan. “Associative Values: Exploring Nonmaterial Qualities in Cultural Landscapes”. In: APT Bulletin, Vol. 31, No. 4, Managing Cultural Landscapes (2000), pp. 21-27.
sobre o autor
Guilherme Maciel Araújo é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Uberaba (2000), com especialização em Revitalização Urbana e Arquitetônica pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2005) e Especialização em Planejamento Ambiental Urbano pela PUC-Minas (2006). Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2009). Pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Conservação e Reabilitação Urbana e Arquitetônica, da Escola de Arquitetura da UFMG. Atualmente é professor do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Izabela Hendrix e do Centro Universitário UNA.