Situada em um bairro residencial, próxima ao Parque da Água Branca, em São Paulo (1), a residência Telmo Porto, de 1968, constitui um exemplar destacado da produção da maturidade do arquiteto João Batista Vilanova Artigas. Conforme João Kamita, esta obra teria sido realizada em um “contexto de restrições às atividades culturais e políticas impostas pelo regime militar”, sendo “a mais reativa das residências do arquiteto, pois não abre qualquer concessão ao exterior como forma de exibir total discordância em relação a tudo o que se passava fora, em prol de um interior ideal realizado pela arquitetura” (2).
Transcorridas mais de quatro décadas de sua realização, tais premissas ainda teriam pertinência? Uma suposta motivação política ainda persiste como dado relevante para a sua compreensão?
Este tipo de comentário tem sido reafirmado para justificar o sentido particular deste edifício. O argumento, no entanto, é limitado e redutor. Nenhuma obra se sustenta apenas por sua motivação ideológica. Na maioria dos casos, em especial nas vertentes artísticas politicamente comprometidas, verifica-se com o passar do tempo que tais manifestações só permanecem quando são capazes de superar o envolvimento imediato.
Aliás, é o próprio Artigas quem, comentando o projeto do edifício da FAUUSP, afirma:
“O artista nunca tem intenção. Nunca se faz nada deliberadamente” (3).
Tais justificativas, portanto, deixaram de considerar os múltiplos aspectos associados à realização desta obra. De fato, para além de seu radicalismo introspectivo, há outros elementos relevantes. Um dos mais destacados encontra-se em sua concepção espacial. Uma grande cobertura envolve os vários planos de distribuição do espaço interno, uma espécie de mesa apoiada em três pontos. Esta última, de configuração assimétrica, contrasta com a ordem rigorosa da cobertura, expondo ambiguidades sugestivas de um organismo duplo, da caixa dentro da caixa, do abrigo e do habitáculo.
Referências preliminares
Esta residência mereceu atenção de alguns periódicos especializados. Logo após sua conclusão, em 1973, foi divulgada na revista Projeto e Construção (4). Alguns anos depois, em 1982, aparece novamente na Revista Construção São Paulo (5). Os textos de reportagens, sempre muito sucintos, não deixavam de destacar seus aspectos mais significativos:
“duas estruturas distintas, uma da outra, a primeira – uma espécie de “tampa” da residência – é composta de duas paredes ou cortinas cegas ao longo das divisas que suportam a laje de cobertura vasada longitudinalmente de modo a permitir a iluminação e ventilação interior. A outra constitui uma espécie de “mesa” apoiada em quatro pilares no centro dos bordos da laje suspensa. Acima e abaixo desta laje, mais os dois patamares das rampas, se desenvolve a programação desta moradia” (6)
Este mesmo comentário foi repetido no inventário da Arquitetura Moderna Paulistana, publicado no ano seguinte (7).
Mais adiante, uma coletânea de projetos e textos de Vilanova Artigas, organizada por Marcelo Ferraz, expõe registros fotográficos e desenhos inéditos da residência, mas sem um texto analítico mais detido (8).
Recentemente, Guilherme Wisnik volta ao tema em número especial da revista 2G (9) dedicado a Vilanova Artigas. Embora se trate de uma abordagem abrangente da obra do arquiteto, este autor se detém sobre a residência Telmo Porto, reafirmando aspectos relacionados às motivações que produziram sua forma característica.
“Os projetos de Vilanova Artigas deste período têm um caráter muito negativo. Isto é particularmente verdadeiro no caso das residências Telmo Porto (1968) e Martirani (1969), nas quais o acentuado isolamento se torna sombrio e revela que seu intento em urbanizar a vida doméstica atingiu um limite” (10).
Novamente, o edifício é pretexto para assinalar o clima político do período.
Assim, estas análises têm sido construídas a partir de extrapolações conjunturais, ficando sempre em segundo plano o exame das obras propriamente ditas. Com isso, a crítica permanece na superfície ideológica que alimenta as motivações de origem destas realizações, reiterando os argumentos de uma historiografia construída no calor das lutas de afirmação de determinadas correntes. Não sendo capazes de desmontar os liames que atam a produção arquitetônica do período, elas perdem a capacidade de estabelecer juízo adequado sobre seus méritos artísticos.
A documentação do projeto
Uma das formas de expandir as referências sobre esta obra é recorrer às fontes que lhe deram origem. A documentação do projeto, conservada na Biblioteca da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo – FAUUSP permite acompanhar a trajetória de sua elaboração.
Este projeto conheceu algumas variantes sem, contudo se afastar da concepção inicial. A julgar pelos primeiros desenhos a organização espacial nasceu, por assim dizer, pronta. Os croquis preliminares documentam a configuração característica, da qual as sucessivas etapas de projeto constituiriam apenas o seu desenvolvimento.
Neles já comparecem plenamente definidas a articulação entre os ambientes, a ideia de estrutura dupla, e o fechamento do volume para o exterior. O anteprojeto apenas estabelece com mais rigor o esquema inicialmente proposto, definindo de forma precisa os vários níveis de pavimentos, a modulação e o dimensionamento do conjunto dos ambientes residenciais. Tais desenhos trazem ainda, aspectos relevantes do projeto, como a independência entre a estrutura de sustentação do pavimento superior e a estrutura da cobertura.
Uma destas versões, em cópia heliográfica colorida, apresenta a distribuição do mobiliário e algumas sugestões de apropriação informal de ambientes, como o uso de redes nas varandas (11). A esta altura, embora a concepção do edifício o definisse no pavimento superior como caixa fechada nas quatro faces, mantinha, no entanto, amplas aberturas da laje de cobertura correspondentes a módulos de 3 metros de dimensão (Figura 5).
Na sequência, um desenho não datado, parece sugerir o propósito da utilização de um sistema de vigas “T” pré-fabricadas. Esta referência é importante, pois constitui uma alteração em relação ao anteprojeto que, inicialmente, trazia uma solução de vigas de cobertura distribuídas de acordo com o intervalo modular de 3 metros. A utilização de vigas pré-fabricadas implicaria na redução deste intervalo, trazendo consideráveis repercussões nas aberturas de iluminação (Figura 6).
O projeto executivo mantém e aprofunda as definições do anteprojeto. Destacam-se, porém, as alterações das aberturas dos ambientes do pavimento superior, substituídas por quatro pequenos domos por módulo. Há, além disso, a introdução de novos elementos de sustentação da estrutura do pavimento superior.
Os desenhos revelam um notável rigor geométrico tanto na concepção espacial como na elaboração do projeto. O volume é composto por uma modulação em forma de malha de 3 metros, correspondente a 7 módulos no sentido longitudinal e 6 módulos no sentido transversal. Esta malha organiza e disciplina a distribuição espacial.
O terreno é dividido em dois planos distintos que se estendem do alinhamento frontal à divisa dos fundos. O nível de acesso à residência se faz na cota zero, como prolongamento da rua, compreendendo uma faixa contínua de 6,00 m de largura. Este nível acolhe a área de estacionamento de veículos, o vestíbulo de acesso, as dependências de serviço e dormitório de empregados.
Do vestíbulo, um lance de rampa alcança o segundo terrapleno, meio pavimento acima, ao longo do qual se distribuem as áreas sociais, copa, cozinha e jardins. Este plano, da mesma forma que o outro, se desenvolve de forma contínua do alinhamento até o limite posterior do lote. É grande a fluidez dos ambientes acentuada pela continuidade do jardim para o interior da casa e pelo prolongamento para o exterior do piso das salas. Apenas uma parede transversal interrompe a integração espacial, delimitando as áreas de cozinha e copa.
Um novo lance de rampa prossegue meio nível para alcançar o estúdio, como um grande patamar sobreposto ao vestíbulo, cuja extensão forma a antecâmara do dormitório do casal. Finalmente, o último plano compreende os três dormitórios e instalações sanitárias.
De acordo com as primeiras versões do projeto, rampas e pavimentos elevados seriam sustentados por três pontos de apoio, como a demonstrar o axioma da geometria euclidiana. Sobre estes planos suspensos, porém sem tocá-los, se desenvolve, de uma divisa à outra, a cobertura.
Apesar do alto significado simbólico presente na hipótese inicial, a estrutura apoiada em três pontos deu lugar, quando da elaboração final, a um sistema mais complexo, no qual comparecem outros elementos de sustentação da laje correspondente ao dormitório do casal. Foram então introduzidas uma parede contínua e um novo apoio no ponto médio do bordo oposto da laje. Aquilo que o artista imagina nem sempre é o que alcança na realização da obra. A matéria não é inerte, não é totalmente plástica, oferecendo sempre alguma resistência.
As rampas articulam os planos sucessivos em que se desenvolve a casa, acentuando a continuidade dos percursos. Mas é possível deambular de outras maneiras, à volta dos volumes de sanitários e de serviços. A própria forma destes elementos induz ao movimento.
O projeto do edifício domina toda a área disponível do lote. Mesmo restando parcelas externas, para além do volume construído, verifica-se que tais áreas estão de algum modo envolvido e interligado como continuidade dos espaços internos, da mesma forma que os espaços do nível térreo buscam estender-se além dos limites das vedações.
A organização deste edifício está em perfeita coerência com os esforços do arquiteto no sentido de renovar a organização das edificações habitacionais.
“Na década de 50, eu achei que era necessário mudar a tipologia da casa paulistana. (...) Ela já não podia continuar imitando a casa tradicional. Nessa época, por exemplo, era comum as casas manterem a entrada de carro como uma reminiscência da antiga cocheira, com os quartos de criados e o tanque de lavar nos fundos da casa. Para mim, elas deveriam ser pensadas enquanto um objeto com quatro fachadas, mais ou menos iguais, ajustando-se à paisagem, como uma unidade. Assim, tanto a garagem quanto o quarto de empregados e lavanderia estavam incluídos na unidade” (12).
De fato, no projeto, as áreas de acesso, de estacionamento veículos e o do dormitório de empregados se incorporam ao corpo da casa, participando da unidade do conjunto. Aqui a hierarquização característica da distinção dos acessos não se realiza de forma segregada. Embora cada um guarde sua autonomia, todos os ambientes partilham o mesmo espaço de acesso.
Pormenores arquitetônicos
“Detalhe”, termo técnico corrente, constituía para Artigas um anglicismo que ele preferia evitar, substituindo-o pela palavra “pormenor”. Além do rigor de linguagem, quem tem oportunidade de observar seus desenhos técnicos verifica o mesmo grau de exigência na definição dos pormenores da obra. De um lado, a coesão do conjunto das soluções construtivas alcança uma síntese e uma unidade muito particulares, que não deixam escapar nenhum elemento, como o artista que domina todas as variáveis em jogo. Esta síntese é resolvida também em economia, no sentido de austeridade, isto é, da redução de cada pormenor à forma essencial, desprovida de qualquer componente acessório.
A economia de meios se manifesta de imediato na contenção do número de componentes que compõem o conjunto construtivo. O concreto armado impera como o material dominante da construção. A ele se acrescentam tão somente os elementos de vedação, os pavimentos, as instalações e os equipamentos.
Mas esta austeridade também é notável na expressão plástica, reduzida aos planos que definem a distribuição espacial e delimitam a construção. Há uma clara identidade entre configuração espacial e estrutura portante. Da mesma forma, o projeto impõe uma atenção rigorosa ao tratamento superficial do edifício, tanto em relação à textura do concreto à vista como em relação à paleta cromática das superfícies revestidas.
Embora predominem os planos do material in natura, cuja tonalidade e textura emprestam uma feição pesada e sombria ao interior do edifício, houve, em contrapartida, intensa preocupação com o acabamento das superfícies resultantes da desforma do concreto armado. Esta preocupação, aliás, está presente na etapa de projeto, conforme demonstram os desenhos executivos. A representação gráfica das duas elevações evidencia a atenção com o resultado pretendido.
Evidência disso é o cuidado com a execução da obra e a definição das cores de determinados elementos, em especial, dos pavimentos. Com exceção daquele da sala de estar, todos os pisos foram revestidos com resina de epóxi, permitindo intensa variação de cor nos distintos ambientes e, ao mesmo tempo, contraste com os planos de concreto à vista.
Formas semelhantes definem os volumes do conjunto dos sanitários e da lavanderia. São dependências relativamente autônomas em relação aos limites de compartimentação da casa, formadas por planos de desenvolvimento contínuo, cujo movimento das superfícies se organiza de modo a acomodar as distintas funções e equipamentos em seu interior. Volumes constituídos de paredes muito delgadas apresentam um notável contraste entre a superfície externa de concreto aparente e o tratamento cromático surpreendente, de feições pop, obtidos mediante o uso de cores agressivas, nas superfícies internas e nas louças. Alguns destes volumes projetam-se ligeiramente além dos limites do espaço interno, conferindo algum dinamismo à secura da elevação posterior. Da mesma forma, uma inusitada coluna de sustentação do reservatório de água perfura o volume da cozinha, prosseguindo autonomamente para além do limite da cobertura.
Assim, cada parte do edifício foi projetada associadamente às demais. A solução de cada pormenor estabelece relação com o conjunto, e se generaliza para todo o edifício. Mas, não se trata apenas de coerência técnica. Na residência Telmo Porto há o predomínio da regra e da medida, de uma maneira tal que parece aproximá-la das obras clássicas.
Considerações gerais
O uso frequente e repetido de empenas cegas comparece em boa parte dos trabalhos de Vilanova Artigas. Basta lembrar os exemplos das residências Olga Baeta (1956), Rubens Mendonça (1958) e Nieclewicz (1978). Assim, o elemento que dá origem a um dos argumentos de sua apregoada radicalidade, estaria presente em outras realizações, as duas primeiras, aliás, de período anterior ao golpe militar. Já a residência Nieclewicz, pouco posterior à Telmo Porto, embora ostente uma vasta empena cega no alinhamento frontal e seja em boa medida um edifício introspectivo, voltado para o interior do lote, é também uma residência francamente luminosa, muito distinta da atmosfera reclusa da segunda.
Outra referência comparativa frequente é a residência Martirani, que guardaria com ela intensa relação espacial e temporal. De fato, trata-se de um edifício formado por um volume suspenso inteiramente fechado para o exterior. Não há dúvida que em seus aspectos gerais estas duas obras se aproximam. Porém, como realização são muito distintas, senão mesmo antagônicas.
Uma das características mais impressionantes da residência Martirani é a forma de seu embasamento, realizado por meio de muros de pedra bruta, dispostos como se constituíssem ambientes escavados no solo. A estrutura suspensa não se afasta desta condição, apresentando um concreto à vista de textura rude, complementado por um cromatismo expressionista. Na residência Telmo Porto, é justamente o contrário o que ocorre. Em lugar da presença intensa do material bruto e da rusticidade do concreto, o que predomina é um tratamento formal de geometria precisa, de rigorosa definição de planos e superfícies, de textura refinada do concreto à vista e de juntas e cantos vivos perfeitamente executados.
Suas características a aproximam muito mais do edifício da FAUUSP, seja como volume fechado em suas quatro faces, seja por uma intensa fluidez de articulação de seus vários níveis, promovida pelo sistema de rampas que compõe o vazio central. Mas, em contraste com esta última, a atmosfera interior da residência Telmo Porto resultou um tanto sombria. Embora se valha de recurso análogo para a iluminação e ventilação de seus ambientes internos, a opção por aberturas de pequenas dimensões em lugar de todo o intervalo modular da primeira versão do projeto, acabou por resultar insuficiente.
Por outro lado, em contraste com as dimensões amplas do vão central, os ambientes sob as lajes do piso superior têm pé-direito excessivamente baixo, de apenas 2 metros. A altura reduzida e as grandes dimensões destes ambientes os tornam acachapados. Tais condições, aliadas à predominância de grandes superfícies de concreto à vista, de baixa capacidade de reflexão de luz, resultam em espaços internos consideravelmente opressivos.
O estado atual da obra
Certa ocasião, ao comentá-la, Artigas teria afirmado:
"Esta, a casa Telmo Porto, tenho de descrevê-la meio tragicamente, porque é uma das coisas mais simpáticas que construí. (...) Mas foi vendida para alguém que a transformou num restaurante chinês – de modo que se vocês quiserem ver a casa vão lá..." (13).
O edifício deixou de ser residência. Hoje pertence a uma distribuidora de filmes, tendo sofrido várias alterações, entre as quais a abertura de área de estacionamento no alinhamento frontal, a realização de uma edícula em lugar das dependências de serviço, a introdução de sistema de ar-condicionado, de corrimãos nas rampas, de caixilhos de alumínio substituindo as esquadrias de aço inicialmente desenhadas e, finalmente, a sobreposição de uma nova cobertura sobre a laje impermeabilizada.
Algumas destas mudanças revelam debilidades características de soluções construtivas que se mostraram impróprias às condições climáticas locais. É o que ocorre com a insistência nas coberturas planas de lajes impermeabilizadas. A introdução de sistema de ar condicionado, por sua vez, denuncia deficiências do sistema de aberturas zenitais, insuficientes e de difícil controle em relação à iluminação, à incidência solar e à ventilação, agravadas pelo escasso isolamento térmico, decorrente de seções muito delgadas da cobertura e das vedações da edificação.
A construção de uma edícula confronta-se com o argumento do arquiteto em relação à pretendida renovação da casa paulistana. Talvez a mais agressiva de todas as alterações – seria ela contemporânea à construção da casa? – a realização desse novo volume edificado compromete a concepção arquitetônica e o propósito do autor em integrar ao projeto todo espaço disponível no interior do lote.
Por fim, a introdução de corrimãos, a substituição de partes das instalações hidráulicas e elétricas revelam as dificuldades impostas por um projeto muito bem realizado, mas pouco flexível às acomodações surgidas das demandas de seus usuários ou das necessidades de manutenção do edifício ao longo do tempo.
A preservação de uma obra brutalista (14)
A casa Telmo Porto encontra-se em processo de tombamento pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural e Ambiental de São Paulo – Conpresp. Um edifício como este certamente não deixará de ser reconhecido como bem cultural.
Obras dessa dimensão conservam grande fidelidade com o traço que lhes deu origem. O fascínio do risco inicial persistiu, ainda que não realizado integralmente. Mas o que constituiria a substância do impulso que deu origem a uma forma tão impositiva e que se manteve em sua configuração peculiar até a realização final? Como entender este ímpeto que desafiou as dificuldades materiais de realização persistindo fiel ao ponto de partida? Qual o sentido em afirmar tão radicalmente uma ideia, afrontando as normas, relegando a segundo plano condições de conforto – material e espiritual – e mesmo de salubridade?
Um depoimento de Telmo Giolito Porto, filho do proprietário, revela aspectos surpreendentes da recepção daqueles a quem a casa se destinava.
“Para mim, a casa era um reflexo de meu pai: voltada para a família, um muro de concreto externo que se abria para luz no interior. (...) Ainda mais: meu pai acreditava na Excelência (que ele via em Artigas) e era figadalmente racional e cartesiano, como a casa. Admirava o legítimo, o autêntico, "a forma definida pelo uso, pela necessidade" e desprezava o falso, o fake. Em paralelo, detestava o desnecessário e a ostentação, mas admirava as artes plásticas, sem ser colecionador.”
“Minha experiência de vida na casa não difere da experiência em qualquer outra moradia, exceto pela beleza interna da casa. A questão térmica nunca foi percebida por mim e nem citada por outro membro da família. A questão da privacidade (altura das paredes dos banheiros etc) também nunca me incomodou, nem ouvi reclamações de membros da família. Os quartos eram relativamente grandes, o que talvez tenha neutralizado esta questão.”
“Se posso me lembrar de algum senão, seria a impressão algo claustrofóbica que, as vezes, eu sentia, deitado na cama, tendo as grandes vigas de concreto do teto sobre mim. O pé direito dos quartos era relativamente baixo, o que talvez [contribua] para a sensação relatada.”
De fato, há qualidades inegáveis nesta obra. Mas há também, em contrapartida, situações que desafiam a própria condição de habitabilidade do edifício. Embora alguns ambientes se definam por meio de formas amplas, favorecendo a continuidade espacial, outros foram realizados de maneira rígida e impositiva. A reclusão imposta pelo fechamento total do pavimento superior é desconcertante e suas consequências são severas e comprometedoras.
Artigas gostava de aludir a Martin Heidegger. O filósofo afirmava que: “Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir” (15). Qualquer digressão sobre as origens da habitação inevitavelmente remete ao sentido profundo do habitar como condição da própria existência. E, nessa circunstância, as noções de abrigo, de defesa, de segurança, de recolhimento, de conforto, e tantas outras, compõem o repertório de associações imediatamente relacionadas a esse sentido.
Na tradição latina não são raras as habitações introspectivas. As casas de origem romana talvez constituam a expressão que melhor as representa. Voltadas para o interior, estas residências se organizam em torno do átrio e de pátios ajardinados, ladeados por pórticos para os quais se abriam vários cômodos. Porém, estes ambientes reclusos, são repletos de amenidades, proporcionando a expansão dos ambientes e suas atividades ao ar livre. Sendo totalmente fechadas para o exterior, sua forma evidencia uma dualidade irreconciliável de opostos que, todavia, não compromete a habitabilidade, bem ao contrário.
A despeito de sua condição problemática, a residência Telmo Porto constitui uma herança de alto valor do período recente de produção da arquitetura moderna. Mas, assim como não podemos deixá-la à margem – seja em relação à crítica da arquitetura, seja em relação à sua preservação – não podemos tampouco conservá-la como objeto estranho em um museu de curiosidades. Muito menos como forma intocável objeto culto.
Em outras palavras, o propósito de reconhecimento desta obra como bem cultural pressupõe tanto a necessidade assegurar a permanência de seus valores essenciais, como de considerar possíveis adaptações a novas circunstâncias de sua apropriação.
notas
NE – Sob coordenação editorial de Ruth Verde Zein (FAU Mackenzie, Conselho Editorial Arquitextos) e Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz nove artigos apresentados no X Seminário Docomomo Brasil (Curitiba, 15 a 18 de outubro de 2013), que teve como tema “Arquitetura moderna e internacional: conexões brutalistas 1955-75”. Os artigos do número especial sobre o brutalismo são os seguintes:
ZEIN, Ruth Verde. Modernidade madura, alternativa, brutalista, plural. O patrimônio e legado dos anos 1955-75. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.00, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5120>.
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. O recuo brutalista. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.01, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5041>.
CARRILHO, Marcos José. Residência Telmo Porto. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.02, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5136>.
ÁLVAREZ, Eva; GÓMEZ ALFONSO, Carlos. Apuntes para una adecuada apreciación, necesaria protección y razonada revitalización. El conjunto Universidad Laboral de Cheste (1967-1969) de Fernando Moreno Barberá. Arquitextos, São Paulo, año 14, n. 166.03, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5138>.
CABRAL, Cláudia Piantá Costa. Conexões figurativas. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.04, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5137>.
MARQUES, Sonia. A ética habitante e o espírito do brutalismo. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.05, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5142>.
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Preservação da arquitetura brutalista. Os brutos também querem ser amados. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 166.06, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5147>.
BURRIEL BIELZA, Luis. La estructura y su dimensión poética en Saint-Pierre de Firminy. Arquitextos, São Paulo, año 14, n. 166.07, Vitruvius, abr. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5148>.
LEJEUNE, Jean-François. Preserving the Miami Marine Stadium (1962-64). Tropical brutalism, society of leisure, and ethnic identity. Arquitextos, São Paulo, year 14, n. 166.08, Vitruvius, may 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.166/5151>.
1
Rua Dr. Costa Junior, 230
2
KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas. São Paulo, Cosac Naify, 2000, p. 43.
3
ARTIGAS, João Batista Vilanova. As ideias do velho mestre, entrevista a Paulo Markun.In ARTIGAS, João Batista Vilanova. Caminhos da arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 168.
4
Casa em quatro níveis. Projeto e Construção, n. 37,São Paulo,ano 3, dez. 1973, p. 24-25.
5
Residência Telmo Porto (1968). Construção São Paulo, n. 1789,São Paulo,maio 1982, p. 29.
6
Idem, ibidem, p. 29.
7
XAVIER, Alberto; LEMOS,Carlos; CORONA, Eduardo. Arquitetura moderna paulistana. São Paulo, Pini, 1983.
8
FERRAZ, Marcelo, et. all. (org.). Vilanova Artigas: arquitetos brasileiros. São Paulo, Instituto Bardi, 1997.
9
FRAMPTON, Kenneth; ARTIGAS, João Batista Vilanova; WISNIK, Guilherme. 2G,n. 54 “Vilanova Artigas”,Barcelona,Gustavo Gili, 2000.
10
Idem, ibidem. Texto original em inglês e espanhol, livre tradução do autor.
11
FERRAZ, Marcelo, et. all. (org.).Op. cit.
12
ARTIGAS, J. B. V., Vilanova Artigas, Arquitecto: 11 textos e uma entrevista, Almada, Centro de Arte Contemporânea, 2000, p. 76
13
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Vilanova Artigas, Arquitecto: 11 textos e uma entrevista. Almada, Casa da Cerca, 2000, p.96.
14
Sobre o brutalismo em São Paulo, ver: ZEIN, Ruth Verde. A arquitetura da escola paulista brutalista – 1953-1973. Tese de doutorado. Orientador Carlos Eduardo Dias Comas. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2005.
15
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. conferência pronunciada por ocasião da "Segunda Reunião de Darmastad", publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954, trad. Marcia Sá Cavalcanti Schuback <www.prourb.fau.ufrj.br/jkos/p2/heidegger_construir,%20habitar,%20pensar.pdf>.
Marcos José Carrilho é arquiteto (Universidade Federal do Paraná, 1978), doutor em História da Arquitetura pela FAUUSP, Visiting Scholar na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Columbia University (Nova York, 1995), professor das disciplinas de Projeto I e Técnicas Retrospectivas da FAU-Mackenzie e arquiteto do IPHAN - 9ºSR - São Paulo.