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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Partindo das críticas expressas durante o apogeu do Império na literatura portuguesa do Século XVI, este artigo analisa o processo histórico que levou à independência das colônias portuguesas e à independência de Portugal das suas colônias

english
Starting with the misgivings expressed by 16th Century Portuguese writers in the heyday of empire, this article focuses on the historical process which led both to the independence of Portugal’s colonies and to Portugal’s independence from its colonies


how to quote

MACEDO, Helder. As rédeas do Reino e os muros de Marrocos. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.03, Vitruvius, set. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4494>.

Para viver no presente convém entender o passado. E não há como a literatura para nos ajudar a preencher o espaço transitório entre o que foi e o que está a ser. Isto é particularmente verdade no que respeita aos antecedentes da nossa contemporaneidade pós-colonialista.

Portugal iniciou no Século XV o que viria a ser o colonialismo moderno e foi o país europeu que até mais tarde manteve um império, só em 1975 regressando às fronteiras europeias estabelecidas com a conquista do Algarve no Século XIII. A herança colonial, no entanto, persiste tanto em Portugal quanto nos novos países independentes que haviam sido colónias. Esses novos países têm as fronteiras coloniais que, por vezes arbitrariamente, haviam integrado povos etnicamente diferenciados em territórios artificialmente unificados. E as elites nacionais que actualmente os governam preservaram ou, nalguns casos, exacerbaram, as estruturas da governação colonial de que haviam sido opositores e de que se tornaram sucessores.  

Quando os portugueses chegaram à Índia que demandavam, não havia Índia, havia um conjunto de nações tão diversas quanto eram as nações que constituíam a Europa desse tempo. Tal como o Brasil, ou Angola, ou Moçambique, a Índia que há hoje é uma mega-nação politicamente construída pelo colonialismo europeu. Por outro lado, Portugal e os outros países colonizadores europeus tornaram-se membros de uma equivalente mega-nação potencial, a União Europeia, dentro da qual os estados-nação que a compõem tendem a diluir-se em termos políticos, económicos e culturais. A História do colonialismo não chegou ao fim mas continua a processar-se mesmo quando na aparência do seu reverso.

Creio que Luís de Camões, o perene poeta que simultaneamente celebrou e criticou a expansão imperial portuguesa, ajuda a entender melhor do que ninguém o processo através do qual os problemas do seu tempo se tornaram nos problemas do nosso tempo. O meu título – “As rédeas do Reino e os muros de Marrocos” – foi transposto de duas injunções, no princípio e no fim d’Os Lusíadas, dirigidas ao jovem rei D. Sebastião, a quem a obra é dedicada. Na primeira, Camões promete-lhe um futuro “nunca ouvido canto” se tomar as rédeas do seu reino como, numa crítica disfarçada de homenagem, claramente indica que ainda não havia feito.   

E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
(I, 15)

A outra injunção de que tirei parte do meu título vem nas duas últimas estrofes do poema, onde Camões torna claro que a nova matéria épica que faria jus ao “nunca ouvido canto” seria a conquista do Norte de África, “rompendo os muros de Marrocos”:

Se [...] o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada
[...] ... rompendo [...]  os muros de Marrocos [...]
(X, 155, 156)

Poderia assim parecer que, em conclusão e como corolário de um poema onde celebra as navegações em mares remotos e a fundação do império português no Oriente, Camões está a contradizer-se ao valorizar, como a nova matéria épica que faria jus a um “nunca ouvido” canto, o que seria um paradoxal regresso à política pré-ultramarina de conquista de terras no vizinho Norte de África. Creio, no entanto, que não há contradição. Neste e em muitos outros aspectos do poema, Camões está a reflectir as complexidades da História como estava a ser vivida e entendida sete décadas depois da viagem de Gama à Índia. Dessa perspectiva, uma política marroquina não seria tanto um retrocesso quanto um correctivo e, portanto, um necessário complemento de uma política imperial que pretendesse estar virada para o futuro.  

A História – a compreensão retrospectiva do que aconteceu – tende a reflectir o que veio a acontecer e não necessariamente o que estava a acontecer ou, menos ainda, o que poderia ter acontecido. O espaço ambíguo entre a expectativa e a realidade é melhor servido pela literatura. Tendo em mente que D. Sebastião parece ter seguido uma política de conquista territorial equivalente à preconizada no fim d’Os Lusíadas, e que a incursão militar no Norte de África em 1578 levou ao desastre de Alcácer-Quibir e à anexação de Portugal à Espanha dois anos depois, parece difícil justificar a sensatez de tal acção. Nem, retrospectivamente, seria possível fazê-lo, excepto na medida em que o desastre militar de Alcácer-Quibir foi isso mesmo: um desastre militar. As suas trágicas consequências talvez não reflictam tanto um erro de política quanto erros na sua implementação devido à incompetência suicida de um rei insensato. O tio de D. Sebastião, Filipe II, sabia deixar a súbditos mais adestrados nas armas, como o Duque de Alba, o comando dos exércitos e a estratégia militar. O melhor que se pode dizer de D. Sebastião – um jovem fanático, misógeno, supõe-se que sexualmente impotente, ou seja, em tudo o oposto do que foi Camões – é que talvez tenha adoptado uma política correcta por razões erradas. Mas, ao fazê-lo, tornou erradas as razões correctas que pudesse ter havido.

Camões não escreveu Os Lusíadas no auge do império mas quando a corrupção dos desígnios do passado se estavam manifestando no declínio do país. Uma das mais graves consequências da expansão imperial portuguesa havia sido a pauperização do povo que permaneceu dentro das fronteiras de Portugal. À medida que o comércio ultramarino aumentava, a produção interna diminuía. As especiarias da Índia não enriqueceram a vasta maioria da população. Os lucros passavam-lhe ao lado, iam para outras paragens. O tráfego de escravos africanos terá servido para criar as bases da futura economia colonial brasileira, mas não para fortalecer a economia portuguesa.

O problema, aliás, não era novo. Na geração anterior a Camões, Francisco de Sá de Miranda tinha-se insurgido contra o despovoamento e o enfraquecimento do reino quando analisa os já então evidentes malefícios do império na vida portuguesa. Diz, por exemplo, o seguinte:

Não me temo de Castela
De onde a guerra inda não vem,
Mas temo-me de Lisboa
Que ao cheiro desta canela
O reino nos despovoa.
[....]
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quasi a natureza;
Medo hei de novo à riqueza,
Que nos venha cativar.

Gil Vicente, o dramaturgo oficial da corte de D. João III, tem no Auto da Índia uma memorável entrada em cena de um suposto herói imperial – um patético marido enganado pela mulher deixada em Lisboa – que declara: “Fomos ao rio de Meca, // Pelajámos e roubámos”. Pelejar para roubar tinha-se tornado num propósito do império. O próprio Camões irá mencionar sucintamente numa carta escrita em Goa a corrupção que por lá grassava quando caracteriza a capital do vice-reinado como “mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”.

Em Portugal, uma nova oligarquia beneficiou das riquezas vindas de fora. Mas, precisamente porque essas riquezas vinham de fora, os seus beneficiários não precisavam de investir nas riquezas potenciais – comparativamente menores e de lucro mais lento – que  pudessem ser produzidas dentro do país. O mesmo aconteceu, embora em menor escala, na vizinha Espanha. E essa foi, como Sá de Miranda previra no início do Século XVI e Antero de Quental iria corroborar no fim do Século XIX, uma das principais causas da “decadência dos povos peninsulares”.

No tempo de Camões, as políticas mais favorecidas pela oligarquia imperial portuguesa eram ou o prosseguimento de uma crescentemente corrupta política de comércio armado no Oriente ou a intensificação da mais recente política de ocupação escravocrata no Brasil. As dificuldades práticas da sua implementação em continentes tão distantes eram no entanto notórias, a moralidade de ambas no mínimo duvidosa, e a maioria do povo português continuava a empobrecer. Por isso houve também quem propusesse o que hoje se chamaria uma terceira via, que foi logo desprezivelmente caracterizada como uma política de “pão e vaca”. Essa política, que visava à ocupação e exploração de terras adequadas à agricultura e à pecuária, é mencionada, em termos negativos, por Diogo do Couto, na obra O Soldado Prático. Mas, se entendo correctamente, é aquela que, em implícita discordância com esse seu amigo e companheiro no Oriente, Camões incita D. Sebastião a implementar “rompendo os muros de Marrocos”. Talvez com exagerado optimismo, considerava-se que esse lado dos algarves seria o celeiro que alimentaria quem o controlasse. A ocupação das terras adjacentes do Norte de África – desde os tempos da Reconquista Cristã entendidas como uma extensão natural dos algarves ibéricos – permitiria expandir as fronteiras da nação rural, com um benefício económico mais tangível para a maioria da população portuguesa do que a política imperial em terras distantes. O novo projecto épico defendido por Camões seria, assim, um necessário complemento da ideia de império celebrada n’Os Lusíadas.

No entanto Camões também incorpora no poema uma perspectiva oposta à expansão ultramarina quando descreve a partida das naus rumo ao Oriente. O momento que deveria ser de afirmação positiva por marcar o início da viagem celebrada no poema é dominado pela veemente condenação de tudo o que essa viagem iria significar. A condenação é feita por “um velho de aspeito venerando”, o chamado Velho do Restelo que, como a vox populi, emerge da multidão anónima que acorrera para assistir à partida das naus: mulheres que vão ficar sem os maridos, mães sem os filhos, filhos sem os pais, noivas sem os noivos, num coro de previsíveis infortúnios que faz os navegantes entrarem nas naus sem a “costumeira despedida” e partirem não como heróis dignos de serem celebrados mas quase envergonhadamente, com os olhos baixos.

O venerando velho que representa a sabedoria popular não só amaldiçoa a aventura imperial que está sendo iniciada, mas também roga que “nem cítara sonora ou vivo engenho” dê a tais actos “nem fama nem glória”. Ou seja, a sua condenação abrange o próprio poema que Camões está a escrever. Mas o Velho do Restelo é, afinal, uma personagem desse mesmo poema e, através dela, é o seu autor quem está a contrapor aos reprováveis actos da ganância imperial – a “glória de mandar”, a “vã cobiça”, a “vaidade a quem chamamos fama” – o que seria uma guerra justa contra os inimigos à porta do reino que, como acentua, propiciaria mais seguros ganhos em “terras e riquezas” sem que para esse propósito “o reino antigo” se “despovoe” e se “enfraqueça”.  

A retórica da “guerra justa” integrada na fala do Velho do Restelo seria uma mais-valia ideológica reciclada do espírito da Reconquista Cristã, mas não necessariamente um propósito determinante. Mas era uma retórica útil, considerando que, no tempo em que Camões escreveu Os Lusíadas, os inimigos à porta do reino referidos pelo Velho do Restelo eram uma realidade concreta, ameaçadora e não menos militante em opostas “guerras justas”. O Islão não era só o poder imperial rival dos portugueses no distante Oriente, era também um inimigo próximo que factualmente ameaçava a sobrevivência da Europa cristã e que continuou a ameaçá-la até à victória naval espanhola de Lepanto, em 1571, quando o poema já estava escrito e em vias de ser publicado. A luta contra o Islão “às portas do reino” seria, portanto, uma causa nacional partilhada pelos dois reinos ibéricos em defesa da Europa.

Seria também por isso que essa causa é proposta como um complemento à política ultramarina – e um necessário correctivo das suas consequências negativas – mas não como um seu substituto. A responsabilidade do jovem rei a quem Camões dedica o poema seria dar continuidade ao império corrigindo os erros que enfraqueciam quer o reino quer o império. Camões não é tanto o Velho do Restelo que recusa o império –  embora os argumentos por ele usados sirvam os seus propósitos – quanto um “soldado prático” que defende o império. Mas a ideia expressa por essa sua personagem de que teria sido melhor não ter havido império ficou integrada no poema. O facto, no entanto, é que havia império, e nas recorrentes, e crescentemente violentas, intervenções pessoais que faz no poema, Camões corrobora e exemplifica a argumentação moralizadora do Velho do Restelo. E também se serve de outra personagem para denunciar a perversão dos ideais morais que deveriam estar a ser implementados por uma legítima política imperial. Essa personagem é Baco.

No plano metafórico que o poema sobrepõe à narrativa da viagem histórica de Gama, esse potente deus pagão – mitologicamente associado à agricultura – é simultaneamente caracterizado como o pai ancestral dos portugueses, o antigo senhor da Índia que os portugueses demandavam e o mais acérrimo opositor do seu projecto imperial. Baco parece representar a perspectiva dos inimigos dos portugueses quando dá aviso às populações da terra africana de Moçambique contra as “gentes roubadoras” que eram “estes homens que passavam” e “que com pactos de paz sempre ancoravam”. As acusações de Baco são qualificadas no poema como “falsidades”. A verdade, no entanto, é que as suas incómodas palavras dificilmente poderiam ter sido entendidas como falsas pelos portugueses contemporâneos de Camões:

E sabe mais (lhe diz) como entendido
Tenho destes Cristãos sanguinolentos,
Que quase todo o mar tem destruído
Com roubos, com incêndios violentos;
E trazem já de longe engano urdido
Contra nós, e que todos seus intentos
São pera nos matarem e roubarem,
E mulheres e filhos cativarem.
(I, 78, 79)

As críticas do Velho do Restelo têm, assim, uma exemplificação concreta nas acusações de Baco sobre os métodos como esses “cristãos sanguinolentos” se foram enriquecendo.

Camões irá no entanto acentuar que, do mesmo modo que a maioria dos portugueses dentro do reino tinha sido empobrecida pela ganância imperial, assim também havia portugueses que honestamente serviam no império e que estavam sendo desfavorecidos pelo poder real que deveria valorizá-los. E é na sua própria voz de cidadão com experiência do império que vai censurar o mesmo rei que ainda não tomara as rédeas do seu reino pelo abandono em que também estava deixando os “vassalos excelentes” que, a despeito de tudo, cumpriam os seus “ásperos mandados”. Essa passagem do poema vem na sequência do que é porventura a mais feroz diatribe de Camões contra uma “pátria [...] metida / no gosto da cobiça e na rudeza / de uma austera, apagada e vil tristeza” [X, 145]. O poeta exorta D. Sebastião a que visualize os seus distantes vassalos “dando os corpos a fomes, a guerras, a naufrágios, [...] a perigos incógnitos do mundo”. E depois  acrescenta:

Por vos servir, a tudo aparelhados;
De vós tão longe, sempre obedientes
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes.
[...]
Os mais exprimentados levantai-os,
Se, com experiência, tem bondade
Pera vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.
(X, 146-148)

Estes não eram, obviamente, os “vilões ruins” que o poeta refere na sua carta escrita em Goa, seriam antes os “homens honrados” de que o império não era mãe, mas madrasta.

E a verdade é que, se um império português houve no passado e há hoje as novas nações póscoloniais desse império derivadas, em grande parte se deve a esses homens que nem sempre foram favorecidos pelo poder central mas que, talvez por isso mesmo, só conseguiram prosperar quando identificaram os seus interesses com os interesses das populações locais nos longínquos territórios onde serviam. Nunca nenhum império foi montado para o benefício de outros povos, e o império português certamente também não foi, nem mais nem menos do que os outros. A retórica da “missão civilizadora”, tal como a retórica da “guerra justa” – ou, no nosso tempo, da “democratização” –  pode ser um pretexto mas nunca é uma causa. Mas quando, para seu próprio benefício, os interesses dos colonizadores passam a identificar-se mais com os interesses dos colonizados do que com os mandos ou desmandos do poder colonizador, então é porque, com maior ou menor sucesso, o que haviam sido colónias poderão assumir-se como nações independentes.

Com algum, mas creio que não excessivo, exagero, poderia dizer-se que o império português foi construido a despeito dos portugueses na metrópole. A população de Portugal – tanto a pequena minoria que beneficiou das riquezas do império quanto a grande maioria que dessas riquezas permaneceu excluída – era claramente insuficiente para gerir um império tão vasto, tão distante, tão diverso e tão disperso. Paradoxalmente, no entanto, a própria impossibilidade de gerir tal império permitiu a emergência de diferentes modos de o gerir, segundo modelos diferentes para diferentes circunstâncias e, muitas vezes, a despeito (como dizia Camões) das “rigorosas leis” vindas da metrópole. E, de facto, os “mais experimentados” que Camões desde logo soube valorizar foram, nas circunstâncias, notavelmente proficientes. Conhecedores dos problemas locais, e a uma distância de vários meses da capital europeia, os administradores portugueses do império tinham um poder virtualmente incontrolável nas vastas áreas sob a sua responsabilidade. E nem sempre foram tão obedientes quanto afirma Camões. As directrizes do poder central podiam ser ignoradas impunemente, ou só punidas depois de um vai e vem de muitos meses entre uma consulta a Lisboa e a resposta de Lisboa. Os mais hábeis souberam manipular a situação através do que foi aptamente caracterizado – numa sucinta expressão que ouvi a Boaventura de Sousa Santos numa conferência no Rio de Janeiro – como um processo de “desobediência respeitosa”. A obrigatória consulta era devidamente feita, mas o governante local já havia decidido como melhor proceder. E se a resposta que chegava meses depois contrariasse a sua decisão já implementada, não precisava mais do que respeitosamente lastimar não ter vindo a tempo de executar tão sábio mandado. Entre a fictícia consulta e a censura que eventualmente recebesse, ter-se-ia passado mais de um ano, no caso do vice-reinado na Índia, e talvez meio ano, no caso do Brasil.

Aliás foi na Índia e no Brasil que as verdadeiras capitais do império português passaram a situar-se. Até 1752, Moçambique dependia directamente de Goa e as possessões nominalmente portuguesas da África Ocidental eram efectivamente colónias brasileiras. Quando Salvador Correia de Sá resgatou Angola dos holandeses em 1648 terá, no mínimo, agido tanto por patriotismo luso quanto para manter o tráfico de escravos para o Brasil. E quando, em 1822, se discutiram os termos da independência do Brasil, uma das últimas questões decididas foi se Angola permaneceria como a colônia brasileira que efectivamente havia sido ou como a colônia portuguesa que nominalmente era. São Tomé era um porto de trânsito no tráfico de escravos da África ocidental para o Brasil. O pequeno comércio em Moçambique e, consequentemente, a exploração directa das populações africanas locais, sempre foi controlado sobretudo por indianos. Talvez seja sintomático da antiga vinculação colonial de Moçambique ao Estado da Índia que, quando o primeiro presidente de Moçambique, Samora Machel, entrou no seu país após a independência em 1975, tenha considerado mais popular insultar os indianos do que criticar os portugueses. Embora noutra escala, a Guiné portuguesa teve um padrão de colonização correspondente ao de Moçambique. Em meados dos anos 1950, a grande maioria dos funcionários públicos, incluindo os administratores das circunscrições no interior, era oriunda de Cabo-Verde e a pequena-burguesia de Bissau era dominantemente caboverdiana. O arquipélago de Cabo-Verde, porventura a colônia portuguesa menos viável em termos de recursos naturais, havia sido povoada com mão de obra levada da costa africana mas, ao longo dos séculos, foi desenvolvendo uma sofisticada cultura crioula própria. O PAIGC – o único movimento nacionalista africano que claramente ganhou a guerra contra Portugal – era controlado por caboverdianos e previa a união de Cabo-Verde e da Guiné, se é que não mesmo um novo modelo de colonização da Guiné por Cabo Verde.

O exemplo mais flagrante – e de maior sucesso – de “desobediência respeitosa” dos governantes coloniais portugueses em relação ao poder central, é porventura o Brasil. O respeito foi tão grande e a desobediência tão radical que, estando o príncipe herdeiro da coroa portuguesa a viver no Brasil, lhe foi permitido associar-se ao movimento de independência e ser proclamado imperador do novo país. Mas isso também significou que a independência do Brasil foi o reconhecimento de uma situação de facto, por razões que reflectem mais uma dinâmica interna do que a vontade dos seus governantes portugueses. As causas económicas e os processos políticos dessa dinâmica interna, que levaram não só à independência mas também – ao contrário do que aconteceu com as colónias espanholas na América do Sul – à manutenção da unidade territorial de regiões tão diversas, têm sido detalhadamente analisadas pelos historiadores do Brasil. A todas as boas razões por eles propostas talvez também se possa acrescentar que o sucesso da criação de uma só nação em tão vasto território contínuo – com uma extensão maior, do extremo Sul ao extremo Norte, do que a distância entre Lisboa e Bissau – foi devida, em grande parte, à adaptação de um modelo essencialmente colonialista pelos antigos colonizados, com o Sul constituindo o que seria um poder colonial e o Norte correspondendo às tradicionais colónias usadas como fontes de matéria prima e de mão de obra. Se assim foi – e só em parte teria sido assim – e se o propósito fundamental de haver colónias é enriquecer as nações que as controlam, os brasileiros tornaram-se colonizadores de si próprios mais proficientes do que os portugueses que os tinham colonizado.

Seja como for, as riquezas do Brasil colonial haviam até então servido para manter o fausto da coroa portuguesa, para sustentar a oligarquia metropolitana, para enriquecer os esclavagistas luso-brasileiros e para beneficiar o comércio inglês, mas pouco serviram para o desenvolvimento económico e social da nação portuguesa. No Século XVIII, o Marquês de Pombal encorajou a criação de uma classe média portuguesa produtora de riqueza agrícola e de desenvolvimento industrial em articulação com uma política de investimento no Brasil e de nacionalização do comércio colonial. Mas o Marquês de Pombal estava a remar contra a maré e o seu projecto não teve suficiente continuidade.

A oligarquia portuguesa tinha-se habituado a lucros mais imediatos. A sua riqueza, aliás característica de país pobre, bastava para a manter em confortáveis ilhas flutuantes sobre o resto da população. E se os lucros das colónias não bastassem para assegurar os benefícios das elites governantes dentro do país, as próprias colónias podiam ser usadas como bens negociáveis, como foram. Em 1580, D. António Prior do Crato negociou a entrega do Brasil à França em troca de um apoio militar e político que lhe tivesse dado a coroa de Portugal. Quando Portugal readquiriu a sua independência política de Espanha em 1640, o primeiro rei da monarquia restaurada deu Bombaim à Inglaterra para assegurar uma aliança que fortalecesse a sua posição dentro do país, desse modo contribuindo para que a Inglaterra viesse a ter o senhorio da Índia que Portugal nunca teve. Mesmo em tempos mais recentes, no fim do Século XIX, a venda das colónias de África foi uma ideia várias vezes satirizada – e, por isso, reveladora de atitudes em Portugal – por Eça de Queirós.

Entretanto, fazendo jus aos avisos de Sá de Miranda e de Camões, o reino continuou a despovoar-se, não necessariamente ao cheiro da metafórica canela mas à busca de um tangível trabalho que trouxesse oportunidades de melhoria económica e social à maioria desfavorecida da população.

O Brasil havia sido a colônia de maior imigração portuguesa. A tendência acentuou-se depois da independência, quando as oportunidades de trabalho aumentaram, e continuou até meados do Século XX. Os portugueses sempre foram menos para as colónias de África, e destas sempre mais para Angola, porque mais próxima, do que para Moçambique. Isto levou a um processo de maior segregação racial em Moçambique, com a população europeia, privilegiada porque europeia e diminuta, a não olhar com maus olhos a política de segregação racial anglo-boer da vizinha África do Sul. Também em termos económicos, particularmente no Sul, onde a capital passou a situar-se depois de transferida no fim do Século XIX da Ilha de Moçambique, a colônia foi ficando menos dependente da Índia para se tornar mais dependente da África do Sul, com o envio de trabalhadores indígenas para as minas do Rand constituindo a sua principal fonte de receita, num padrão que persistiu no Moçambique póscolonial e que, de algum modo, reproduz o do Portugal metropolitano.

A equivalente emigração económica do Portugal metropolitano acentuou-se nas décadas que precederam a guerra colonial. Por esse tempo já não tanto para o Brasil e sobretudo para outros países europeus tão colonialistas quanto Portugal – como por exemplo a França – mas que haviam sabido beneficiar das riquezas dos seus impérios. Do mesmo modo que a exportação de mão-de-obra para a África do Sul era a principal fonte de riqueza de Moçambique, assim também as remessas financeiras de emigrantes portugueses se tornaram, em meados do Século XX, numa principais receitas de Portugal.

O ditador português, António de Oliveira Salazar, não acreditava em desenvolvimento económico, nem para a metrópole nem para as colónias. Acreditava em estabilidade financeira, social e política. Desenvolver seria ameaçar o status quo, permitir uma maior mobilidade social, arriscar uma democratização do país e, pior ainda, criar condições para a independência das colónias africanas que ainda constituíam o império português. O Portugal salazarista orgulhava-se de, tendo sido o primeiro poder colonial, ser também o último. Houve um ministro das colónias que declarou que Portugal não queria mais Brasis. Antes tivesse querido. O sucessor de Salazar, Marcello Caetano, tendo herdado guerras coloniais que não conseguiria resolver, ainda tentou dinamizar a economia nacional. Mas quando as guerras em África começaram, no início dos anos 1960, um país cuja população dentro do seu território peninsular não excedia dez milhões e com uma colônia com a riqueza potencial de Angola – mesmo esquecendo as outras colónias – tinha conseguido permanecer o país mais pobre da Europa Ocidental.

Com o fim das guerras coloniais, Portugal regressou às suas fronteiras anteriores à expansão imperial tão ambiguamente celebrada por Camões n’Os Lusíadas. O herdeiro da coroa portuguesa havia encabeçado a independência do Brasil e o exército português, desistindo de lutar numa guerra que ainda não tinha perdido mas que não podia ganhar, derrubou o regime colonialista que até então servira e assumiu a independência das colónias como uma justa causa ideologicamente partilhada.

Depois das guerras civis em que a guerra colonial se prolongou, Angola e Moçambique podem finalmente exercer a sua independência política. Descobriu-se petróleo em São Tomé. O índice de alfabetização de Cabo Verde é dos mais altos em toda a África. Timor usou a sua precária portugalidade para forjar uma precária independência. As heranças portuguesas de Goa e de Macau são fontes de receitas turísticas para a Índia e para a China. Sem o vínculo cabo-verdiano, a Guiné-Bissau ainda não definiu um destino próprio. Moçambique, pela via do comonwealth anglófono, está fazendo o que julga ser o melhor das suas circunstâncias geo-políticas. Angola não será um novo Brasil, mas poderá preencher o seu enorme potencial de nação independente se não continuar a ser governada por uma elite urbana nacional como se colônia ainda fosse. O Brasil, a despeito de desnivelamentos sociais e económicos ainda por resolver, deixou finalmente de ser uma colônia de si próprio para se tornar numa grande potência ao nível mundial. Afinal todos os países dependem do que conseguirem fazer por si próprios.

Portugal, sem precisar de romper os muros de Marrocos, pareceu por uns tempos ter-se tornado numa nação nem menos eficiente nem mais corrupta do que as outras democracias europeias pós-coloniais que integram a União Europeia. Construíram-se estradas que abriram o interior do país, permitindo que se produza mais e se comercialize melhor o que se produz. Não sei se o nível da educação superior terá melhorado – Portugal sempre teve elites notavelmente cultas – mas o ensino expandiu-se, criaram-se novas estruturas de protecção social, a extrema pobreza deixou de ser tão extrema quanto havia sido. Pela primeira vez na sua História, Portugal deixou de ser um país apenas de emigração para se tornar também num país de imigração, com gente vinda da Europa do Leste, da África e até do Brasil. Sem dúvida que, por uns tempos, as coisas dentro do país melhoraram. E para isso foi necessário não somente que as antigas colónias se tornassem em países independentes, mas sobretudo que Portugal se tivesse tornado independente das colónias.  

No entanto, os hábitos antigos persistiram. A actual situação do país demonstra que, tal como as receitas das especiarias da Índia e do ouro do Brasil, os financiamentos externos recebidos em consequência da adesão de Portugal à Comunidade Europeia não foram suficientemente aproveitados para fortalecer a economia nacional. É certo que situação de crise que agora se está a viver não é exclusiva a Portugal. Mas também é certo que, mais uma vez, é a grande maioria da população que está a sofrer as consequências dos erros dos seus governantes nacionais e dos seus mentores fora do país.

nota

NE – Sob coordenação editorial de Paula André (Instituto Universitário de Lisboa IUL) e Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz sete artigos em comemoração do “Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal”, conforme Resolução do Conselho de Ministros n.º 7/2012, que menciona que “Portugal e o Brasil acordaram, por ocasião da X Cimeira, na realização, em 2012, em conjunto e simultâneo, do Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal, iniciativas concebidas como oportunidades para actualizar as imagens recíprocas, promover as culturas e as economias de ambos os países e estreitar os vínculos entre as sociedades civis” [Diário da República, 1ª série, nº 10, 13 jan. 2012, p. 133 <http://dre.pt/pdf1sdip/2012/01/01000/0013300135.pdf>]. Os artigos do número especial Brasil/Portugal são os seguintes:

ANDRÉ, Paula. Arquitecturas e cidades devoradas entre Portugal e o Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.00, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4501>.

ALMEIDA, Ana. O azulejo em Portugal nas décadas de 1950 e 1960. Influência brasileira e especificidades locais. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.01, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4490>.

JORGE, Luís Antônio. Língua portuguesa, literatura brasileira e os lugares do modernismo no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.02, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4503>.

MACEDO, Helder. As rédeas do Reino e os muros de Marrocos. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.03, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4494>.

PAIS, Alexandre Nobre. Um tema de fachada. A escultura cerâmica portuguesa no exterior de arquitecturas luso-brasileiras. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.04, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4484>.

BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. A arquitetura das fronteiras do Brasil. Duas faces de um mesmo problema. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.05, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4506>.

SIMÕES JUNIOR, José Geraldo. Paradigmas da urbanística ibérica adotados na colonização do continente americano. Sua aplicação no Brasil ao longo do século XVI. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 148.06, Vitruvius, set. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.148/4505>.

sobre o autor

Helder Macedo é doutorado em Letras pela Universidade de Londres, King’s College, onde foi Professor Titular da Cátedra Camões e é actualmente Professor Catedrático Emérito. Foi Director Associado do Instituto de Estudos Românicos da Universidade de Londres e o director fundador da revista Portuguese Studies (Prémio da Conference of Editors of Learned Journals, EUA). A sua obra ensaística inclui livros sobre poesia medieval, Bernardim Ribeiro (Prémio da Academia das Ciências de Lisboa), Luís de Camões, Cesário Verde, a colectânea de ensaios sobre autores portugueses e brasileiros Trinta Leituras e, em colaboração com Fernando Gil, Viagens do olhar: visão, retrospecção e profecia no renascimento português, também publicado nos EUA e em publicação em França (Prémios do PEN Clube Português e da Associação Internacional dos Críticos Literários). É autor de seis livros de poesia e de cinco romances publicados em Portugal e no Brasil e com traduções em várias línguas.

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