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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo trata das intervenções temporárias como forma de transformação dos lugares, focando quatro intervenções recentes no Rio de Janeiro, apresentadas a partir de oito dimensões constitutivas.

english
The article deals with temporary interventions as a way of transforming places, focusing on four recent interventions in Rio de Janeiro, presented through eight constitutive dimensions.

español
El artículo trata de las intervenciones temporales como forma de transformación de los lugares, centrándose en cuatro intervenciones recientes en Río de Janeiro, presentadas a partir de ocho dimensiones constitutivas.


how to quote

FONTES, Adriana Sansão. Intervenções temporárias no Rio de Janeiro contemporâneo. Novas formas de usar a cidade. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 154.00, Vitruvius, mar. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.154/4678>.

Introdução

Nossa primeira ideia: é preciso mudar o mundo. Queremos a mais libertadora mudança da sociedade e da vida em que estamos aprisionados. Sabemos que essa mudança é possível por meio de ações adequadas. (1)

Esse clamor revolucionário introduz o texto apresentado pelo autor na conferência de fundação da Internacional Situacionista, em 1957 na Itália. O grupo de artistas, pensadores e ativistas que integravam o movimento se propunha, através de manifestos e atuações na cidade, a estimular novos modos de fruição dos espaços urbanos, como forma de combater a alienação e a passividade da sociedade da época. Essa citação de abertura define o espírito desse artigo: a ideia de resgate do valor humano de se viver na cidade através da ativação intencional da vida urbana. No entanto, ao invés das técnicas situacionistas para lidar com essa condição de passividade, pretendo apresentar as intervenções temporárias como forma de transformação dos lugares. Para isso, baseio-me na suposição de que as intervenções temporárias podem deixar marcas permanentes na cidade.

As intervenções que serão discutidas aqui correspondem às ações contestatórias no espaço urbano contemporâneo, especificamente no Rio de Janeiro, intencionalmente temporárias na medida em que surgem de uma atitude diferenciada frente à cidade e suas idiossincrasias. Trata-se de “atitudes” que contém o desejo de transformação do espaço, advindo de uma forma contemporânea de pensar e agir.

A motivação vem da percepção de que o Rio de Janeiro, muito mais do que antes, anda se “libertando”. Artistas, arquitetos, designers, associações civis, população em geral, resistindo às ações padronizadoras de comportamento, engajam-se, gradativamente, em ações de reconquista do espaço público, em tempos onde este nem sempre resulta estritamente “público”. Essas ações, eventuais, de movimentação, poetização e reconquista da rua e da praça, vem se intensificando nos últimos anos, resultado da ação de grupos organizados e movidos por uma causa comum: usar a cidade! Através de intervenções temporárias que estabeleçam uma ruptura positiva no cotidiano.

Alguns exemplos recentes já são bastante conhecidos, e, de certa forma, se misturam à informalidade cotidiana da cidade, como as apropriações espontâneas de roda de samba e feiras de troca [Praça São Salvador], ou práticas de skateboarding [Praça XV]; intervenções de arte pública como as “Interferências Urbanas” [Santa Teresa, Glória e Catete]; e festas locais, como as realizadas sob o viaduto de Madureira, entre muitas e muitas outras.

Trataremos nesse artigo, especialmente, de quatro intervenções recentes nos espaços públicos do Rio de Janeiro: “Opavivará ao vivo”, misto de intervenção de arte com apropriação espontânea do espaço público; Park(ing) Day Rio de Janeiro, misto de intervenção arquitetônica com festa ao ar livre; e“Aqui bate um coração” e “Cabeção”, ambas intervenções de arte pública em estátuas e monumentos.

Espaço público como espaço doméstico

O “Opavivará ao vivo” foi uma intervenção temporária realizada pelo coletivo de arte Opavivará, que se apropriou por um mês da Praça Tiradentes, marco histórico do centro do Rio de Janeiro. Com a intenção de subverter o “estar junto” cotidiano, a ideia do coletivo foi ocupar o espaço público e agregar as pessoas através da uma prática doméstica, colocando em contato o domínio público da praça com a intimidade da cozinha. A intervenção formalizou os espaços coletivos através de usos como mesa coletiva, fonte d’água, lavanderia e sala de estar, todos eles dispositivos relacionais de acesso livre para o público, durante as quartas e sábados do mês de maio de 2012.

A intervenção não ditava regras de conduta. Era só chegar e participar, cozinhando, ajudando, comendo ou simplesmente socializando. Uma das estratégias do coletivo para a inserção da intervenção se fundamenta no conceito da camuflagem, ou mimetização, ideia em que a intervenção se funde à prática cotidiana, não ficando tanto em evidência, no entanto, causando um estranhamento dentro do contexto. A proposta se materializa, portanto, em uma dialética “expor” - “mimetizar”.

Outro conceito trabalhado pelo coletivo nessa ação temporária é a dissolução dos domínios público e privado, quando atividades privadas são praticadas no espaço público, aliando o “estar coletivo” com a intimidade do espaço privado. Nesse movimento de simbiose, a casa desliza até a praça através de elementos móveis de design próprio. Toda a conformação espacial parte da cozinha, dispositivo relacional principal e local de encontro da casa tradicional. É ela o elemento agregador, que possibilita transportar os elementos do cotidiano para além dele, no espaço tempo da intervenção.

Cidade para pessoas

A intervenção Park(ing) Day Rio de Janeiro, organizada por um grupo de arquitetos cariocas (2), tomou lugar na mesma praça, em setembro de 2011. A intervenção faz parte de um programa mundial que propõe a ocupação de uma vaga de estacionamento para convertê-la, por algumas horas, em área de lazer. A proposta surgiu da necessidade de se pensar sobre a maneira como as ruas são usadas, e sobre a quantidade de área destinada a estacionamentos, que poderiam ser mais bem aproveitadas pela população. A versão do Rio de Janeiro ofereceu aos transeuntes e usuários da Praça Tiradentes um debate sobre mobilidade, seguida de uma festa ao ar livre.

São 12,5 m² que poderiam atender, por exemplo, a 24 pessoas sentadas assistindo a um evento, a 36 pessoas de pé conversando confortavelmente, a 12 crianças brincando sentadas, a 12 bicicletas estacionadas, a1 horta urbana produzindo 720 tomates, a 1 mesa de ping pong ou a 1 piscina Tony para a molecada da rua. No entanto, em grande parte das ruas, esse espaço serve somente a 1 carro que atende, normalmente, a 1 pessoa. Uma enorme distorção.

Além de uma reflexão sobre essa relação estacionamentos X espaços públicos, o que se propunha era uma intervenção temporária para ativar o espaço urbano, imaginar novas paisagens e presentear a cidade com algo que rompe com a linha contínua do cotidiano. Uma pequena estrutura de bambu deu forma ao espaço da vaga, criando um suporte neutro e polivalente para todas as apropriações que tomaram parte no lugar.

Memória Coletiva

A intervenção “Aqui bate um coração”, realizada pelo coletivo de arte “Choque de amor” em uma madrugada de maio de 2012, consistiu em uma ação “subversiva” de colar corações nas estátuas da cidade, com o intuito de chamar atenção para as personalidades que pontuam os espaços públicos, e de sensibilizar a população para uma cidade mais amável.

Os participantes dividiram-se em grupos e traçaram roteiros diferentes, buscando monumentos com visibilidade, predominantemente estátuas figurativas, para procederem à colagem dos corações. Foi uma ação de rápida duração realizada de madrugada, momento em que as praças estavam vazias. No entanto, enquanto intervenção temporária, durou até a manhã seguinte, quando os espaços públicos da cidade amanheceram diferentes e despertaram a atenção e a observação mais detalhada da população.

É uma intervenção que fala da memória, sobrepondo a ela outra camada temporal. A própria estátua existe para celebrar a memória de alguém. No momento da intervenção, sobrepõe-se uma segunda celebração, artística, que também passará a fazer parte da memória coletiva do lugar.

Cidade Como Jogo

E é justamente para problematizar essa memória imposta através dos monumentos que surge a intervenção “Cabeção”, realizada por Aline Couri. Ela parte da seguinte pergunta: quem constrói a cidade? - fundamentando-se na filosofia situacionista de que a cidade deveria ser construída pelos usuários. Nesse sentido, propõe-se a refletir sobre a tal escultura “Cabeção”, instalada na Praça Luís de Camões, polêmica na cidade, mas que já se consolidou como referência na paisagem. Afinal, quem deveria escolher as esculturas que são instaladas na cidade?

A intervenção, na forma de uma videoinstalação, permitiu que o usuário criasse a obra, ocupando a escultura como tela para a projeção das caras dos usuários da praça e participantes do evento. Funcionou como um jogo, ou brincadeira, que convidou os usuários a refletirem sobre o espaço público, seus usos e símbolos. A obra se manteve em movimento, transformando-se no ritmo da participação das pessoas, na duração de cinco horas.

As intervenções temporárias em oito dimensões constitutivas

Por definição, a intervenção temporária é a ação intencional que se move no âmbito do transitório, do pequeno, das relações sociais, que envolve a participação, ação, interação e subversão, e é motivada por situações existentes e particulares, em contraposição ao projeto estandardizado, caro, permanente e de grande escala (Sansão Fontes, 2011:30).(3) Elas podem englobar diferentes tipologias, como, por exemplo, as apropriações espontâneas, as intervenções de arte pública, as intervenções arquitetônicas e as festas locais.

Tratarei de discutir brevemente as oito dimensões constitutivas dessa intervenção, de forma a distingui-la de outras temporalidades no espaço público, para, posteriormente, relacioná-la às quatro ações concretas objeto desse artigo. Alguns autores que tratam do “temporário” no espaço público também serão chamados à discussão, a partir de alguns conceitos e noções teóricas semelhantes ao presente objeto de estudo.

O transitório, o pequeno e o particular

Para diferenciar a intervenção temporária das diversas temporalidades possíveis, é necessário esclarecer que esta trata da pequena intervenção temporária específica a determinado lugar. Embora ciente de que pequenas intervenções não promovem grandes transformações, acredito que podem ser detonadoras de processos de transformação em longo prazo.

Segundo Crawford (1999), as diversas pequenas “atitudes” transitórias perante a cidade, por ela denominadas com o termo Everyday Urbanism, aproveitam as potencialidades existentes e intensificam e encorajam o uso dos espaços cotidianos de forma alternativa e empírica, dando-lhes novos significados através dos indivíduos ou grupos que dele se apropriam. Por não terem horários fixos, produzem seus próprios ciclos, aparecendo, desaparecendo e reaparecendo em função do ritmo da vida cotidiana. No caso da ausência de uma identidade própria, os espaços costumam ser reformalizados temporariamente através dos usos que acomodam.(4)

A autora defende a cidade formada mais através das forças da “experiência vivida” do que através do desenho formal e dos planos oficiais, ressaltando que existe uma multiplicidade de respostas para lugares e tempos específicos, onde as soluções são modestas e pequenas em escala, contidas em calçadas, praças ou pequenos espaços. Trata-se, portanto, do olhar tático sobre a ação transitória, pequena e particular ao contexto, que se desenvolve nos espaços ordinários da cidade, buscando, para estes, novas possibilidades.

A intervenção “Opavivará ao Vivo”, na Praça Tiradentes, dialoga com essas questões, a partir do momento em que se resolve com elementos autônomos, ambulantes e sustentáveis [transitória]; ocupando apenas uma praça, envolvendo poucas pessoas e buscando “camuflar-se” com o contexto [pequena]; e relacionando sua forma com o espaço disponível, gerando uma implantação em função do desenho da praça [particular].

A intervenção Park(ing) Day Rio de Janeiro, por sua vez, exacerba sua transitoriedade através da velocidade de apropriação da vaga, e de montagem do novo “contexto” de lazer sobre ela [transitória]; reduz-se a 12,5 m², apesar de representar objetivos ambiciosos a longo prazo [pequena]; e adapta-se à forma da vaga, geradora da sua espacialidade [particular].

Já a intervenção “Aqui bate um coração” toma forma na passagem rápida dos atores pelas estátuas [transitória]; tem como suporte, única e exclusivamente, a escultura que recebe o coração [pequena]; e confia na visibilidade das estátuas figurativas para a transmissão da mensagem [particular]. A intervenção “Cabeção” é ainda menor tanto em duração quanto em tamanho, ocupando somente uma estátua por poucas horas. A estranheza da estátua gerou a intervenção, não fazendo sentido se transladada a outro lugar [particular].

O subversivo e o ativo

Para tratar dessas duas dimensões, recorro à Post-it City [cidade ocasional], termo cunhado por La Varra (2008), e que equivale à rede fragmentada e temporária de estruturas funcionais que ocupa os interstícios do tecido urbano e promove a escrita temporária de seus espaços públicos. Corresponde a um dispositivo de funcionamento da cidade contemporânea ligado às dinâmicas da vida coletiva fora dos canais convencionais.

Como um texto cheio de “post-it”, a cidade contemporânea está ocupada temporariamente por comportamentos que não deixam rastro – como tampouco o deixam os “post-it” nos livros – que aparecem e desaparecem de modo recorrente, que têm suas formas de comunicação e de atração, mas que cada vez são mais difíceis de ignorar.(5)

Estes modos temporais de ocupação do espaço público para distintas atividades revelam habilidades subjetivas na tarefa de reconquistar o espaço público frente à pressão institucional à qual está submetido, tornando-se o post-it um sensor da qualidade urbana latente, de um espaço aberto a dinâmicas diferentes e não invasivas.

Enquanto estratégia de resistência, a cidade ocasional traz à tona a dimensão subversiva da intervenção temporária, na medida em que desafia as regras vigentes, fazendo com que questionemos aonde estas nos pretendem conduzir. E enquanto tática de conquista do espaço, revela sua dimensão ativa, seu impulso lúdico, sua capacidade de descobrir potencialidades, de recuperar lugares ou mesmo de “poetizar” no espaço urbano.

Em uma atmosfera caracterizada pela indiferença e pela rotina, a ação temporária funciona como um elemento revitalizador, sendo encarada como tema de interesse nas intervenções urbanas (Gausa, 2001), caracterizada pela vontade de interagir, ativar, produzir, expressar, mover e relacionar, agitando os espaços e as inércias, através de “acontecimentos” ou “eventos”.(6)

O “Opavivará ao vivo” encontra essa dimensão subversiva quando transforma o uso cotidiano do espaço, colocando em contato o público e o doméstico em uma praça de natureza cívica, por muitas vezes à revelia do poder público. A dimensão ativa surge na movimentação que acarreta no lugar, interferindo no cotidiano dos transeuntes e impulsionando reações diversas na população.

Já a intervenção Park(ing) Day encontra sua dimensão subversiva através da transformação radical de uso da vaga, causando estranhamento nos usuários e transeuntes; com isso, a vaga se transforma em uma superfície ativa, que movimenta e amplia o domínio público, servindo a um bem maior.

Já a intervenção “Aqui bate um coração” subverte a estática dos monumentos e interfere no patrimônio público, ação inclusive que rendeu dores de cabeça aos participantes no conflito com a guarda municipal carioca. Relacionado a essa face, a intervenção dinamiza o monumento, impactando na forma com que a população o percebe [ativa]. A intervenção “Cabeção” se move com o mesmo espírito subversivo, borrando por alguns minutos a feição original da estátua e colocando-a em movimento no espaço [ativa].

O interativo, o participativo e o relacional

Em se tratando do caráter interativo, Büttner (2002)(7) ressalta o importante papel que desempenha a intervenção artística no cotidiano. Para assumir uma função pública, a arte deve ter como princípio básico e indispensável criar obras artísticas “com e para” um determinado lugar, abusando do confronto com o contexto e descobrindo, destacando e valorizando temas e lugares. Para produzir o seu efeito especial, no entanto, a intervenção deve ter uma existência passageira, e buscar a inclusão dos espectadores ou habitantes.A intervenção temporária deve perseguir novas formas de interação com o usuário, e é na surpresa e na descoberta que reside a sua potência.

Intervenções temporárias podem funcionar como ferramentas de potencialização, revelando novas vocações para os espaços, colocando em prática um planejamento de base motivado pela atitude do “faça você mesmo”.

Mesmo após o término do uso temporário, o local da temporalidade permanece como uma tela de projeção sobre a qual podem ser feitas novas projeções.(8)

Esses argumentos reforçam também a dimensão participativa e a resistência, que se apresentam como aspectos fundamentais para a diferenciação da intervenção temporária de outras formas transitórias de atuação sobre os espaços urbanos, como, por exemplo, os grandes eventos. A participação equivaleria a um contraponto à ideia do “espetacularização”, e, estando na base dessas referências, recorro a Debord (1967) e aos estudos Situacionistas.(9)

Debord já afirmara que o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade e a sua principal produção. Em sua leitura da sociedade pós-moderna, profere que a alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente, e que a cultura transformada em mercadoria deve se tornar o produto vedete da sociedade espetacular. Com isto, a ideia da ativação equivaleria à experiência participativa do cidadão frente à cidade [participação X contemplação], constituindo-se em uma forma de resistência à cultura do espetáculo.

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens.(10)

A participação seria o motor da construção das situações dentro da ótica Situacionista, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida. Segundo a Internacional Situacionista (1958), a situação é definida como o momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos, e é feita para ser vivida por seus construtores. Dessa forma, chego à última dimensão da intervenção temporária, a dimensão relacional, ancorada nas relações sociais.

O “Opavivará ao vivo” encontra-se com essas três dimensões quando busca a conexão com o transeunte através da surpresa e da provocação, convidando-o a fazer parte da intervenção [interativa]; quando necessita de mão de obra para colocar em funcionamento a cozinha coletiva, que só existe se houver participantes que tragam o alimento, cortem e cozinhem [participativa]; e finalmente quando propõe uma experiência especial de juntar pessoas totalmente diferentes, colocando a população em relacionamento [relacional].

No caso do Park(ing) Day, o uso festivo apropriando-se de uma vaga de carros é algo inusitado que rompe com a leitura cotidiana do lugar e convida o transeunte a participar e interagir. Sem contar que a intervenção arquitetônica por si só foi uma ação realizada “de baixo para cima”, participativa em sua essência. Finalmente, dentre as tipologias apresentadas, a festa pode ser considerada a mais potente como dispositivo relacional de fato.

As intervenções “Aqui bate um coração” e “Cabeção”, finalmente, enquanto intervenções de arte pública, funcionam como um elemento surpresa no espaço público, interagindo de diferentes formas com o transeunte [interativas]. No caso do Cabeção, o participante chega a ser a própria obra. Ambas as intervenções são capitaneadas por grupos ou indivíduos com intenções artísticas, desvinculados de qualquer ação pública “de cima para baixo”, contando, inclusive, com a colaboração de desconhecidos. A intervenção “Cabeção”, em particular, questiona com sutileza a forma como as personalidades são homenageadas na cidade: a população, por alguns minutos, passa a ser criadora e protagonista das estátuas. Finalmente, ambas as intervenções são dispositivos relacionais, que colocam os usuários, e também os organizadores, em contato direto, estimulando a criação de novas redes sociais e de trocas.

Considerações finais

Alguns aspectos merecem destaque a respeito da relação lugar – intervenção, entendida como determinante na gênesis de cada evento. Nesse sentido, poderia afirmar que as intervenções temporárias estudadas revelam-se coerentes com os espaços físicos que lhes servem de suporte. Cada um a sua maneira, eles guardam os componentes de potencial atração para o desencadeamento das intervenções: tanto os amplos espaços livres e recuperados da Praça Tiradentes, quanto as estátuas icônicas das praças cariocas, geram intervenções com interessantes particularidades. Com isso, enfatizo a vital importância dos atributos físicos de cada lugar, e o caráter determinante da pequena escala como garantia de manutenção da relação lugar-intervenção.

A presença das intervenções, por outro lado, faz com que esses atributos físicos ganhem relevo, reformatando os lugares e desencadeando um movimento cíclico positivo para a sua sobrevivência: cada espaço potencialmente atraente que se concretiza como intervenção, cada vez mais vai estimular a sua reintervenção temporária e reinvenção permanente.

As duas intervenções que se apropriaram da Praça Tiradentes tiveram relação indireta com sua revitalização. O coletivo de arte Opavivará já tinha um vínculo antigo com a praça, devido a intervenções passadas que questionavam a presença das grades, que por muitos anos cercaram o local(11). Com sua recente abertura, o coletivo resolveu pensar uma intervenção específica para a praça revitalizada, cujas características adquiridas, como a de um espaço de passagem, amplo e livre no centro, serviram de atração. A intervenção se aproveitou da paginação de piso para criar uma linha imaginária circular, organizando os elementos, que posteriormente tenderam a juntar-seainda mais, de forma a aumentar a proximidade entre as pessoas, responsáveis de fato pelo arranjo espacial. Entretanto, o nomadismo dos objetos criados por eles garantiram seu caráter genérico, podendo ser replicados em outros lugares, através de outros arranjos.

O Park(ing) Day, da mesma maneira, aproveitou-se da revitalização da praça e do momento simbólico de retirada das grades, apropriando-se de uma vaga à sua margem. Por ter surgido da forma da vaga, a intervenção resulta mais genérica, uma vez que poderia estar em qualquer vaga da cidade. No entanto, o uso pensado para a apropriação – festa ao ar livre – explorou a condição adjacente da praça e as pequenas facilidades de infraestrutura disponíveis, resultando numa intervenção apropriada às cores do lugar.

No caso das intervenções de arte nas estátuas da cidade, o suporte físico representa a própria alma da intervenção. Dentro desse particular, tanto “Aqui bate um coração” como “Cabeção” buscaram monumentos figurativos com visibilidade, surgindo a intervenção de alguma questão específica, atrativa [ou incômoda no caso do Cabeção] que se desejava enfatizar.

Com respeito às transformações temporárias motivadas pelas intervenções, vale a pena ressaltar alguns aspectos. O Rio de Janeiro, com ruas de abundante informalidade, já pode ser considerada quase uma cidade “eventual”, pontuada de rupturas na linha do cotidiano. As intervenções, nesse sentido, desafiam esse cenário - também de exceções - através da “ruptura da ruptura”, buscando oportunidades no cotidiano para se propor o “absurdo”. Assim, se faz necessário inventar a cozinha na praça, o debate e a festa na vaga, o coração batendo nas estátuas e a projeção da cara do pedestre no cabeção.

Outro aspecto da transformação temporária, a conexão entre os participantes parece ter sido um dos mais potentes logros das intervenções. Foi visível no Opavivará ao Vivo, que reuniu ao redor da mesa desde o morador de rua até o professor de filosofia; no Park(ing) Day, com a ação simbólica de transportar um debate para fora do auditório e para dentro do próprio problema em discussão, reunindo autoridades e população, seguido da confraternização conjunta, mudado radicalmente o significado do lugar; no “Aqui bate um coração”, através da conexão de pessoas desconhecidas dentro do próprio grupo de atuação; e no “Cabeção” através das permanências, antes inexistentes, criadas diante da estátua, e do jogo coletivo que foi possível estabelecer no local, inclusive com as crianças.

Finalmente, respondendo à suposição de que as intervenções temporárias podem deixar marcas permanentes na cidade, poderia destacar alguns legados das intervenções, diretos ou indiretos.

Apesar de que o coletivo Opavivará preze por não deixar legados, assim como os post it, defende que o importante é a ocupação temporária do espaço, e que o principal legado é o momento e a experiência, admite que a intervenção contribua para a construção da memória coletiva do lugar, em si uma marca imaterial. Paralelamente, acreditam na contaminação da ideia, que pode se espalhar para outros lugares, contribuindo na formação de uma rede de intervenções que tome mais a cidade, convertendo-se em marcas no futuro. O objetivo desse artigo é, justamente, jogar luz sobre essa discreta rede que vem crescendo paulatinamente.

O Park(ing) Day se move no mesmo sentido, constituindo-se como mais um grão de areia no debate sobre mobilidade, carros e espaço público, que pode ter continuidade em outras ações, gerando transformações a longo prazo, ligadas indiretamente à intervenção. De toda forma, diretamente, ela incentiva o uso mais intenso da praça, despertando novas intervenções e consolidando seu potencial festivo eventual, que pode ser comprovado quase que semanalmente.

Com respeito às intervenções artísticas “Aqui bate um coração” e “Cabeção”, a transformação que se avalia é a valorização da visibilidade dos monumentos na cidade, inclusive para os próprios criadores da intervenção, representando para a cidade uma observação mais detalhada dos lugares e a formação de uma memória coletiva. Os lugares podem continuar os mesmos, mas a percepção em relação a eles se transforma após o término da intervenção.

Sem pretensões de grandes e rápidas transformações, mas sim de um “urbanismo homeopático” que produza pequenas e graduais mudanças, as intervenções temporárias possibilitam enxergar novas formas de usar o espaço e de levar a vida. Porque a boa vida tem algo mais do que simplesmente a dimensão do cotidiano, e a qualidade artística, festiva ou subversiva, que as intervenções temporárias aportam, corresponde a uma excepcionalidade na vida na cidade, um tempo especial em um espaço que se transforma. Não se vive só da satisfação das “mundanidades”, e, nesse sentido, as intervenções temporárias são as que presenteiam o “inútil” que faz desse cotidiano algo pleno e original.

notas

1
Debord, Guy. 1957. In: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: Escritos Situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

2
Autores da intervenção: Adriana Sansão, Ana Louback, Marina Kosovski, Pedro Évora, Pedro Rivera, Raul Bueno e Tatiane Carrer.

3
SANSÃO FONTES, Adriana. Intervenções temporárias, marcas permanentes. A amabilidade nos espaços coletivos de nossas cidades. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PROURB-FAU/UFRJ, 2011.

4
CHASE, John; CRAWFORD, Margaret; KALISKI, John. Everyday Urbanism. New York: The Monacelli Press, 1999.

5
LA VARRA , Giovanni. Post-it City. El último espacio público de la ciudad contemporánea. In: Post-it City. Ciudades Ocasionales. Barcelona: CCCB, 2008, p. 180.

6
GAUSA, Manuel et all. Diccionario metápolis de arquitectura avanzada. Ciudad y tecnología en la sociedad de la información. Barcelona: Actar, 2001.

7
BÜTTNER, Claudia. Projetos artísticos nos espaços não-institucionais de hoje. In Pallamin, Vera M. (org). Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo: EstaçãoLiberdade, 2002.

8
TEMEL, Robert. The temporary in the city. In: HAYDN, Florian e TEMEL, Robert. Temporary Urban Spaces: Concepts for the Use of City Spaces. Basel: Birkhãuser – Publishers for Architecture, 2006, p. 60.

9
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2002. (Ed. original 1967)

10
Idem, p. 14.

11
Projeto “Pula Cerca”, de 2009, realizado durante o Viradão Cultural do Rio de Janeiro.

sobre a autoraAdriana Sansão é Arquiteta e Urbanista, Doutora em Urbanismo pelo PROURB-FAU/UFRJ, Professora Adjunta da FAU/UFRJ. Coordenadora do projeto de pesquisa “Intervenções temporárias e marcas permanentes no Rio de Janeiro contemporâneo”.

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