Nenhum arquiteto viveu tanto. Mas quem diria que um arquiteto moderno, aos 102 anos, ainda fosse provocar polêmica com dois projetos inaugurados quase simultaneamente: o Auditório de Ravello, na Itália, e a Cidade Administrativa Tancredo Neves, em Belo Horizonte. O primeiro enfrentou oito ações judiciais ao introduzir um descomunal olho de concreto numa cidade de pouco mais de 2 mil habitantes, onde “a última grande construção datava do século XI”, como frisou o sociólogo Domenico di Masi, maior entusiasta da obra. O segundo tem sido interpelado em função do custo da obra, das motivações políticas da encomenda e até da sua eficiência energética. Mas para além disso, pouco tem sido dito a respeito da sua arquitetura.
A Cidade Administrativa Presidente Tancredo Neves localiza-se à beira da Linha Verde, na região norte de Belo Horizonte. A construção do complexo de 265 mil m2 de área construída visou unificar a administração do Estado de Minas e ao mesmo tempo induzir a expansão da cidade em direção ao norte. Mas o empreendimento tem também fortes motivações políticas, é claro. É uma obra indissociável da política carismática de Aécio Neves e de sua ambição política. Não deve surpreender a ninguém, então, que o neto de Tancredo Neves tenha buscado o arquiteto que definiu simultaneamente a imagem de modernidade de Belo Horizonte e de Juscelino Kubitschek com o conjunto da Pampulha e outras obras que marcam a paisagem urbana da capital mineira. E ainda tenha feito questão de inaugurar a obra no mesmo dia em que o ex-presidente Tancredo Neves completaria 100 anos.
O conjunto é composto de cinco edificações autônomas e pouco articuladas, do ponto de vista urbanístico, entre si e com o entorno. O que tampouco chega a ser motivo de surpresa, em se tratando de Niemeyer: à semelhança do Memorial da América Latina, por exemplo, o projeto aposta na criação de um foco de atenção, antes que numa conexão mais estreita com o contexto em que se situa. No caso, o edifício de maior apelo imagético abriga o gabinete do Governador e os demais se destinam às secretarias, auditório e centro de convivência. O Palácio do Governo revela clara filiação a projetos anteriores de Niemeyer, em particular das sedes italianas da Mondadori e do grupo Fata, os quais por sua vez seguem, com alterações e ajustes, a solução da caixa de vidro envolvida por uma seqüência de arcos, iniciada com o Palácio do Itamaraty. Já as secretarias se acomodam em dois edifícios em curva, com 15 pavimentos cada. De certo modo encontra-se aí, portanto, uma espécie de resumo da obra do arquiteto. Dois de seus traços fundamentais, pelo menos, estão presentes: a forma livre e o virtuosismo estrutural. A liberdade concedida à forma se manifesta nas curvas dos dois edifícios administrativos que se rebatem um sobre o outro. Já a exploração extremada da técnica moderna se mostra mais claramente no Palácio do Governo, que, com seus 146 metros de vão livre (mais ou menos o dobro do vão do Museu de Arte de São Paulo), é alardeado como o maior vão suspenso do mundo. Contando, como sempre, com a solidariedade de um grande engenheiro (José Carlos Sussekind), Niemeyer conseguiu realizar uma estrutura que só pode ser medida pela sua ousadia: 30 cabos de aço mantém em suspenso uma caixa de vidro de 4 pavimentos, que pende das vigas superiores.
A solução não é uma novidade em si – embora distinta, a estrutura do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por exemplo, também foi resolvida, na década de 1950, com uma sofisticada solução atirantada que liberou de apoios o solo e os espaços expositivos. Mas nem por isso a última realização de Niemeyer deixa de impressionar por seu vigor. Há, afinal, uma carga de juventude nesse projeto que decerto contribui para a visibilidade da obra, embora também denuncie um dos problemas cruciais para a produção projetual contemporânea no Brasil: de um modo geral, a arquitetura brasileira não viveu a crise do moderno. Na década de 1950, enquanto o pensamento arquitetônico e urbanístico mundial era forçado a confrontar-se com a crise da modernidade, o Brasil construía Brasília. E no momento seguinte, quando a arquitetura começou a ser interrogada à luz da crítica pós-modernista, o Brasil vivia uma ditadura militar que bloqueava qualquer pensamento crítico. Esse quadro começaria a mudar junto com a abertura política, mas então o pós-modernismo acabaria se tornando aqui uma espécie de chave mestra capaz de oferecer saída fácil para um grande impasse: de um lado, a reverência à obra ímpar de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, de outro, a contestação própria de uma geração de arquitetos formados no período mais negro da ditadura militar (num processo protagonizado justamente por alguns arquitetos mineiros).
Pode-se então culpar Niemeyer por certo imobilismo da arquitetura no Brasil? Definitivamente, não. Tudo indica que se a arquitetura brasileira permaneceu alheia à crise do moderno, foi porque ficou entre uma prática capitalista predatória e uma reflexão teórica pobre e coercitiva na qual se expressou, desta vez pela via da esquerda, uma tônica populista e autoritária continuamente reeditada no Brasil.
Será um erro contratar Niemeyer hoje? Longe disso. Nenhum arquiteto brasileiro tem visibilidade sequer comparável a sua (basta lembrar a inauguração recente do hospital Sarah Kubitschek, no Rio, largamente anunciada pela imprensa local sem qualquer menção à arquitetura e/ou ao responsável pela excelência do projeto, arquiteto João Filgueiras Lelé Lima). E compreende-se facilmente porque dez entre dez dos maiores arquitetos do mundo todo, quando vêm ao Rio, não só querem conhecer Niemeyer pessoalmente como mostram uma excitação quase infantil ao sair de seu escritório com um autógrafo, uma foto e se possível um croquis (cena que se repetiu, só nos últimos anos, com Zaha Hadid, Frank Gehry, Steven Holl, Christian de Portzamparc, Frei Otto e muitos outros).
No fundo, então, o que impressiona mesmo é a escassez, se não ausência, de cultura arquitetônica no Brasil hoje. E isso, não obstante as qualidades intrínsecas a certa produção contemporânea, dentro da qual podem ser incluídos tanto Lelé quanto Angelo Bucci. Pelo jeito, não bastou a exemplaridade da arquitetura produzida no país nas décadas de 1940 e 1950, a qual se irradiou a partir do Rio de Janeiro mas não tardou a brotar em Minas Gerais (e não só em Belo Horizonte mas também em Cataguases, Diamantina, Ouro Preto). Tampouco foi suficiente a admirável longevidade dos grandes mestres da arquitetura moderna no Brasil (Lucio Costa, por exemplo, morreu perfeitamente lúcido aos 96 anos).
Longevidade essa que, se confirma a singularidade da arquitetura brasileira, também expõe sua face mais problemática. Diferentemente da França, por exemplo, onde a arquitetura foi forçada a buscar uma nova orientação após o luto pela morte de Le Corbusier, no Brasil a presença atuante dos grandes arquitetos modernos em pleno final do século XX acabou se tornando, para muitos, uma ameaça a qualquer tentativa de emancipação. E ao contrário do que pode sugerir a quantidade de publicações e eventos suscitados pela comemoração recente do centenário de Niemeyer, ainda há uma grande dificuldade de abordar criticamente a sua obra.
Chegamos a um ponto, no entanto, em que é difícil não se perguntar em que medida alguns projetos que tem sido divulgados como sendo de Niemeyer, são de fato seus. No caso do complexo mineiro, o projeto já foi acusado de ter saído das suas gavetas. Não que, por princípio, isso seja condenável em arquitetura (considere-se, por exemplo, as semelhanças entre o Edifício Bacardi e a Galeria Nacional de Berlim, de Mies van der Rohe). Mas é difícil acreditar que, aos 102 anos, Oscar Niemeyer ainda esteja em condições de confiar a gênese da forma ao gestual pelo qual a sua arquitetura se definiu, em seus melhores momentos. Não raro, os traços que temos visto mostram características substancialmente distintas de seu procedimento projetual. E ainda que as maquetes possam ajudar, é difícil acreditar que a esta altura ele esteja disposto a rever sua concepção de arquitetura como atividade de criação individual, definida por meio de um risco fluente e decidido. O que em todo caso faz pensar na simplicidade da gramática niemeyeriana e sua exploração – no limite da saturação, nos últimos tempos – como uma marca facilmente identificável e comercializável.
Todo cuidado é pouco, portanto, para tratar da Cidade Administrativa de Belo Horizonte. O projeto é a prova mais cabal de que Niemeyer não é só o último grande Mestre da arquitetura. Nem só o grande Imortal da arquitetura brasileira. Niemeyer é a juventude espantosa, e às vezes assustadora, do Brasil.
nota
NA - Artigo originalmente publicado no caderno “Prosa e Verso” do jornal O Globo, 10 abr. 2010.
NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz nove artigos sobre vida e obra do arquiteto Oscar Niemeyer, falecido no dia 5 de dezembro de 2012. Os artigos do número especial em tributo a Oscar Niemeyer são os seguintes:
VALLE, Marco do. Oscar Niemeyer. Morreu nosso arquiteto maior. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.00, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4603>.
SEGRE, Roberto. Oscar Niemeyer. Tipologias e liberdade plástica. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.01, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4604>.
NOBRE, Ana Luiza. Niemeyer e a modernidade sem crise. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.02, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4605>.
BARRIOS, Carola. Transcrições arquitetônicas: Niemeyer e Villanueva em diálogo museal. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.03, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4465>.
ZEIN, Ruth Verde. Oscar Niemeyer. Da critica alheia à teoria própria. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.04, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4608>.
ROMERO, Marta Adriana Bustos. Niemeyer e o sentido do lugar: uma visão bioclimática. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.05, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4609>.
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.06, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4630>.
KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4631>.
QUEIROZ, Rodrigo. Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.08, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4632>.
sobre a autora
Ana Luiza Nobre é arquiteta e doutora em história. Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo e do Curso de Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, ambos na PUC-Rio. Membro do CICA-Comitê Internacional de Críticos de Arte. Foi assistente editorial da revista AU – Arquitetura e Urbanismo, diretora-executiva da Casa de Lucio Costa e editora (com Haifa Sabbag) da seção A.C. – arquitetura.critica, do portal vitruvius. Suas principais publicações incluem Arquitetura moderna no Rio de Janeiro (com Alberto Xavier e Alfredo Britto), Carmen Portinho: o moderno em construção e Coletivo. arquitetura paulista contemporânea (com Ana Vaz Milheiro e Guilherme Wisnik). Assina também um blog sobre o Rio de Janeiro: www.posto12.blogspot.com.