Lúcio Costa não se cansou de repetir que a obra de Niemeyer traz a "marca inevitável do verdadeiro criador" (1) - sua originalidade decorre certamente da importância atribuída à "expressão artística", numa época em que exigências pragmáticas e "funcionalistas" tendem a sobrepor-se aos valores artísticos. A originalidade de Niemeyer não resulta do gesto gratuito e virtuoso da inovação per si, antes é a manifestação mais forte de um sentimento vital - abertura franca, sem reservas para o exterior, expansão plena do ser a preencher o vazio. Talvez na visão de Lúcio Costa esta seja a nossa singular condição cultural: encarar sem reservas essa situação de tábula rasa que nos persegue desde a data do descobrimento. Niemeyer, mais do que nenhum outro, teria aceito de bom grado essa condição e procurado tirar dela o máximo proveito.
O tipo de individualismo que seu trabalho revela é o que Lúcio Costa qualifica como "genérico e produtivo", representando a afirmação de uma personalidade expressiva alheia à diluição que o processamento técnico do mundo moderno tenta impor. Justifica-se, assim, a defesa de categorias tradicionais, tais como: gênio, liberdade criativa, invenção, imaginação, para qualificar a obra de Niemeyer, pois estas assumem valor positivo a ser preservado como fatores irredutíveis ao processo de objetivação dominante. Essa idealização funda-se na convicção de que o artista, ostentando uma personalidade vigorosa, excitante e impositiva, poderia expor-se publicamente, isto é, exteriorizar na obra toda expressividade, sem sentir-se esmagado ou constrangido por situações ou forças contrárias, seja a publicidade diluidora do real moderno, seja o poder dissolvente de um espaço monumental.
As formas extrovertidas de Niemeyer propalam que aos desígnios de sua vontade o real se dobra. O gesto desimpedido, espontâneo, é sinônimo de ação criativa e explicita a condição de um sujeito que é pura disponibilidade. Afinal, nenhuma contingência, seja o peso opressor de um passado, seja a incômoda instabilidade do presente ou a incerteza do futuro, freia o processo criativo. Qualquer iniciativa será sempre inaugural, haja vista que, nos desenhos de Niemeyer, o País Novo é representado como vazio, superfície intocada à espera de uma ação.
Plásticas, as formas distendem-se elasticamente numa expansão lenta e confortável. Esforços de tensão, resistência dos materiais, limitações da técnica, imposição geográfica, enfim, nenhum desses fatores transparece na obra - predomina a pureza da forma. Livres das imposições da natureza, os planos ondulantes, as linhas em movimento, os volumes luminosos espalham-se graciosamente sobre a extensão infinita do território. Ao longo de sua produção Niemeyer desenvolve soluções originais, com destaque especial para as audaciosas estruturas de cobertura, ora completamente vazadas, ora quase totalmente fechadas, todos se caracterizando pela flutuação e flexibilidade. Mesmo em edifícios de mais de um pavimento, onde o volume retangular impõe-se, a sensação de rigidez e compacticidade é atenuada graças a introdução do pilotis, usualmente em forma de "V", que dissolvem o peso mediante o movimento rítmico. Tal sistema reduz pela metade os pontos de apoio no solo e, graças à particularidade de sua configuração (triângulo invertido, cujo vértice recolhe as cargas e as transmite para fundações por um único ponto), temos a impressão que o edifício, apesar do volume grandioso, toca levemente a superfície, apoiando-se delicadamente no solo.
A preocupação com a leveza revela obviamente a precedência da forma em relação à matéria e aos procedimentos construtivos. Daí que a arquitetura de Niemeyer se construa - conforme nota S.S. Telles (2) - como desenho, colocando sempre em destaque o perfil do volume da edificação. De fato, para escapar das exigências da matéria, a forma só pode erigir-se enquanto pura figura geométrica. O gesto que imprime o desenho sobre a matéria, desaparece quando a obra está concluída. À dissimulação da tectônica, se soma igualmente ao que normalmente se vê como o trabalho do projeto. Com aparente facilidade, Niemeyer passa diretamente do croqui para a construção, tornando desnecessária (pelo menos é o que vemos nas apresentações (3) dos projetos) toda a fase de precisões métricas e funcionais, do longo processo projetual. Nossos códigos de representação convencionais (planta, corte, elevação) parecem dispensáveis, ante a força sintética do desenho à mão livre, capaz de condensar num gesto forma, espaço e estrutura.
Sublimada, a forma se transforma em luz e as forças que tensionam a estrutura acabam dissimuladas pela potência da expressão plástica. Para alcançar a pureza do Belo, Niemeyer constitui uma realidade apartada da contingência e da temporalidade das coisas materiais. As obras, por consequência, fundam o espaço, fazendo com que o ambiente circundante concentre-se totalmente sobre o objeto construído. É, exatamente, tal poder de atração o que dá integridade à forma. Dominando o entorno, os edifícios adquirem inevitável feição monumental. Porém, ao fazer as formas flutuarem sobre o horizonte, Niemeyer confessa sua intenção de evitar qualquer contato que contamine a idealidade da forma. Assentá-las firmemente no terreno seria submetê-las a ação da força de gravidade, admiti-las como entes materiais com peso, matéria, duração e, por conseguinte, finitude.
“Leveza”, “graça”, “plasticidade” são os termos usuais para qualificar a obra de Oscar Niemeyer. Destes, o que mais me interessa aqui é “graça”, talvez o único que possa ser assumido como uma categoria estética, justamente por estar correlacionado ao ideal do belo.
Senão vejamos: os grandes vãos, os balanços inacreditáveis, as extensas coberturas aéreas, os apoios que mergulham em espelhos d’água, os volumes gigantescos que pousam em delicados pilotis, as curvas sensuais e caprichosas de suas formas esculturais, tudo enfim parece procurar o, a primeira vista, construtivamente inviável, para no instante seguinte, de modo a afirmar a vitória da imaginação e do engenho, lograr êxito e efeito.
As formas sublimam as resistências tectônicas, superam as forças estáticas conduzindo-as a um repouso tranquilo, apagam o esforço da matéria moldada para vencer a força da gravidade, dissolvem o peso na luz alva que ressoa pelas superfícies geométricas de perfil nítido e cortante.
Suspensão é o que se costuma caracterizar esta arquitetura que busca um novo desafio técnico, formal, espacial para no momento de sua realização dissimular toda a dificuldade imposta para sua viabilização. Para vencer a inexorável força da gravidade, tanto no sentido físico, como teológico, o arquiteto faz o ato da elevação, da flutuação. Não implantar, afundar o edifício no solo, mas antes pousar, levitar, suspender. Entre as exigências e as superações do empírico, entre esse desaparecer e aparecer, a arquitetura de Oscar Niemeyer desvela sua graça.
Guilherme Wisnik (4) já apontou essa correlação entre graça e gravidade na obra de Niemeyer por um viés literário, tomando os aforismos poéticos de Simone Weil como estímulo.
A criação é o resultado do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça em segunda potência. A graça é a lei do movimento descendente. Descer é subir relativamente à gravidade moral. A gravidade moral faz-nos cair para o alto.(5)
Apesar dos ecos teológicos, o ponto mais interessante é essa movimentação cruzada entre gravidade e graça, ou em outros termos, entre moralidade e beleza na criação artística. É justamente sobre este ponto que gostaria de me deter, de início, procurando acompanhar historicamente as definições de graça.
A facilidade, a espontaneidade, o desdém pela ideia de trabalho, a dissimulação de toda a técnica são traços conhecidos daquela ideia de arte que aparece sem esforço aparente. Desde O cortesão (1528) de Baltazar Castiglione, no período da renascença, essa fusão entre artisticidade e naturalidade se apresenta como definidor da graça estética. A especificidade do estético que começa a se anunciar nos diz que não se trata mais de uma dádiva momentânea dos deuses a inspirar poetas e heróis gregos, nem a luz divina que cai para abençoar e assim salvar o homem do peso do pecado original, como no conceito da graça cristã.
No renascimento, portanto, a graça começa a ser entendida como uma qualidade que pode ser conquistada pelo estudo e pela cultura. Ao invés de algo que vem do exterior, a graça entendida como forma moral ou estética pode ser objeto de aquisição, seja para tornar mais virtuoso o homem, seja para elevar o processo criativo do artista, na medida em que ele toma consciência de seu modo de ser, de fazer e de agir.
No entanto, graciosidade nunca significou exagero, futilidade, retórica, artificialismo. Ao contrário, quis reagir contra os efeitos exagerados do barroco, defendendo o controle, a precisão e o verdadeiro. Segundo Boileau, em sua L’Art Poétique (1674) a graça poética estaria na construção do verso que equilibra elegância, ritmo e leveza com clareza funcional.
Começa a se tornar evidente a relação intrínseca que une graça e movimento. Hogarth (5) define graça como a “beleza do movimento equilibrado”. A famosa linha sinuosa do pintor inglês é quase já a afirmação de um signo formal que vale por si, que agrada pela graça de seu movimento, não mais se sujeitando às regras da proporcionalidade geométrica, na medida em que não delimita, não encerra, sendo tão somente fronteira que conecta, une.
Nesse fluir desimpedido, mas que implica um controle preciso de movimento, estabelece-se a oscilação entre a espontaneidade e a decisão moral que governa nossas ações e movimentos. Quanto mais o movimento aparecer natural e espontâneo, não deixando entrever o ato da vontade, mais gracioso será. A naturalidade conquistada pela força da vontade consciente é o sinal da dignidade moral do espírito elevado. Não pareceria possível que estas duas categorias pudessem ser compartilhadas, mas esse é o modo como Schiller vincula beleza e moralidade em seu ensaio Sobre a Graça e a Dignidade, de 1793.
Pensando em Oscar Niemeyer, surge a interrogação se outra vez o arquiteto efetue a separação entre o plano estético e o plano moral, ou se suas formas realmente são passíveis de um juízo moral.
Uma primeira distinção que gostaria de fazer é que não compartilho da visão de que a graça em Niemeyer possa significar gratuidade. Apesar das bravatas anti-funcionalistas, a forma exige tanto controle quanto qualquer outra instância, seja prática ou técnica. A meu ver, Niemeyer, a seu modo, compreendeu em Le Corbusier a liberação do signo plástico moderno. Tal como nas manobras cubistas, o signo se libera do vínculo causal com seu referente, estando apto e livre para se desenvolver segundo lógica própria e em tantas possibilidades quanto a imaginação possa dar conta. No caso de Niemeyer, isso significou a liberação da razão da forma de obrigações mecânicas impostas pela função. Mas, o que nas artes plásticas foi compreendido como conquista de autonomia plástica, na arquitetura foi visto como “atitude formalista”.
Não obstante, o formalismo de Niemeyer, se visto pelo viés da forma na sua autonomia, pode receber leitura positiva. A singularidade dessa arquitetura não reside tanto na assunção do signo plástico como estrutura construtiva, daí a sua redução à seção geométrica regular, composição típica do racionalismo europeu, mas como na definição de Hogarth, na afirmação de um signo formal que vale por si, que agrada pela graça de seu movimento: puro desenho, solto, animado, livre. A beleza no movimento.
Mas a graça espontânea do traço de Niemeyer se obtém com extrema economia de meios; com gestos sintéticos e contínuos o arquiteto consegue um excesso de forma. Ao excesso se devem as acusações de gratuidade e luxo, à contenção a admiração pela simplicidade e pureza. Outra dicotomia igualmente posta em questão é interior e exterior. Na convenção funcionalista, ambos são ditados por um mesmo termo – a função, ortodoxia de saída negada pelo arquiteto no início de sua carreira. Em Niemeyer passar do exterior para o interior (e vice-versa) parece supor um único e mesmo movimento, denotando um complexo raciocínio topológico deflagrado pelos planos em continuidade (sejam pisos, lajes, paredes e coberturas), cuja percepção decorre na atuação do corpo no espaço. É por isso que se diz que os volumes e plantas de Niemeyer são, tal como numa fita de moebius, exteriorizados, pois não supõem uma interioridade ideal, logo encontram em estado de reversibilidade contínuo. A forma não se decompõe, ao contrário, se reafirma unitária ao longo do movimento.
A beleza no movimento não se reduz, é óbvio, apenas à dimensão das formas plásticas, podendo ser apreendida, por excelência na dança, na qual o mais deliberado gesto parece o mais natural. Também no plano das ações humanas, o perfeito equilíbrio entre vontade e ação, denota uma qualidade superior de beleza moral.
Niemeyer pode ter aprofundado a cisão entre o belo e o político, visto que este pertenceria ao mundo do trabalho, do peso da desigualdade e dos embates sociais, mas a integridade de sua atitude artística é clara e enfática. Por isso, a arquitetura de Niemeyer dá a impressão de habitar um lugar ideal, no qual as tensões são pacificadas e as formas encontram um lugar natural. Tal idealidade assinala, é inegável, um desacordo profundo com o presente conflituado, ponto de contato com os ideais progressistas da arquitetura. De fato, elas apontam para uma inevitável utopia no qual todos teriam participação e acesso ao Belo.
Ainda que por um instante, as coisas que o homem moderno constrói, nossos corpos e a natureza pareceriam encontrar-se em correlação pacífica e proporcionada.
notas
NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz nove artigos sobre vida e obra do arquiteto Oscar Niemeyer, falecido no dia 5 de dezembro de 2012. Os artigos do número especial em tributo a Oscar Niemeyer são os seguintes:
VALLE, Marco do. Oscar Niemeyer. Morreu nosso arquiteto maior. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.00, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4603>.
SEGRE, Roberto. Oscar Niemeyer. Tipologias e liberdade plástica. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.01, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4604>.
NOBRE, Ana Luiza. Niemeyer e a modernidade sem crise. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.02, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4605>.
BARRIOS, Carola. Transcrições arquitetônicas: Niemeyer e Villanueva em diálogo museal. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.03, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4465>.
ZEIN, Ruth Verde. Oscar Niemeyer. Da critica alheia à teoria própria. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.04, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4608>.
ROMERO, Marta Adriana Bustos. Niemeyer e o sentido do lugar: uma visão bioclimática. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.05, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4609>.
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.06, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4630>.
KAMITA, João Masao. A graça estética da arquitetura de Oscar Niemeyer. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.07, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4631>.
QUEIROZ, Rodrigo. Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.08, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4632>.
1
COSTA, Lucio. Muita construção, alguma arquitetura e um milagre. In. Arte em Revista 4. São Paulo, CAC, 1983.
2
Afirma Sophia S. Telles:“... sua imaginação se quer livre de toda contingência. São formas que se querem naturais que a elas cabe apenas a contemplação.” Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, 1988, op.cit. p. 83.
3
Esse modo de exposição do processo criativo da arquitetura tem, a meu ver, muito de retórica, no sentido de uma estrutura argumentativa elaborada, segundo fins comunicativos específicos. Merece, inclusive, um estudo mais aprofundado.
4
Ver “Oscar Niemeyer: Intuição Trágica e Repouso”. In.- WISNIK, Guilherme. Estado Crítico: à deriva nas cidades. São Paulo, Publifolha, 2009, p. 180-185.
5
WEIL, Simone. A gravidade e a graça. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
6
A esse respeito, ver “As ideias artísticas de William Hogarth”. In. ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. São Paulo, Cia das Letras, 2010, p. 47-60.
sobre o autor
João Masao Kamita é arquiteto, doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e professor da PUC-Rio nos cursos de graduação em História e de Arquitetura, e atua no programa de pós-graduação em História Social da Cultura na mesma universidade.