Introdução: três gestos poéticos na história da cidade
Originalmente chamado Vila Rica, tal como formalmente constituído pela Carta Régia de 8 de julho de 1711, o lugar foi denominado de Ouro Preto em 1823, quando da elevação da Vila Rica à cidade. Há muitas maneiras de se ver Ouro Preto. A histórica, a aventureira, a pictórica, a arquitetônica, a musical, tantos são os dons e atrativos da cidade. Este texto, porém, enfoca apenas uma marcante vocação da cidade setecentista – a literária. Vocação que se manifesta desde os árcades poetas inconfidentes até a atualidade do evento literário Fórum das Letras, em sua décima edição neste ano de 2014.
A inspiração que Ouro Preto desperta nos literatos remonta mesmo às origens da cidade. Eis o que se constata nas Crônicas do Brasil, em que Manuel Bandeira narra três “gestos muito simples que retém sua imaginação” na história original de Ouro Preto.
O primeiro gesto diz respeito à história do anônimo mulato de que falou Antonil (1), contemporâneo da época dos desbravamentos bandeirantes. O dito mulato tinha ido ao sertão dos Cataguás, numa entrada de paulistas de Taubaté que andavam por aquelas plagas à caça de índios.
Tendo chegado às alturas do serro do Tripuí, conta Bandeira, o mulato desceu às margens do ribeiro da atual Ouro Preto para buscar água. Ao descer sua gamela até o fundo das areias do ribeiro, notou que vinham com a água uns granitos pretos, que não reconheceu, embora já tivesse trabalhado nas minas de Paranaguá e Curitiba, acrescenta Bandeira.
Vendeu o mulato essas pedras a um certo Miguel de Sousa, “por meia pataca a oitava”, conta o poeta pernambucano. Posteriormente, foram enviadas algumas dessas pedras ao governador do Rio de Janeiro, Artur de Sá e Meneses, que veio a descobri-las ouro do mais fino quilate ao simplesmente trincá-las nos dentes. Do que foi narrado acima, conclui Bandeira:
“Aquilo atrás do que as bandeiras ansiosas e sempre desenganadas cortavam o sertão havia século, descobriu-o o mulato naquele gesto humilde de quem apanha um pouco d’água para matar a sede, gesto sem outra intenção e que no entanto criava um mundo” (2).
O segundo gesto destacado por Bandeira foi o espanto dos bandeirantes de Antonio Dias. Esses desbravadores, em vez de penetrar pela Itaverava, como haviam feito os seus predecessores, tiveram o tino de adentrar por onde os primitivos caçadores de índios haviam saído. Deixando a serra da Borda do Campo, Antonio Dias foi direto ao Rodeio, transpôs a serra do Pires, e escalou, do ribeirão da Cachoeira, as alturas do que veio a se chamar Campo Grande.
Ali chegados quase noite, acamparam sem nada terem visto do Itacolomi e, sem saber, dormiram bem próximo do pico, que enevoado se fazia. No clarão do dia seguinte, estando o céu muito limpo, avistou-se o inconfundível perfil da pedra, do outro lado do vale – no dizer de Bandeira, “como um milagre de santo...”.
No ano seguinte, a Campo Grande chegaria o Padre João de Faria Fialho, capelão de nova leva de bandeirantes e autor do terceiro gesto que cativa Bandeira. Num simples rancho coberto de palha, rezou ali o Padre Faria a primeira missa. Como estivesse tal rancho situado no espigão da montanha, ao abrir os braços do altar o padre abençoava as duas grandes vertentes históricas, a do Rio Doce e a do Rio das Velhas. Eis, para Bandeira, o terceiro gesto – a bênção.
Sintetizando-os, Bandeira define assim os três gestos: “um movimento descuidado de mão, uma expressão de surpresa, uma bênção”.
Neste texto, consideram-se esses três gestos parte do veio poético de Ouro Preto, e exploram-se desdobramentos desses momentos iniciais da cidade no estro que Ouro Preto veio a inspirar em outros tempos a outros poetas. Para tanto, inicia-se explorando o conceito de poesia.
Poesia: uma tentativa de conceituação
Começando pela etimologia da palavra poesia, Steiner (3) remete-nos à sua origem grega em poiesis, como “ação de fazer algo”, numa definição que a caracteriza como um ato. Na língua portuguesa, a palavra poesia recebe tanto a acepção de “arte de escrever em verso – na qual está clara a noção de ato – quanto o resultado dessa atividade em si mesmo: uma composição em versos. Em geral, nos sentidos que lhes são atribuídos pelos dicionários, a poesia é apresentada como uma composição cujo conteúdo exibe uma visão emocional e/ou conceitual no trato de ideias, sentimentos, impressões, sendo, na maioria das vezes, manifestadas via associações imagéticas. Num sentido figurado, ou por extensão, a poesia recebe também sentidos como entusiasmo criador, inspiração, encanto, atrativo. Recebe, ainda, acepções que a vinculam com o que desperta o sentimento do belo; que excita a alma; o que há de comovente nas pessoas ou coisas (4).
Parece, assim, que podemos prosseguir nesta reflexão inquirindo os sentidos do termo “poético”. Etimologicamente, “poético” comporta, entre outras significações, as de: “aquilo que tem a virtude de criar”; inventivo; engenhoso. Na definição que lhe é atribuída pelos dicionários, trata-se de um adjetivo que designa aquilo que encerra poesia, ou qualidades, características dela – sendo assim, algo inspirador.
Em termos de linguagem, a poesia se afigura como uma linguagem de síntese. A síntese, tomada em sentido geral, é uma “composição; ato de colocar em conjunto diversos elementos, dados de início separadamente, e de os unir num todo” (5). Metodologicamente, a síntese parte das mais simples noções ou proposições, para as mais compostas; ou ainda, das “proposições certas para outras proposições que são a sua consequência necessária” (6). Do mesmo modo, a síntese é: “Operação pela qual se remonta dos pormenores ao conjunto; visão geral que resulta desta operação” (7).
Contrariamente, a análise é “1.º resolução, solução regressiva; 2.º decomposição” (8). Entre os sentidos relacionados à ideia de decomposição por Lalande, destacamos: “Decomposição de um todo em suas partes, quer materialmente [...], quer idealmente: A definição é a análise de um conceito”. Consequentemente, segundo esse autor, a análise é “todo método ou estudo que comporta um exame discursivo” (9) mesmo que este venha a dar numa síntese, tomada na acepção de “visão geral”. Entre os sentidos relacionados à ideia de resolução, a análise “consiste em estabelecer uma cadeia de proposições começando na que queremos demonstrar e acabando numa proposição conhecida” (10). Tomando essa acepção de análise, e comparando-a com a síntese em relação ao ordenamento das proposições, da premissa à consequência, Lalande nomeia a análise como regressão, e, a síntese, como progressão.
Em suas origens históricas, como contextualizado por Massaud Moisés (11), a poesia está na base do pensamento estético, com Platão e Aristótoles. Foi interpretada, no curso do tempo, por visões concernentes à epistemologia, à ética, à linguagem. Dentro dessa última interpretação, tem sido estudada vigorosamente até os dias atuais, notadamente pelas investigações que recebeu de Wordsworth (12) e Coleridge (13) no Romantismo. Ainda no respeitante à linguagem, Moisés destaca o pioneirismo de I. A. Richards, no século passado, que teve seguimento nas pesquisas da Estilística, do Formalismo Russo, do new-criticism anglo-norte-americano, do Estruturalismo e da Semiótica. Contudo, embora tão amplamente pesquisada, a poesia persiste irredutível a definições. Para dizer com Massaud Moisés, “no curso da História, teorias e doutrinas sem conta têm sido apresentadas, no afã de emprestar clareza e definição a um terreno infenso a toda sistematização” (14).
Encontra-se na poesia a faculdade de expressar o ser humano, sendo ele a um só tempo sujeito e objeto da poesia. Novamente dizendo com Massaud Moisés:
“A poesia corresponderia à expressão do “eu” por intermédio de metáforas ou vocábulos polivalentes: o “eu” do poeta, matriz do seu comportamento como artista, se volta para si próprio, adota não só a categoria “sujeito”, que lhe é inerente, mas também a de “objeto”; portanto, introverte-se, auto-analisa-se, faz-se espetáculo e espectador ao mesmo tempo, como se perante um espelho” (15).
Outras acepções são encontradas no território da compreensão semiótica. O Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés menciona a formulação de R. Jakobsen, que distingue entre as principais funções da linguagem, a função poética, a qual define como “a ênfase [...] posta na mensagem, por si mesma” (16). Esse dicionário apresenta a seguinte conclusão:
“Precisa-se, assim, o estatuto paradoxal do discurso poético: sintaxicamente, é um discurso abstrato, comparável por isso aos discursos praticados na lógica e nas matemáticas; semanticamente, é um discurso figurativo e, como tal, garantia de uma forte eficiência comunicativa [grifo nosso]. Não surpreende, pois, que o efeito de sentido que dele se depreende seja, como no caso do discurso sagrado, o da verdade” (17).
Grifou-se a parte relativa à conotação semântica por sua referência ao discurso poético como figurativo, aspecto ao qual esse dicionário tributa a eficiência comunicativa desse discurso. É precisamente a figuração de Ouro Preto o que se encontrou nas poesias analisadas neste trabalho, análise que doravante se apresenta.
A paisagem da cidade e os poetas
Se as origens de Ouro Preto já predispunham à literatura, como visto com Bandeira, sua história é povoada de eventos que igualmente o fazem. Tome-se aqui especialmente a Inconfidência Mineira (1789) e ver-se-á um manancial para a literatura e, mais especialmente, para a poesia. Sempre lembrando que a referida insurreição é expressão do iluminismo europeu, em especial do português (18), há que se ressaltar sua composição por um grupo que em si mesmo continha próceres literários, como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga ambos imbuídos do estro do Arcadismo.
O nome Arcadismo liga-se à Arcádia, região grega do Peloponeso habitada por pastores e caracterizada por uma vida simples. Conforme Massaud Moisés, a renovação do mito da Arcádia percorreu os séculos 16 a 18, tendo nesse último alcançado maturação e amplo sentido. Em 1690, organizou-se na Itália um “sarau literário, ou academia” que foi nomeado de Arcádia Romana. A Arcádia seria uma das modalidades do costume das agremiações literárias, posto em voga com a Academia Francesa (fundada em 1634), explica Moisés. Este autor enfatiza o caráter poético da Arcádia e lembra a fundação, em 1756, da Arcádia Lusitana, instalando o novo modelo entre os literatos portugueses. “Entre nós, a presuntiva Arcádia Ultramarina, em torno de Cláudio Manuel da Costa, ressoaria a mesma tendência estética” (19), acrescenta Moisés.
Claudio Manuel da Costa (Mariana, 1729 – Ouro Preto, 1789) foi advogado magistrado e poeta. Exerceu o cargo de medidor de terras da Câmara de Vila Rica, atual Ouro Preto. Na então Vila Rica, Claudio Manuel da Costa fundou uma Arcádia denominada Colônia Ultramarina. Conforme relata sua biografia pela Academia Brasileira de Letras, Claudio Manuel da Costa buscou nos cânones do Arcadismo então vigente muitos elementos típicos, tais como o bucolismo, os pastores e as ninfas. Segundo a mesma fonte, ainda em Portugal sentira Cláudio Manuel da Costa de perto o aspecto renovador do Arcadismo ali implantado com a fundação da Arcádia Lusitana em 1756. A publicação em 1768 das Obras constitui o marco inicial do lirismo arcádico no Brasil. O poeta adotou o nome arcádico de Glauceste Satúrnio (20). Aquilatando a importância de seu poema épico Vila Rica, pronto em 1773, mas publicado somente em 1839, em Ouro Preto, diz a Academia Brasileira de Letras:
“É a descrição da epopeia dos bandeirantes paulistas no desbravamento dos sertões e suas lutas com os emboabas indígenas, até a fundação da cidade de Vila Rica. O poema é importante porque, apesar de fiel aos cânones do Arcadismo, destaca-se pela temática brasileira, conferindo a Cláudio Manuel da Costa o título maior de fundar uma literatura que significasse a incorporação do Brasil à cultura do Ocidente” (21).
Sobre sua participação na Inconfidência Mineira, diz a mesma fonte:
“Preso, foi interrogado uma só vez pelos juízes da Alçada, em 2 de julho de 1789. Atemorizou-se no interrogatório, comprometeu os amigos e, por certo desesperado em consequência, suicidou-se no cubículo da Casa dos Contos, onde fora encerrado, aos 60 anos de idade, em julho de 1789” (22).
Eis um de seus sonetos:
“I
Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama” (23).
Tomás Antonio Gonzaga (Porto, 1744 – Moçambique, 1810), formado em Direito em Coimbra, atuou como juiz de fora na cidade de Beja, onde trabalhou até 1781. No ano seguinte, foi indicado para o cargo de Ouvidor Geral na Comarca de Vila Rica, como então se chamava a cidade de Ouro Preto. Permaneceu em Vila Rica até 1789, quando foi envolvido na Inconfidência Mineira. Em maio do mesmo ano, acusado de conspiração, foi detido e enviado preso ao Rio de Janeiro. Naquele tempo, o poeta estava noivo de Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a quem dedicava poemas que viriam a integrar o livro Marília de Dirceu (Figuras 4 e 5) e cuja primeira parte foi publicada em Lisboa em 1792 (24).
Eis alguns versos de Marília de Dirceu, em que Tomás Antonio Gonzaga se refere à então Vila Rica, atual Ouro Preto:
“Toma de Minas a estrada,
Na Igreja Nova, a que fica
Ao direito lado, e segue
Sempre firme a Vila-Rica.
Entra nesta grande terra,
Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
Tem um palácio defronte.
Ele tem ao pé da porta
Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
A minha Marília bela” (25).
O estudo de obra Cartas Chilenas de Tomaz Antonio Gonzaga consagrou o poeta Manuel Bandeira. Fortemente vinculada à literatura desde tão longa história, Ouro Preto é musa inspiradora de muitos poetas e escritores, entre os quais são destacados aqui Cecília Meireles (1901-1964), Murilo Mendes (1901-1975), Elizabeth Bishop (1911-1979), e, é claro, Manuel Bandeira (1886-1968).
Manuel Bandeira (Recife, 1886 – Rio de Janeiro,1968). Poeta, foi também professor, cronista, crítico, historiador literário e tradutor. Foi membro do Conselho Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1938. Como destaca a Academia Brasileira de Letras (26), durante toda a sua vida Bandeira fez crítica de artes plásticas, de literatura, de música, e foi também crítico de cinema. Neste percurso, colaborou com vários jornais e revistas e trabalhou em rádio. Para Gilda e Antonio Cândido, a poesia de Bandeira “tem a simplicidade do requinte” (27). Sua crônica sobre Ouro Preto figura na abertura deste artigo, e Bandeira é autor também do Guia de Ouro Preto. O poeta foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e tomou posse de sua cadeira em 30 de novembro de 1940.
Cecília Meireles (Rio de Janeiro, 1901– Rio de Janeiro, 1964). Segundo Arnaldo Nogueira Jr. (28), Meireles diplomou-se no curso Normal do Instituto de Educação do Rio de Janeiro em 1917, e passou a exercer o magistério primário em escolas oficiais da então capital federal. Em 1951, aposentou-se como diretora de escola. Além de professora, Meireles foi ensaísta, colaboradora de jornais, revistas, redatora de programas de rádio, tradutora laureada com um prêmio Jabuti. Ademais da carreira brasileira, Meireles lecionou Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas (EUA, 1940) e foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa da Universidade de Delhi (Índia, 1953). Como lembra Magno (29), Meireles escreveu seu primeiro poema aos nove anos e escreveu seu primeiro livro aos dezesseis anos, que foi publicado nos dezoito anos da autora. Sobre si mesma, Meireles declarou: “A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade” (30).
Autora do Romanceiro da Inconfidência, poema épico sobre o levante capital da nação, Meireles faz esplender a história de Ouro Preto ao longo de todo o poema e descreve a cidade em Cenário, um trecho introdutório deste longo e belo romanceiro. Resgatam-se aqui versos desse trecho poético que descrevem precisamente a paisagem da cidade, com alguns traços árcades, em sua referência aos campos, ao gado a pastar, ao céu, e a outros idílios da paisagem – senão vejamos:
“Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
pascer nas solidões esmeraldinas.
Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente
– e eram sonhos sem fim, de cada lado
Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.
[...]
Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.
[...]
Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes
tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro” (31).
Por fim, a própria autora cita os árcades, numa menção à Arcádia Ultramarina como se lê abaixo:
“Retrocedem os tempos tão velozes,
Que ultramarinos árcades pastores
Falam de Ninfas e Metamorfoses”.
Ao conjunto urbano de Ouro Preto, Meireles dedica versos que elevam a visão ao céu, num movimento igualmente evocativo dos árcades.
“Altas capelas contam-me divinas
fábulas.
Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblina” (32).
Murilo Mendes (Juiz de Fora, 1901 – Lisboa, 1975) foi despertado para a poesia pela visão da passagem do Cometa Halley em 1910 (33). Sem formação universitária, o poeta estudou por apenas um ano na Faculdade de Farmácia de Juiz de Fora. Sempre um homem de letras, colaborou com jornais, e nas primeiras revistas do modernismo, tais como A Revista de Antropofagia e Verde. Em 1930, publica seu primeiro livro, Poemas (1925-1929), e por ele recebe o Prêmio Graça Aranha de Poesia. Além de poemas, escreveu artigos sobre artes plásticas e crônicas de livros. Em carreira internacional, participou de missões culturais na Bélgica e na Holanda, foi professor de Literatura Brasileira nas Universidades de Roma e Pisa, e professor visitante na Universidade de Madrid. Além disso, foi chargé de conférences nas universidades de Bruxelas, Louvain, Amsterdam e Paris. Murilo Mendes era reconhecidamente um profundo conhecedor de música clássica. Em sua “Microdefinição do Autor”, Mendes enumera os motivos pelos quais se sente “compelido ao trabalho literário”, entre tais motivos, declara estes dois: “pelo meu congênito amor à liberdade, que se exprime justamente no trabalho literário”; “porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador” (34).
Em 1954, Murilo Mendes publica Contemplação de Ouro Preto. No poema Acalanto de Ouro Preto, dedicado ao pintor Alberto da Veiga Guignard, o poeta descreveu Ouro Preto em versos anafóricos, liricamente. Nesse acalanto, Mendes nina toda a cidade e seus mais variados personagens – os artífices, os inconfidentes, os loucos, e até os literários, como os apaixonados Marília e Dirceu. Desse imenso e alentado poema, seguem abaixo algumas estrofes, que são um forte indicativo do que seus demais versos revelam.
“Dorme, Ouro Preto, dorme
Teu sono de solidão.
Dorme, Ouro Preto, dorme
O sono da mineração.
Encobre, Ouro Preto, encobre
Teus espectros familiares,
Tuas pobres almas penadas,
No centro da cerração
[...]
Dorme, dorme, inconfidente
– Ouro Preto inconfidente –
Na paz íntima de Deus
Dorme o silêncio da cruz.
Dorme, Ouro Preto sombria,
Para sempre dorme, dorme,
Na tua pátina paciente,
No teu frio e escuridão,
Nas tuas igrejas perenes,
Nas tuas pedras solenes,
Nos teus terraços desertos
Iluminados somente
Por fogos-fátuos errantes,
Com teus pobres vagabundos,
Com tuas almas penadas,
Com teus santos, com teus poetas,
Barrocos, alucinados,
Teus leprosos, teus doentes,
Teus doidos, teus enforcados,
Refeitos na eternidade,
Remidos na tradição,
Dorme, Ouro Preto reclusa,
Dorme, trágica Ouro Preto,
Dorme, Ouro Preto assombrada,
O sono da libertação”(35).
Elizabeth Bishop (Worcester, 1911 – Boston, 1979). Bishop graduou-se no prestigioso Vassar College, em Poughkeepsie (estado de Nova York). No tempo de Vassar, foi contemporânea da escritora Mary McCarthy e conheceu a poetisa Mariane Moore, que seria sua amiga por toda a vida. Sua carreira de poetisa é marcada por vários prêmios literários, inclusive o Pulitzer de poesia, com o qual foi laureada em 1956. Vale dizer, com Robert Giroux (36), que Bishop é considerada um dos poetas maiores do século 20. Em novembro de 1951, Bishop viajou de navio para a América do Sul. Tendo adoecido no Rio de Janeiro, terminou por permanecer quinze anos no Brasil, vivendo no Rio de Janeiro e em Petrópolis com Lota Macedo Soares. A poeta teve uma casa do século 18 em Ouro Preto, comprada na década de 1960, que veio a ser por ela habitada continuamente de julho de 1969 a setembro de 1970 (37). Batizada por Bishop de Casa Mariana, em homenagem a Marianne Moore, o imóvel hoje pertence a Linda Nemer, que foi amiga da poetisa.
Significativo da relação da poetisa com a Casa Mariana e com a cidade é, desde o título, o poema Pela Janela: Ouro Preto. Os personagens simples da cidade são por ela observados das janelas da casa. É o que demonstram, a seguir, os seus versos de observadora do movimento ouropretano.
“Lá vem uma trouxa amarrada num lençol,
andando sozinha, um metro acima do chão.
Ah – tem um negrinho escondido embaixo dela.
Seis burros se aproximam, atrás da madrinha
– ela é a da franja de lã alaranjada
sobre os olhos, com borlas, e sinos também.
Seguem naturalmente rumo à água, até
que a égua do tropeiro se achega, trotando,
o olho direito vazado por um chicote” (38).
Em todos os poemas acima destacados, a cidade fulgura, corroborando sua vocação literária e poética. Os conteúdos narrativos e figurativos da paisagem foram continuadamente desvendados pela forma com que as palavras desenharam-na na poesia.
Conclusões
Além de Bandeira, Bishop, Mendes e Meireles, Ouro Preto encantou, nos anos 1920 e 1930, a modernistas históricos, como Lúcio Costa, e Mário de Andrade. Este último autor do projeto original de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Sphan (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan). A cidade se tornou patrimônio nacional em 1938, quando foi tombada pelo então Sphan, inscrita no Livro de Tombo de Belas Artes. Em 1980, Ouro Preto teve sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
Para além do reconhecimento patrimonial, o que se vê, nas poesias, é o reconhecimento dos valores poéticos da cidade, de sua paisagem, na forma de uma síntese. Sendo uma síntese, a poesia oferta-nos uma súmula daquilo sobre o que se debruça, sem decompô-lo, sem analisá-lo. Assim é que se nos afigura como território ideal para lermos a paisagem da cidade, porquanto nos apresentará, dentre os atributos dessa, os que melhor a sintetizam. Isso porque, como já visto acima, a linguagem da poesia é uma linguagem de síntese. Donde a proficuidade da pesquisa da poesia como fonte de conhecimento dos valores das paisagens e das cidades.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003), doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008). Arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.
notas
NA – Este texto integra a linha de Pesquisa Paisagens Literárias.
1
Refere-se à obra Cultura e Opulência do Brasil, de André João Antonil. Bandeira assim descreve o contexto de Antonil relativamente a Ouro Preto: “contemporâneo da fundação, quando aquilo era um imenso arraial de 30 mil almas sobre as quais não havia coação ou governo album bem ordenado”. BANDEIRA, Manuel. Crônicas da província do Brasil. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 25.
2
BANDEIRA, Manuel. Crônicas da província do Brasil. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 17.
3
STEINER, George. Nenhuma paixão desperdiçada: ensaios. Rio de Janeiro, Record, 2001.
4
Acepções coligidas a partir de pesquisa nos dois mais consagrados dicionários nacionais: Novo Dicionário Aurélio, de Aurélio Buarque de Holanda, e Dicionário Houaiss, de Antônio Houaiss.
5
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 1999. p. 1029.
6
Idem, ibidem, p.1029-1030.
7
Idem, ibidem, p.1029-1030.
8
Idem, ibidem, p. 60.
9
Idem, ibidem, 60.
10
LALANDE, 1999, p. 60.
11
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 11. edição. São Paulo, Cultrix, 2002.
12
William Wordsworth (1770-1850), poeta inglês que rejeita em seus poemas a fraseologia do século 18, preferindo reencontrar o pitoresco da língua cotidiana.
13
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), poeta inglês, autor, com Wordsworth, de Baladas líricas, (1798), verdadeiro manifesto que marca a eclosão do romantismo.
14
MOISÉS, Massaud. Op. cit., p. 402.
15
Idem, ibidem, p. 405
16
JAKOBSON. Apud GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo, Cultrix, s/d, p. 338.
17
Idem, ibidem, p. 340.
18
FRANCO, Sandra. Os árcades inconfidentes no Brasil e as reformas pombalinas. Revista Trama, Cascavel, v. 2, n. 4, p. 219-233, 2005.
19
MOISÉS, Massaud. Op. cit., p. 37.
20
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Biografia Claudio Manuel da Costa. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=836&sid=134>. Acesso em: 28 out. 2014.
21
Idem, ibidem.
22
Idem, ibidem.
23
BIBLIOTECA VIRTUAL DE LITERATURA. Disponível em: <www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/ClaudioManoeldaCosta/Poemas.htm>. Acesso em: 28 out. 2014.
24
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Biografia Tomás Antonio Gonzaga. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=804&sid=332>. Acesso em: 28 out. 2014.
25
GONZAGA, Tomás Antonio. Marília de Dirceu. Belo Horizonte, Vila Rica Editoras Reunidas. 1992, p.185
26
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Biografia Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras. Disponível em <www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=646&sid=249>. Acesso em: 28 out. 2014.
27
SOUZA, Antonio Cândido de Melo; SOUZA, Gilda de Melo. Introdução. In: BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 3-17.
28
NOGUEIRA JR, Arnaldo. Releituras. Disponível em: <www.releituras.com/cmeireles_bio.asp>. Acesso em: 4 nov. 2014.
29
MAGNO, Simone. Morte de Cecília Meireles completa 50 anos em 9 de novembro. Disponível em: <http://cbn.globoradio.globo.com/editorias/cultura/2014/11/01/MORTE-DE-CECILIA-MEIRELES-COMPLETA-50-ANOS-EM-9-DE-NOVEMBRO.htm>. Acesso em: 5 nov. 2014.
30
NOGUEIRA JR, Arnaldo. Op. cit.
31
MEIRELES, Cecília. Antologia poética. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001, p. 163-164.
32
Idem, ibidem, p. 164.
33
MENDES, Murilo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995.
34
Idem, ibidem, p. 45.
35
Idem, ibidem, p. 535 - 540.
36
GIROUX, Robert. Introdução. In: BISHOP, Elizabeth. Uma arte: as cartas de Elizabeth
Bishop. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
37
TOLEDO, Roberto Pompeu de. Uma casa para Elizabeth. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-59/questoes-litero-biograficas/uma-casa-para-elizabeth>. Acesso em: 10 nov. 2014.
38
BISHOP, Elizabeth. Poemas do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 143.