Uma relação harmônica entre preservação do patrimônio cultural e desenvolvimento urbano e socioeconômico é um desafio há muito presente na gestão de sítios históricos. Preservar considerando a composição constante dos significados, identidades e tradições; considerando o patrimônio como recurso ao desenvolvimento; e, simultaneamente, construindo o patrimônio em seu sentido social, de cidadania e promovendo a qualidade de vida para um futuro em que se almeja a equidade, o direito à memória e à diversidade cultural, dentro de uma estratégia interdisciplinar e interinstitucional, colocam-se como os principais desafios daquilo que se designa por “sustentabilidade” no âmbito das políticas de patrimônio.
Dentre as noções mais recentes de patrimônio, a abordagem que se aproxima destas preocupações foi sistematizada sob a expressão “paisagem cultural”. Tal como preconiza a Recomendação R(95)9 do Conselho de Ministros da Europa de 1995 (1), o novo conceito pretende congregar os vários aspectos e categorias correntes no campo do patrimônio, considerando a necessidade de superação da fragmentação ainda praticada. Partindo-se de uma concepção mais alargada e integradora entre a ação do homem e a natureza e entre os patrimônios material e imaterial, adotar a paisagem como patrimônio pressupõe, ao passo que admite, as relações intrínsecas e inseparáveis entre as abordagens da história, da arte, da antropologia, da sociologia, da ecologia, da memória e da cultura, e suas correspondências no meio físico, seja na edificação ou no território, urbano, rural ou natural. Pressupõe, portanto, a ação integrada do planejamento e gestão territoriais com as políticas ambientais, sociais, culturais e econômicas. Estes desafios tornam bastante complexa a gestão do patrimônio, requerendo a revisão, adaptação e a reformulação das políticas de preservação vigentes, de seus instrumentos e, sobretudo, de suas articulações com o planejamento territorial.
O documento recomenda a adoção destes pressupostos às políticas paisagísticas e de patrimônio e, recentemente, foi adotado pelo IPHAN por meio da Carta de Bagé (2007) e do instrumento da Chancela da Paisagem Cultural (2009). A primeira instituição a praticar esta abordagem foi o Comitê do Patrimônio Mundial que em 1992 criou a categoria “paisagem cultural”, dividindo-a em quatro subcategorias.
Em que pese esta recente ampliação do conceito de patrimônio, certamente uma conquista a ser celebrada, a ideia do monumento ancorado nos valores excepcionais artísticos, históricos e de ancianidade, ainda constitui a toada dominante no campo da preservação.
O presente artigo pauta esta questão a partir da discussão da integração desejável e necessária entre o planejamento territorial e as políticas setoriais, onde o patrimônio cultural seja efetivamente tomado como elemento estruturante e agregador ao desenvolvimento sustentável da cidade. Analisa, ora, no bojo das discussões para a revisão do Plano Diretor de São Paulo, a articulação entre instrumentos urbanísticos tradicionais com o tombamento, verificando a efetividade do Plano Diretor e Planos Regionais (2004) e, em especial, das ZEPECs – Zona Especial de Preservação Cultural, no enfrentamento destes desafios.
Constituem balizas desta investigação a noção de sustentabilidade e o próprio conceito de patrimônio, bem como a forma como estes princípios e novas abordagens vêm sendo, ou não, articuladas às demais políticas públicas, valendo-se das normas urbanísticas como estratégia de integração e implementação.
O patrimônio e a política urbana a partir do Plano Diretor de São Paulo
A lei 13.430/02 que institui o Plano Diretor Estratégico e o Sistema de Planejamento e Gestão do Desenvolvimento Urbano de São Paulo (2) define, em seu artigo 7º, doze princípios norteadores do planejamento e do desenvolvimento da cidade. Surpreendentemente, não consta entre eles nada a respeito da preservação do patrimônio cultural como princípio estratégico da conservação e valorização das identidades locais, da memória, das tradições, do conhecimento, da história ou da cultura em seu sentido mais amplo.
Por outro lado, as preocupações voltam-se à “preservação e recuperação do ambiente natural” (Lei 13.430, art.7 inciso IX), eleita como princípio e enfatizada em todo plano, inclusive com a instituição de políticas e instrumentos específicos. Logo após, o artigo 8º define os objetivos gerais. Dentre eles consta “elevar a qualidade do ambiente urbano, por meio da preservação dos recursos naturais e da proteção do patrimônio histórico, artístico, cultural, urbanístico, arqueológico e paisagístico” (inciso IV). É importante ressaltar que a proteção do patrimônio não é compreendida como um objetivo, mas como meio para “elevar a qualidade do ambiente urbano”, que pode ser circunstanciada tanto em seus aspectos estéticos quanto funcionais, o que se ratifica adiante (art. 10º, inciso IX), compondo uma das diretrizes gerais para a política urbana da cidade.
A “ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da Cidade e o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado” é estabelecida como o objetivo principal da política urbana que será atingido, dentre outras diretrizes, mediante: “a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente e da paisagem urbana” (art. 9º, inciso VI) e a criação de “pontos de atratividade, com a implantação de equipamentos de turismo, eventos e negócios” (art. 9º, inciso IV). Embora a primeira diretriz apresente como função social a preservação ambiental e da paisagem urbana de modo a favorecer a preservação do patrimônio, seu objetivo principal volta-se à recuperação ambiental dos espaços públicos e à qualificação visual da paisagem urbana. Esta visão resultará na ação estratégica de “assegurar o adequado controle da interferência visual nas áreas envoltórias de imóveis preservados” (art.90, incisos III), reproduzindo uma prática comum e discutível dos órgãos de preservação (IPHAN, CONDEPHAAT e COMPRESP (3)). A segunda diretriz aponta o direcionamento do turismo ao segmento de eventos e negócios (artigos 17, 18 e 19), certamente uma das atividades econômicas mais importantes de São Paulo, mas que, por outro lado, revela a desvinculação das ações de preservação do patrimônio enquanto recurso ao desenvolvimento da cidade.
Nas definições a respeito da função social da propriedade urbana, “elemento constitutivo do direito de propriedade” (art. 12), o plano estabelece aspectos gerais para seu cumprimento: quando atende às “necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social, o acesso universal aos direitos sociais e ao desenvolvimento econômico”; quando seu uso é compatível com a infraestrutura e “com a preservação da qualidade do ambiente urbano e natural (art. 11). Exige, mais precisamente, a subordinação do direito de propriedade às exigências de ordenação do plano diretor e do artigo 151 da Lei Orgânica, compreendendo, dentre outros: “a melhoria da paisagem urbana, a preservação dos sítios históricos, dos recursos naturais e, em especial, dos mananciais de abastecimento de água”. Todavia, o uso do termo “sítio histórico” sugere descartar os inúmeros bens patrimoniais reconhecidos isoladamente da função social da propriedade. Este, por outro lado, parece mais um esquecimento e não terá relevância no disciplinamento jurídico, visto que o tombamento foi o primeiro instrumento brasileiro a fazer o interesse público sobrepor-se ao privado, desde 1937, quando da criação do Decreto-Lei 25 pelo IPHAN.
O Plano Diretor organiza o processo de urbanização em torno de quatro elementos estruturadores e cinco integradores. Elementos estruturadores “são os eixos que constituem o arcabouço permanente da Cidade”, permitindo “maior aderência do tecido urbano ao sítio natural, melhor coesão e fluidez entre suas partes, bem como maior equilíbrio entre as áreas construídas e os espaços abertos” (art.101, parágrafo 1º). Elementos integradores “constituem o tecido urbano que permeia os eixos estruturadores e abriga as atividades dos cidadãos que deles se utilizam” (parágrafo 2º). Constituem elementos estruturadores: a Rede Hídrica Estrutural; a Rede Viária Estrutural; a Rede Estrutural de Transporte Público Coletivo e a Rede Estrutural de Eixos e Pólos de Centralidades. Já os elementos integradores são: habitações; equipamentos sociais; áreas verdes; espaços públicos e espaços de comércio, serviço e indústria. Os equipamentos sociais, “compreendem instalações destinadas à prestação de serviços públicos e privados, voltados ao atendimento das necessidades básicas da população em saúde, educação, cultura, esportes, lazer e recreação, abastecimento e segurança” (art. 129). Assim, o patrimônio cultural material que não se constitui como “arcabouço permanente da cidade”, também não consta entre os elementos integradores, visto que a política se estrutura com ênfase na manutenção, ampliação e construção de novos equipamentos sociais, enfocando os usos culturais e não a preservação propriamente (parágrafos 2º e 3º do artigo 129).
No tocante ao processo de participação na construção dos planos, exigência do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01), verifica-se que este não aconteceu satisfatoriamente. Dentre os inúmeros empecilhos podem ser ressaltados três fatores: o primeiro está na própria falta de tradição de participação social na gestão pública paulistana; o segundo na dificuldade de operação numa cidade com a dimensão populacional de São Paulo reforçada, à época, pela ausência de uma estrutura administrativa descentralizada; e o terceiro na prioridade política de aprovação do plano antes do ano eleitoral. Essa conjunção de fatores certamente fragiliza aspectos importantes do plano. Todavia, no campo das políticas de preservação não representa algo incomum, visto que não há uma tradição de discussão popular, estando esta circunscrita à participação representativa de alguns poucos portadores do chamado “notório saber”.
Finalmente, o plano diretor estabelece os objetivos específicos e diretrizes da política de patrimônio histórico e cultural na seção que trata das políticas setoriais. Todavia, os objetivos ainda são gerais: “documentar, selecionar, proteger e promover a preservação, a conservação, a reciclagem, a revitalização e a divulgação dos bens tangíveis, naturais ou construídos, assim como dos bens intangíveis, considerados patrimônios ou referências históricas ou culturais no âmbito do Município” (art. 88). Dentre as diretrizes e ações estratégicas destacam-se: a elaboração de normas e a utilização da legislação municipal ou de tombamento para a preservação de bens culturais, vegetação significativa e referências urbanas; “a revitalização de áreas degradadas, em especial a área central e a área da estrada de ferro Perus-Pirapora”; e “a preservação e a identidade dos bairros, valorizando as características de sua história, sociedade e cultura”.
De fato, constata-se que o Plano Diretor Estratégico de São Paulo não concebe de forma sustentável a preservação do patrimônio, em seu sentido mais amplo, como elemento chave da cultura e da memória, nem como política articulada às demais políticas setoriais, tampouco como elemento e recurso capaz de orientar o planejamento e o desenvolvimento socioeconômico e urbano da cidade. Inevitavelmente, essas questões refletir-se-ão nos equívocos praticados na instituição das ZEPECs – Zonas Especiais de Preservação Cultural.
A instituição das ZEPECs no Plano Diretor e Planos Regionais Estratégicos
As Zonas Especiais, conforme o artigo 167 do plano diretor, são “porções do território com diferentes características ou com destinação específica e normas próprias de uso e ocupação do solo, edilícia, situadas em qualquer macrozona do Município”. Dentre elas foram criadas as ZEPECs que “são porções do território destinadas à preservação, recuperação e manutenção do patrimônio histórico, artístico e arqueológico, podendo se configurar como sítios, edifícios ou conjuntos urbanos” (art.168). Enquadram-se automaticamente como ZEPECs todos “os imóveis ou áreas tombadas ou preservadas por legislação Municipal, Estadual ou Federal, bem como os imóveis classificados como Z8-200” (4), excluindo-se apenas os bairros tombados (art. 168), como o City Lapa, Pacaembu e Perdizes (5), engano corrigido já nos Planos Regionais em 2004.
Embora o Plano Diretor crie as ZEPECs e estabeleça definições gerais e equivocadamente “automáticas”, sua demarcação será estabelecida apenas pelos Planos Regionais (6), classificando-as em três categorias (art. 116): os Bens Imóveis Representativos (BIR), que são “imóveis ou conjuntos de imóveis de caráter histórico ou de excepcional valor artístico, cultural ou paisagístico, inclusive os que tenham valor referencial para a comunidade”; as Áreas de Urbanização Especial (AUE), que são “Conjuntos urbanos com características homogêneas de traçado viário, vegetação e índices urbanísticos, que constituem formas de urbanização de determinada época, que devem ser preservados por suas qualidades ambientais”; e as Áreas de Proteção Paisagística (APP), que são “sítios e logradouros com características ambientais, naturais ou antrópicas, tais como: parques, jardins, praças, monumentos, viadutos, pontes, passarelas e formações naturais significativas, entre outras”.
Verifica-se, pois, que o primeiro grande equívoco está na própria concepção das ZEPECs, enquadrando também edifícios isolados, praças, passarelas e afins como “zona”, uma contradição semântica na disciplina urbanística, reproduzindo a lógica da Z8-200 e do tombamento de bens isoladamente. Exatamente o instrumento que deveria inserir o elemento patrimonial no contexto urbano e de leitura do conjunto da paisagem. Ademais, exprime-se a baixa compreensão do funcionamento urbanístico das zonas especiais, visto que seriam o instrumento ideal para sobrepor-se ao zoneamento criando exceções, com o objetivo de garantir normas urbanísticas e edilícias específicas de preservação, utilização, superando as inadequações da aplicação do tombamento às áreas urbanas patrimonais (7).
Por outro lado, esta concepção reflete vícios ainda fortemente enraizados na prática da outorga de valor patrimonial. Embasadas na ideia de monumento e numa visão fragmentada do patrimônio urbano, da urbanização e da cidade, este modelo de ZEPEC reforça ainda mais a relação dicotômica do edifício com seu entorno. Esta relação impõe uma hierarquia que está na maioria das vezes desvinculada da proposta urbanístico-arquitetônica de sua implantação original ou do momento do tombamento, reificando até edifícios modestos do conjunto urbano. Reproduz, desta maneira, uma visão barroca de construção da paisagem urbana, onde a “obra de arte”, destacada a partir da ideia de “valor excepcional”, é emoldurada como objeto monumental a ser valorizado. Dentro de uma construção estética e pictórica perspectiva da paisagem, alinhada à concepção ocidental de paisagem, este tipo de construção constitui ainda a retórica dominante no campo da preservação (8), resultando na demarcação das tais áreas envoltórias.
Apenas para circunscrever a discussão à questão morfológica e visual (9), vale lembrar que diversos autores versaram sobre questões relativas à construção da paisagem, do desenho urbano e da imagem da cidade, como os clássicos: Camilo Sitte, Gordon Cullen e Kevin Lynch.
Sitte, desde o século XIX, critica a construção dos eixos visuais barrocos e sua monumentalidade, ressaltando o valor daquilo que chama de pitoresco, da arquitetura menor ou vernacular, da simplicidade e das escalas menores, mais próximas à apreensão humana e ao cotidiano (10).
Cullen propõe uma nova forma de percepção da paisagem urbana por meio daquilo que denomina “visão serial” (11), trabalhando a percepção na construção de um percurso, onde a expectativa, o mistério, os “acidentes”, as “silhuetas”, os “estreitamentos”, as “saliências e reentrâncias” ou as “pontuações” (12) compõem parte importante da apreensão da paisagem urbana, contrapondo-se à construção previsível e monótona da perspectiva grandiosa que enquadra e valoriza como ponto focal um único monumento, em geral ressaltando os lugares do poder político, religioso e econômico das cidades.
Lynch desenvolve uma metodologia onde a percepção da cidade se dá por meio de elementos urbanos (vias, limites, bairros, pontos nodais e marcos) que se articulam e interagem inseparavelmente na construção e leitura da imagem da cidade funcionando, portanto, em conjunto (13).
Se observarmos estas questões aplicadas à realidade do Centro de São Paulo, teremos a dimensão dos problemas. Mais de 1500 edifícios no Centro Velho, Anhangabaú, Luz e Bela Vista (Resolução 22/02) são protegidos legalmente pelo CONPRESP. A maioria possui tombamento parcial, de nível 3 e 4, com proteção das fachadas, elementos arquitetônicos externos, gabarito, volumetria e recuos.
Desta maneira, ao isolar indiscriminadamente edificações, logradouros e obras de arte do contexto urbano e de seu significado social e ao buscar a ilusão da homogeneidade através do controle de gabaritos, reforça-se ainda mais o conflito com a própria dinâmica cultural da cidade, muitas vezes impedindo, sem propósito, o contraste ou a combinação entre a modernidade e a tradição, tão presente na cultura brasileira, sobretudo no centro paulistano (desde sua gênese), gerando inevitavelmente entraves socioeconômicos para sua utilização e apropriação.
Aponta ainda a dificuldade de compreensão da heterogeneidade no tecido urbano, resultante do processo voraz, desordenado e especulativo de urbanização característico da metrópole paulistana. Dentro de uma leitura de paisagem cultural, considerando os períodos da urbanização, seus significados, onde as sobreposições retratam a história urbana da cidade, ademais, com expressivo número de tombamentos, porque não considerar todo o Centro Velho e Anhangabaú como ZEPEC?
Como ressalta SANT’ANNA (14), este tipo de prática traduz-se na consagração definitiva do equívoco da transposição das práticas de conservação de monumentos às áreas urbanas patrimoniais, cujo embasamento teórico ancora-se na própria Carta de Veneza (1964), ou na aplicação equivocada de suas recomendações ao caso paulistano em debate:
Art.6º. A conservação de um monumento implica a preservação de uma ambiência em sua escala. Enquanto sua ambiência subsistir, será conservada, e toda nova construção, toda destruição e toda modificação que possam alterar as relações de volumes e de cores serão proibidas. (15)
Outrossim, ao tentar compreender a estratégia urbanística dos planos, percebe-se a desarticulação das ZEPECs às demais políticas urbanas, com diversas sobreposições: com as Áreas de Intervenção Urbana (AIUs), Projetos de Intervenção Estratégico (PEIUs), Operações Urbanas Consorciadas (OUC), Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e até de ZEPEC-BIR com ZEPEC-APP.
Segundo o Plano Diretor, as AIUs são “porções do território de especial interesse para o desenvolvimento urbano, objeto de projetos urbanísticos específicos, nas quais poderão ser aplicados instrumentos de intervenção, previstos no Estatuto da Cidade, para fins de regularização fundiária, execução de programas e projetos habitacionais de interesse social, constituição de reserva fundiária, ordenamento e direcionamento da expansão urbana, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental” (art. 146, inciso VI). Definição muito similar tem os PEIUs.
Novamente, verifica-se que a preservação do patrimônio não integra as finalidades das AIUs e PEIUs. Certamente porque intervenção urbana e preservação ainda estejam caminhando em direções opostas. E isso ainda pode ser confirmado nas contradições entre as legislações de tombamento e as urbanísticas. Enquanto a primeira estabelece limites de gabarito para quase toda área central, a OUC permite a utilização de C.A. máximo igual a doze ou superior (16).
Outra contradição está na demarcação do PEIU 01 – Monumenta Luz-PRIH, cujo perímetro não corresponde a uma ZEPEC, mas as contém juntamente com uma ZEIS 3. Sabendo que o Monumenta é um programa do IPHAN com o propósito de conjugar a política de preservação do patrimônio com desenvolvimento socioeconômico, pode-se perceber que a ausência de projeto e gestão integrados resumiu os resultados do Monumenta-Luz em restauro de alguns edifícios e mobiliários.
Embora as zonas especiais devam estabelecer “normas próprias de uso e ocupação”, estas não foram criadas, remetendo, ora às diretrizes de tombamento (quando existem), ora ao zoneamento que proibe usos nR-3 em ZEPECs (art.158, Lei 13.885/04), impedindo: universidades, correio, hotel, central telefônica, fórum, juizado de menores, tribunais, delegacia de polícia, serviços socioculturais, de lazer, educação com mais de 2500 m2 e locais de reunião, eventos ou atividade temporária com 500 vagas ou mais de estacionamento. Além de criar mais uma burocracia no trâmite de aprovação e tornar o instrumento inócuo em sua regulação urbanística, as ZEPECs ainda atrapalham a utilização do patrimônio, visto que há projetos de universidades em galpões industriais tombados na Mooca, por exemplo, já aprovados pelo DPH, impedidos de se concretizar devido a estes desencontros legais.
Quanto aos demais instrumentos do Estatuto da Cidade, o Art. 211 do Plano Diretor proíbe a outorga onerosa em ZEPEC, impedindo muitas vezes a restauração e utilização do imóvel tombado, a exemplo da Casa das Rosas na Av.Paulista, refletindo, outra vez, a noção de monumento, visibilidade e entorno, já mencionada (17).
Amplia a possibilidade de uso de outros instrumentos, como a isenção de IPTU para os imóveis tombados em bom estado de conservação. Estabelece punições para os imóveis em degradação, vazios ou subutilizados, com a incidência de utilização compulsória e IPTU progressivo, embora ainda não regulamentados. Aplica para as ZEPECs os benefícios concedidos pelo Programa de Incentivos Seletivos na área central (Lei 13.496/03). Cria a isenção de IPTU para pessoas físicas ou jurídicas que patrocinarem obras de recuperação ou restauro de imóvel enquadrado como ZEPEC/BIR (art.121), entretanto, contraditoriamente, esta norma não se aplica aos distritos da Sé e República (art.123) que concentram número expressivo do patrimônio cultural de São Paulo em alto estágio de degradação.
Aplica-se também a “Transferência de Potencial Construtivo” às edificações particulares localizadas em ZEPEC-BIR. Embora previsto desde 1984 (Lei 9.725/84), houve muitas solicitações, ainda inconclusas. Contudo, é preciso destacar a ambiguidade duvidosa deste instrumento quanto à preservação. No caso de São Paulo, o instrumento não vincula o recurso ao investimento no imóvel, servindo apenas à compensação econômica pela restrição de aproveitamento urbanístico. E, mesmo que o fizesse, este investimento seria apenas para a conservação imediata. À médio prazo esta fonte se esgotará, ao passo que as edificações continuarão a necessitar de investimentos, evidenciando a aplicabilidade meramente pragmática do instrumento.
Considerações Finais
No âmbito do exposto, verifica-se que as ZEPECs, embasadas ainda numa concepção de monumento, na noção ocidental de paisagem, na visão fragmentada do patrimônio urbano, da cidade e das políticas públicas, revelam contradições e descompassos entre os objetivos e diretrizes de preservação e desenvolvimento, reproduzindo ainda dicotomias clássicas entre os patrimônios cultural e natural, material e imaterial e mesmo entre a arquitetura e o urbano.
Em que pese o tombamento ter relevância indiscutível quanto à outorga de valor e ao cerceamento da propriedade em prol do interesse público, construir uma política de preservação embasada apenas em um instrumento, tendo ainda as zonas especiais reduzidas a reproduzi-lo, gerando mais sobreposição e burocracia e inócuas do ponto de vista urbanístico é trilhar um caminho insustentável para a gestão do patrimônio cultural e, consequentemente, para a gestão urbana.
A reprodução dessas práticas confirma a inexistência de uma política de conjunto, articulando as políticas setoriais ao planejamento urbano. Se estes hiatos constituem, por um lado, entraves que resultaram na falta de utilização de grande parte do patrimônio edificado, tanto economicamente quanto para as políticas sociais, visto que também não há articulação com a política habitacional, por outro, certamente, são basilares ao fracasso da Operação Urbana Centro.
De fato, nenhuma proposta que pretenda a reabilitação da área central de São Paulo poderá dispor do enfrentamento da reabilitação do patrimônio cultural, compreendida para além da normativa e recuperação do casco edificado, mas em seu sentido mais profundo, articulando sua significância imaterial, sua recuperação econômica e sua reinserção urbana, ambiental e social ao projeto de cidade e de cidadania que se pretende. Impreterivelmente ligado a uma concepção integrada e sustentável de planejamento territorial, tal como preconiza o conceito de paisagem cultural, onde a preservação e o desenvolvimento deverão estabelecer parceria e não concorrência.
Sobre o futuro... que ele se ancore na análise crítica do presente visando o melhor possível... ou, nas palavras de Henrique Leff: “o futuro sustentável não é uma predestinação nem uma reconciliação dos fragmentos do mundo artificialmente dissociado, a dissolução do dualismo cartesiano em uma unidade holística complexa (...) É o olhar lançado para a outridade e o infinito, para o possível que abre caminho pelo impossível.” (18)
notas
1
IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). Cartas patrimoniais. 3. Ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.
2
SÃO PAULO (SP). Prefeitura. Lei 13.430/02 - Plano Diretor Estratégico de São Paulo. São Paulo, 2002.
3
O Decreto Estadual 13.426/79 (CONDEPHAAT) estabelecia área envoltória arbitrária de 300 metros em torno de edificações tombadas. Embora revogada em 2003, mantem-se a prática de delimitação de envoltórias caso a caso. O art. 10º da Lei 10.236/86 do COMPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) estabelece obrigatoriedade de perímetros envoltórios ao tombamento.
4
Nos anos 1970, a COGEP, encarregada do planejamento urbano de São Paulo, realizou um amplo inventário de arquitetura no centro, resultando na criação de zonas de uso especial para a proteção urbanística de bens de interesse histórico ou ambiental, denominadas Z8-200 (Lei 8.328/75), que são na maioria imóveis isolados.
5
Há cerca de 20 bairros tombados pelo CONPRESP, como: Jardins América, Europa, Paulista e Paulistano; Áreas residenciais adjacentes ao Ibirapuera; Sumaré; Bela Vista; Pinheiros; Interlagos.
6
SÃO PAULO (SP). Prefeitura. Lei 13.885/04 - Plano Regional Estratégico de São Paulo. São Paulo, 2004.
7
Sant’anna, Márcia. Da cidade monumento à cidade documento: a trajetória da norma de preservação das áreas urbanas no Brasil, 1937-1990 (Dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1995.
8
Cauquelin, Anne. Paisagem, retórica e patrimônio. Revista de Urbanismo e Arquitetura (UFBA), Salvador, Volume 6, p. 24-27, 2003.
9
Sem entrar na discussão sobre apropriação e cotidiano, fundamentais, tal como colocam Jane Jacobs e Ulpiano Meneses, a qual não caberia desenvolver no curto espaço deste artigo.
10
SITTE, C. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Atica, 1992.
11
CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
12
Acidentes são as diferenças de gabarito das edificações de uma rua. Pontuações são objetos interessantes que marcam o percurso, mobiliários, monumentos ou mesmo edificações (CULLEN, 1986).
13
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
14
Idem nota 7.
15
IPHAN, 2004. p. 93.(nota 1).
16
C.A. é a relação entre a área edificada e a área do lote. A Lei 12.349/97 – OUC estabelece C.A. doze para hotéis e superior para bens tombados. Define regras de proporção para aplicação de transferência de potencial: C.A. entre 12 e 15, permite-se transferência de 40%, e acima de 15, transferência de 20%.
17
Atualmente, o DPH aprovou também projetos que necessitavam de outorga onerosa, impedida pela legislação urbanística.
18
LEFF, Enrique. Discursos Sustentáveis. São Paulo: Cortez, 2010, p. 292.
sobre a autora
Vanessa Gayego Bello Figueiredo é doutora em planejamento urbano e regional na FAU USP, docente na FAU PUC-Campinas e na FEA CEUNSP. Membro do Comitê Brasileiro do TICCIH – The Internacional Commiteé for the Conservation of the Industrial Heritage. Foi gestora de políticas públicas urbanas em Santo André (2001-2008) e Subprefeita de Paranapiacaba e Pq. Andreense..