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architexts ISSN 1809-6298

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Este texto é o discurso de agradecimento feito por Carlos A. C. Lemos ao receber a Medalha Anchieta na Câmara Municipal de São Paulo em 15 de dezembro de 2012.


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LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. A importância de preservar a memória da metrópole de Anchieta. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 152.00, Vitruvius, jan. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.152/4633>.

Estou sendo homenageado com esta Medalha de Anchieta, sobretudo, porque sempre amei e defendi a memória da cidade de São Paulo, desde pequeno. Lembro-me, como se ainda fosse hoje, da decepção que tive ao ver velha fotografia mostrada por meu pai da igreja do Carmo tendo à sua frente um carro de boi, instantâneo prosaico registrado por Militão, em 1862, e logo compará-la mentalmente com o cenário que percorria diariamente ao me dirigir ao Ginásio do Estado, ali em baixo no Parque D. Pedro II. É que fiquei espantado ao saber que o velho adro de terra batida e de desníveis irregulares fora substituído por altos arrimos e terraços de pedra lavrada destinados a normalizar o alinhamento da Avenida Rangel Pestana. As novas muralhas escondiam a veneranda igreja do menino, que diariamente descia a íngreme ladeira.

Igreja do Carmo
foto Militão Augusto de Azevedo [Acervo Iphan]

Alguns anos mais tarde, a imensa e acachapante Secretaria da Fazenda ocupou o espaço do velho convento e de seu templo lindeiro para visualmente esmagar a pequenina igreja da Ordem Terceira, que sobrara das tratativas entre a Cúria e o Estado. Em 1951, projetei, exatamente do outro lado da avenida, para o Banco Nacional Imobiliário, um edifício de vinte e tantos andares situado entre sobrados do século 19. Assim, participei inadvertidamente do processo de reconstrução da cidade, substituindo o velho pelo novo e desfigurando cenários históricos da cidade. Ali, com a minha colaboração, as primitivas relações espaciais literalmente foram para o espaço. Essa constatação nos ocorreu agora ao redigir este texto, pois naqueles dias iniciais da carreira de arquiteto achava aquilo tudo muito normal e nem me poderia advir a hipótese negativa de estar colaborando na desfiguração do sítio histórico porque minhas atenções no momento cingiam-se unicamente construções históricas isoladas, independentes de seu entorno.

As décadas dos anos 1950 e 1960 me foram de muito trabalho, na FAU-USP, no escritório de Oscar Niemeyer, e de muita pesquisa, também, pois nesse tempo participei praticamente sozinho da redação do Dicionário da Arquitetura Brasileira e, através dessa ocupação, habilitei-me ao ensino da história das nossas construções em geral, tema então, de bibliografia extremamente escassa.

Projetos aos quais Carlos Lemos participou: Copan, de seu período no escritório de Niemeyer, e o edifício da Agência Central do Bradesco.
foto Victor Hugo Mori

Na minha vida, o ano de 1974 foi um verdadeiro divisor de águas, com bem nítida separação entre pensamentos a respeito daquilo que hoje chamamos de “Patrimônio Cultural”, ou de “Patrimônio da Cultura Material” e aquilo que antigamente denominávamos de “Patrimônio Histórico a Artístico”. É que, naquela data, aconteceu durante todo o segundo semestre o primeiro curso de alcance nacional para aperfeiçoamento de técnicos das repartições públicas responsáveis pelo tombamento e guarda de bens históricos ou artísticos. Nele, como técnico do Condephaat, ganhei o embasamento teórico que me faltava e que me abriu os olhos. Nele, tomei conhecimento das relações necessárias entre o saber fazer de uma sociedade e o seu meio ambiente com os seus recursos disponíveis, donde surgem os bens materiais precisos à sobrevivência de todos. E logo percebi que o Brasil colonial era um vasto arquipélago de ilhas culturais e, a partir daí, pude equacionar com precisão a minha história da arquitetura brasileira a ser lecionada na FAU-USP. Aqui não posso deixar de mencionar o professor Hughes de Varine Bohan, delegado da Unesco nas tratativas internacionais referentes às questões do “patrimônio cultural”. Foi um mágico que nos mostrou horizontes não percebidos graças a sistematizações de ordem ecológica.

Devido a tudo isso é que passei, somente a partir de 1975, a escrever na Folha de S. Paulo sobre os problemas que afligiam e ainda atormentam a cidade de São Paulo, sempre procurando defender os bens culturais de alto interesse, que sobraram da sanha avassaladora dos incorporadores imobiliários do início da verticalização ocorrida no pós-guerra, por volta de 1948/50. Sempre escrevi de modo coloquial, sem hermetismos teóricos, porque também sempre fui um empírico empedernido. Nas tratativas de requalificação de edifícios históricos tombados, sobretudo, sabemos que cada caso é um caso, não havendo nunca coincidências ou repetições de procedimentos. Nas discussões envolvendo pessoas de opiniões divergentes no momento de reuso de edifícios percebemos que os preservadores teóricos “xiitas”, inconsequentemente, estão fora da realidade lutando justamente contra a salvaguarda do bem em discussão. Sempre procurei ficar longe das regras teóricas e sempre repito uma frase do saudoso Joelmir Beting: “Na prática, a teoria é outra”. Vocês não imaginam, por exemplo, quanta saliva foi gasta nos debates sobre o aproveitamento da Estação da Luz, isto é, de sua área alheia à função ferroviária; aquela dos escritórios da burocracia administrativa. Evidentemente, acabou ganhando o bom senso da ala reformista e aí está atraindo diariamente milhares de visitantes o nosso Museu da Língua Portuguesa. Esse tema de requalificação de edifícios ameaçados ou vazios foi um assunto recorrente nos meus artigos. Vários deles foram decisivos na salvaguarda de velhos documentos arquitetônicos.

Estação da Luz e o Museu de Língua Portuguesa
foto Victor Hugo Mori

Mas, o que verdadeiramente me inquieta e espanta ao mesmo tempo é estarmos vivendo numa metrópole crescida ao léu, despoliciada e à mercê de toda sorte de comportamentos. A metrópole já antevista por Anchieta no século 16 sempre embasbacou a população desavisada e preocupou os governantes municipais cujos sucessivos planos diretores da cidade nunca foram, no entanto, levados a sério. Os teóricos do urbanismo sempre agiram como se São Paulo fosse habitada só por anjos e fingem que não sabem que o capeta se infiltrou entre as boas almas fazendo com que a legislação sempre fosse burlada conforme os interesses os mais variados. Todos acabam enxergando as irregularidades e tramóias ofendendo a cidade mas, por preguiça, indiferença ou conveniência se calam. Podemos recitar milhares de ocorrências criminosas passivamente toleradas. Vejamos só um exemplo: o caso da antiga rua Hipólita, depois, Gabriel Monteiro da Silva, formada nos flancos do Jardim América. Nos mapas da cidade sempre participou do grupo de vias estritamente residenciais. Há uns vinte ou trinta anos atrás passou a abrigar lojas, quase todas ligadas à decoração de moradias chiques. Alguns inocentes chegaram a reclamar e a própria prefeitura justificou a tolerância da irregularidade dizendo que ali não havia comércio, apenas estabelecimentos abrigando mostruários, os tais “show rooms”. Hipocrisia pura, pois aquelas casas portando belas vitrines nunca foram residências. Esse embuste foi tolerado durante anos e anos.

A nosso ver, o que aconteceu na rua Gabriel Monteiro da Silva era inevitável, pois o desenvolvimento do comércio urbano e sua localização na cidade sempre ficaram à mercê do precaríssimo sistema de transporte coletivo no que diz respeito às demandas populares e às conveniências dos automóveis das classes média e alta. Por umas e outras os comerciantes ligados à decoração criaram um nicho próprio nas proximidades de sua melhor freguesia. Em algum lugar eles haveriam de se instalar; à semelhança de seus colegas da rua Santa Ifigênia, José Paulino, 25 de março, Consolação, todos satisfeitos com suas escolhas de território apropriado dentro da trama complexa de ruas nascidas por iniciativa privada.

rua Gabriel Monteiro da Silva
foto Victor Hugo Mori

No ano de 1900, São Paulo já era uma cidade cosmopolita, pois a população dita brasileira estava bem abaixo de 50%, enquanto os italianos chegavam a 43%. Vários visitantes ficaram surpresos ao ouvirem, no Centro e nos bondes, as pessoas conversarem em línguas diversas. E desde esses dias, do fim do século 19, nunca deixaram os imigrantes de chegar de todos os continentes. Hoje, dessa sociedade mesclada de etnias diversificadas que bens materiais poderíamos localizar representando o encontro ininterrupto de culturas havido? Cremos que nenhum, a não ser coisas advindas da sempre lembrada aldeia global submetida à aparelhagem eletrônica de comunicação. Uma coisa é absolutamente certa: os postulados, que aprendi com Varine Bohan, comprometendo o saber fazer de uma sociedade com os recursos locais da natureza para formar uma cultura material singular estão fora de cogitação. Nem pensemos numa cultura material arquitetônica paulistana contemporânea.

Esta reflexões fazem-nos pensar na atuação de órgãos como o Condephaat e, sobretudo, como o Conpresp, repartições que nunca tiveram uma política bem definida de tombamentos de edifícios e de preservação de bens móveis em geral. Essas entidades, na prática, na esteira da noção generalizada de que o nosso Patrimônio Cultural deva ser enquadrado apenas pelos seus atributos históricos ou artísticos, tombaram quase que exclusivamente artefatos ou construções emanados da classe dominante, da igreja ou do governo,antigos ou muito velhos. Num mapa da nossa metrópole de muitos milhões de habitantes, obtido a partir do auxílio dos satélites, se marcarmos os bens arquitetônicos ou de ordem urbanística tombados, veremos quão reduzida é a presença dos bens listados, talvez 0,05% de todo o território urbanizado, quase nada. Perguntamos, o que mais tombar para garantir uma variedade de artefatos ou construções realmente capacitada a guardar a memória coletiva de pessoas díspares amontoadas na trama urbana desde o último quartel do século 19? E, note-se: muita coisa já se foi. Por influência de Lucio Costa, que solenemente desprezou o Ecletismo, quase nada nos sobrou da arquitetura de tijolos dos italianos. Cremos que um dos caminhos apropriados a seguir é auscultar a população sobre aquilo que ela julgar seja digno de preservação.

As associações de amigos dos bairros estão aí justamente para definir os sítios e construções dignos de serem salvaguardados. Se não tomarmos providências semelhantes a essa, restará somente a hipótese que resguardará para sempre apenas as obras isoladas de autoria consagrada, aquelas que se sobressaíam na paisagem urbana. Digo isso tudo para não esquecermos uma circunstância fundamental: cabe ao Conpresp, como aos demais órgãos similares, a atribuição de estudarem a produção atual da cultura material para garantir o patrimônio de amanhã porque a cidade está a se renovar continuamente. Ela não espera.

O fato de ter ganho esta Medalha de Anchieta me envaideceu sobremaneira e não me importo que meus 87 anos façam a todos pensar que ela veio justamente para premiar meu fim de carreira. Puro engano, porque ela, antes de mais nada, é revigorante quanto à minha atuação, mas, também estimulante aos jovens preservadores que estão comprometidos com a memória da metrópole de Anchieta.

Obrigado.

Desenho de Carlos Lemos para o Jornal do SESC, por ocasião do aniversário de São Paulo em 1951, com o Padre Anchieta e a sua visão da cidade se tornando uma metrópole
Carlos Lemos [Victor Hugo Mori]

nota

NE
O presente texto é o discurso de agradecimento pela Medalha Anchieta, outorgada a Carlos A. C. Lemos pela Câmara Municipal de São Paulo em 15 de dezembro de 2012

sobre o autor

Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações, à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. (Perspectiva, 1976); A casa paulista (Edusp, 1999).

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