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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Esta é uma tentativa de viabilização de caminhos, de formulação de métodos, de questões e de hipóteses para uma pesquisa acerca da “arquitetura conceitual” e do pensamento de Peter Eisenman pela disciplina e pelo discurso na arquitetura.

english
This is an attempt of making possible paths, of formulating methods, questions and hypothesis for a research about “conceptual architecture” and the thoughts of Peter Eisenman concerning the discipline and the discourse in architecture.


how to quote

NASSIF, Lucas Ferraço; LEONIDIO, Otavio. Arquitetura-política. Ensaio, projeto, viabilização de caminhos. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 183.02, Vitruvius, ago. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.183/5649>.

Fort:da. É preciso que o passo mais normal comporte o desequilíbrio, nele mesmo, para se levar adiante, para se fazer seguir por um outro, ainda o mesmo, que seja passo, e que o outro revenha ao mesmo, porém como outro”.
Jacques Derrida (1)

“A ausência dura, preciso suportá-la. Vou portanto manipulá-la: transformar a distorção do tempo em vai e vem, produzir ritmo, abrir a cena da linguagem (a linguagem nasce da ausência: a criança fabrica um carretel, joga-o e apanha-o, mimando a partida e a volta da mãe: um paradigma foi criado). A ausência torna-se uma prática ativa, um atarefamento (que me impede de fazer qualquer outra coisa); cria-se uma ficção com múltiplos papéis (dúvidas, recriminações, desejos, melancolias). Essa encenação linguageira afasta a morte do outro: um momento brevíssimo, dizem, separa o tempo em que a criança ainda crê que a mãe está ausente e o tempo em que já a crê morta. Manipular a ausência é alongar esse momento, retardar tanto quanto possível o instante em que o outro poderia resvalar secamente da ausência para a morte”.
Roland Barthes (2)

Ação conceitual não-propositiva?

Esta é uma pesquisa que se faz na esquizoanálise (3). É nela em que eu opero enquanto penso a escrita de Peter Eisenman. A esquizoanálise é a implosão do discurso que não o destroi, mas que o desestabiliza: que dá chance a paragens e a outros movimentos que acontecem nele. A implosão do discurso se dá sem que ele seja destruído. É importante apontar a relevância da destruição incompleta pois ela é um processo de exposição de mecanismos: dos conceitos que compõem e dos excessos não administrados pelas relações entre os conceitos no discurso. O discurso implodido é sujeito-disciplina implodidos e o choque da “proposição despida de sentido”, da importância do conceito enquanto “intensão” (4) e não enquanto proposição.

Esta é uma pesquisa que se passa no ataque de Peter Eisenman pelo campo dos conceitos em detrimento da experiência fenomenológica da arquitetura, nas manifestações que ele convoca para periclitar (muitas vezes) o que se acha, o que se acredita e que se compreende como periclitado – mas que (muitas vezes) esconde sua referência, sua reportagem, seu serviço, sua função. Peter Eisenman age no adensamento do texto, na complexificação de relações, numa  jornada sem grandes chegadas, ameaçada e ameaçadora.

Esta é uma pesquisa que opta pela esquizoanálise como método de trabalho nos textos de Eisenman. É junto de Deleuze e de Guattari que enfrento meu objeto inicialmente para deles encontrar outros autores, certos encontros e alguns desertos. Este estudo quer romper narrativas já organizadas da arquitetura – e do trabalho de Eisenman – para poder deixar outras propostas insuficientes surgirem em meio a opressões e ao conservadorismo que procuram, sempre, colocar Eisenman junto da fenomenologia, da experiência. Esquizoanálise como método é não querer uma narrativa posterior ao processo, é não possuir uma meta, é retirar representações: devires estrangulados, fantasmas, figuras, tipos, bons ritmos de respiração, continuidades, promenades, sublimações, teatralidades. Descrições a serem contadas, experiências possíveis, o corpo no lugar da visão não periclitam o homem e seu humanismo. Antropocentrismo e racionalidade vinculados: entendimentos pacificados da linguagem.  O que proponho a partir dos textos de Eisenman e da esquizoanálise são leituras dissimuladas e perturbadas de amores não figurativos, de conceitos que se vinculam e que compõem espaços-relação nos quais agimos, nos quais estamos. Um processo de desconstrução? Talvez; mas, sobretudo, um projeto incompleto e incompetente em sentido, em prática. O que se busca – eu, intercedido por Eisenman etc. – é incomodar a instrumentalidade estética dos conceitos, dos elementos de uma disciplina que devem ser dominados e utilizados pois foram naturalizados nessa maneira, nessa narrativa que eles próprios constroem e pela qual são enlaçados.

O projeto em esquizoanálise talvez seja a jornada de Peter Eisenman na “figura retórica”. Nos problemas. Problemas a não serem resolvidos, mas a serem colocados; vontades problemáticas que  se destacam. Vontades não perfeitas, mancas, irônicas: que em seus movimentos atrapalham trajetórias e fazem surgir possibilidades de expansão da linguagem enquanto prática. A arquitetura conceitual escrita por Eisenman se interessa mais pela pergunta “qual o ponto de vista sobre o ponto de vista?” (5) e menos pelo relativismo que impede o confronto, o contratempo, a cossignatura, as intercessões (6). Mais uma “forma de vida” (7) em “multiplicidades intensivas” (8) e menos algo a ser recebido, assimilado, reproduzido num liberalismo repressor.

A prática da arquitetura conceitual enquanto “alteridade radical” (9) caminha pelos “espaços outros” (10) das “heterotopias”  apontadas por Michel Foucault. “Espaços outros” que permitem discussões acerca da “relação” e das forças que participam do projeto. Trabalhos corais (11) cujos mecanismos atuam em manifestação: organizam-se e desorganizam-se; intrigam, interrompem o trânsito, provocam debate, ativam angústias. A arquitetura conceitual é política. Ela confunde pois libera devires. Novos significados aparecem em propostas que mostram repressões e que inquietam – provocando, também, reações conservadoras.

É marcante a escolha de Eisenman pelas palavras de Freud na epígrafe de “Arquitetura e o problema da figura retórica” (12). Desatentos podem acreditar que a citação do fundador da psicanálise fale sobre a repressão e permita ações que descompassem movimentos repressivos. Todavia,  o que Eisenman quer destacar é a gravidade da disciplina fundada por Freud e a necessidade de se pensar atentamente o texto e suas forças. É um ato de ironia a escolha de sua epígrafe; e é pela ironia que a repressão do discurso freudiano aparece. A ironia abre momentos para atuarem os descompassos  nos movimentos repressivos. É importante apontar a necessidade de pacificação do texto de Eisenman demonstrada por Kate Nesbitt em sua apresentação feita na coletânea “Uma nova agenda para a arquitetura” (13). “Eisenman inicia sua exposição anunciando assim a sua orientação psicanalítica” (14). Orientação?  A fala de Nesbitt é interessante enquanto ato de leitura pois não parece haver vontade de adensamento, de dificuldade ou de liberdade. Respostas fáceis surgem para que se encontre o texto num contexto do empoderamento, da crença nas respostas e nos significados anteriores, nas metas. Todavia, é o empoderamento,a crença, os significado anteriores e as metas que serão atacados e na instabilidade deles que o texto pousa suas questões.  

As “heterotopias” (15) são espaços-relação. O dentro e o fora, a origem e o destino, a presença e a ausência, a transparência e a opacidade, a função e a forma que se interferem. Os “espaços outros” são práticas tensas de constituição paradoxal. Ao mesmo tempo se está num movimento reterritorializado e desterritorializado (16), num processo ansioso que pode ser apaziguado ou não. Optar pelo não-apaziguamento é procurar indeterminações de sentido (17). A jornada na “figura retórica” são jornadas de conteúdos ausentes: fins e meios do projeto em esquizoanálise, da arquitetura proposta por Peter Eisenman. “Para existir, ela deve sempre resistir a ser” (18). A tragédia da arquitetura conceitual é a tragédia da linguagem como prática: a necessidade de se organizar e de se desorganizar. Sua desgraça e sua glória. Eisenman opta por uma definição de arquitetura que é colocada “para conferir ao conflito sua dimensão trágica, para impossibilitar desde o início qualquer compromisso, qualquer solução mediadora” (19).  O interesse é atacar a supressão ou a naturalização dos vínculos, das relações: o que se quer é acentuá-los, destacá-los, deixando aparente o que acontece entre eles, no discurso e nas suas propostas. A diferença é essencial em sua ironia pois marca a gravidade da essência, a necessidade de significados, de metas e de figuras que signifiquem algo. A disciplina da arquitetura  oferece seus elementos como estruturas necessárias ou infra-estruturas para  o “desnecessário” naturalizado que se insere em narrativas que sempre estiveram lá pairando sobre a ação, espreitando, vigiando. Peter Eisenman não quer uma coisa nem outra – no desconserto dessa afirmação altamente questionável em sua viabilidade. É possível não querer estruturas necessárias ou infra-estruturas para  o “desnecessário”? Vêem-se exercícios de ativação de angústias uma vez que o discurso perde sua discursividade propositiva, mas permanece (insiste em existir em) discurso.

Aponto as heterotopias não como fenomenologia, mas como pensamento sem experiência. Experimentações no discurso, talvez. É perigoso o entendimento da arquitetura conceitual proposta por Peter Eisenman a partir de “Arquitetura e limites” (20) de Bernard Tschumi. O “outro” e o “espaço outro”, em Tschumi, apresentam-se pacificados e estrategicamente simples num conceito de experiência que delimita toda uma atuação prática e efetiva do arquiteto. Trazer as heterotopias fora da fenomenologia é, portanto, a tentativa de pensar na linguagem enquanto localização e deslocalização, ao mesmo tempo, num “tempo outro” e num “espaço outro” que não se faz em passado-presente-futuro e que abre novas possibilidades de ação conceitual no corpo e de torção mental. Corpo que não é orgânico ou mesmo humano, mas maquínico em seus funcionamentos e mal-funcionamentos. Composto de engrenagens, umas mais calibradas do que as outras ou em perfeita consonância. A aposta nas heterotopias não como experiência, mas como espaço das relações e dos vínculos entre conceitos, tenta destacar ruídos nessas máquinas nos quais torções e quebras acontecem.  Em “Arquitetura e limites”, Tschumi escreve um texto fácil e que procura complicar as relações entre os conceitos da arquitetura. Entretanto, o que é produzido se faz perigosamente humanista e propositivo – e logo se tornará hegemônico, apontando uma nova ordem, uma nova codificação para a disciplina. A vontade, então, é atacar a frase “uma atividade humana altamente complexa” (21) e pensar atividades sem meta, numa outra natureza, desobedecendo e confrontando o conceito “bem amarrado” do “humano”; imobilizá-lo, talvez. É preciso apontar e instigar as fissuras nesse “humano” e afrontar a fenomenologia que o “protege”, que o empacota: esse é o programa. Um programa que não é utópico pois não apresenta soluções, mas que projeta questionamentos.

A jornada de Peter Eisenman se dá na “figura retórica” (numa palavra que é todo um texto e ela mesma). Ele não se utiliza da “figura retórica” como instrumento. O “na” confunde momentos, confunde “valores” e prática, atentando para a relação das forças que existe e para a imanência da prática da escrita. Esses “valores” são outros, eles estão lá não apenas para provocarem o colapso, mas para entrarem em colapso. Ao não serem aceitos completamente, eles questionam a possibilidade de um produto, de um resultado efetivo. A aparente solução da arquitetura conceitual é sempre insuficiente. Ela não pode se esgotar. Ela não quer se esgotar. Seu dever é ser perturbadoramente incompleta, deixando perguntas sem respostas ou precisões e escolhas irritantes. A proposta de Eisenman é o enfraquecimento da proposta, ou da propositividade: ou seja, o enfraquecimento da proposição enriquecida de sentido, de referência.

“A arquitetura cria instituições. É uma atividade construtiva. É, por natureza, institucionalizante. Portanto, para existir, a arquitetura tem de resistir ao que, de fato, deve fazer. Para existir, ela deve sempre resistir a ser. Precisa deslocalizar sem destruir sua própria essência, isto é, tem de manter sua própria metafísica – eis aí o paradoxo da arquitetura. Assim, para reinventar um local, seja ele uma cidade ou uma casa, ela precisa libertar a ideia de lugar de seus lugares, histórias e sistemas de significados tradicionais. Isso implica a deslocalização da interpretação tradicional de seus elementos de modo que as suas figuras possam ser lidas retoricamente, e não estética ou metaforicamente” (22).

Peter Eisenman estuda um “excesso” (23) na definição da arquitetura conceitual. “Excesso” que, quando não reprimido, proporciona a “presentness” (24).  O “excesso” é a necessidade de afrouxar e de tensionar os vínculos entre os conceitos  que constituem a disciplina. A possibilidade da “presentness” surge do periclitar de relações estabelecidas e dos descompassos nos percursos-vínculos que formam a arquitetura: do soluço (25) num movimento, em idas e vindas que se naturalizam e que nalgum momento desritmam em esgarçamentos. O “excesso” nas relações entre conceitos é gerador de outra força com a qual se poderá operar na expansão da linguagem. Uma expansão que passa por entre as repressões. É com a “presentness” que a arquitetura conceitual  modifica o entendimento da linguagem. A “presentness” trazida por Eisenman é a chave do contratempo. Ela se apresenta e permite entender a linguagem como prática (escrita) e não como instrumento. Um “mesmo-outro” que não é nem presença, nem ausência – nem uma coisa, nem outra. Talvez uma presença da ausência que ataca a opacidade e a transparência, a função e a forma. Um conceito que é “anjo exterminador”, que age na (des)organização da linguagem; uma fórmula como o “I would prefer not to” de Bartleby (26). Entretanto, Eisenman não se recusa sempre: ele pratica a insuficiência de seus projetos. Textos escritos (prédios erguidos, palavras digitadas) que não condizem: teoria e prática estão unidas numa insatisfação que escancara a discursividade das propostas na arquitetura e a “intensão” (27) da arquitetura conceitual.

“Presentness” encontra o “fort:da” que está nas citações que iniciam este trabalho; elas são a manipulação de momentos, o habitar a instabilidade e a impossibilidade de um projeto completo.  A linguagem como prática é uma linguagem na qual se está, na qual se é: em que se atua e que existe com a ameaça de seu contratempo. Ela não pode ser possuída enquanto objeto, ela não pode ser reificada. Ela não é como um instrumento a serviço de. O que a “presentness” faz é abrir o espaço para as leituras despacificadas das forças, para os “textos reprimidos”, numa estética outra que não é a do empoderamento – na qual são atacadas a representação, a função, a psicanálise etc.

“A importância da “presentness” como um termo para a arquitetura é que ela distingue uma escrita de uma instrumentalidade da estética e do significado. “Presentness” como uma escrita é a possibilidade de uma subversão do “aquilo em que se acredita” ser o tipo na arquitetura; que a arquitetura possui nisso uma internalidade que é uma possibilidade já existente de subversão. “Presentness” é a possibilidade da, ou talvez a necessidade da, arquitetura se estabilizar através da reabsorção da transformação do tipo  trazida pela subversão, e simultaneamente  a resistência a essa reabsorção. Essa internalidade como uma escrita é um traço daquilo que já é dado e a possibilidade de experimentar esse traço no espaço. Traço é a possibilidade da subversão de um tipo primordial, o qual está constantemente nele ao longo do tempo, que se tornará em qualquer tempo dado na história da arquitetura, a convenção “agora existente” de tipo. Para atingir essa subversão, a arquitetura deve sempre superar os gestos normativos tipológicos e sociais que, em todos os momentos dados, tentam manter seu status quo” (28).

A “figura retórica” querida por Eisenman é a tentativa de retirar a opacidade da arquitetura. Atuar numa transparência complicada de seus elementos: retirar suas estruturas e infraestruturas sem as substituir por outras imposições. Eisenman quer fazer aparecer ausência naquilo que se ergue e dar a isso outras possibilidades, outros textos, ficções. A vontade da “figura retórica” é construir blocos de ausência; fazer existir algo que não seja funcional, objetivo em sua existência, liberando outros movimento a partir de implosões. Esses blocos são excessos a serem administrados, associados – ou não. Eles se colocam como questão, exigem leitura atenta ou desvios. “Formas de vida”, blocos de texto que interferem no discurso do qual fazem parte por não aderirem ao seu sistema de representação. Minorias provocantes: “nous resterons”. O átrio de um grande museu, várias pessoas de aspectos diferentes se movimentam pelo espaço; correm, andam, sentam-se, ficam de pé, cantam, fazem sons; algumas se aproximam de mim e me contam uma estória ou outra coisa que se parece com uma estória cuja veracidade é ao mesmo momento importante e desimportante.

Peter Eisenman faz arquitetura e insiste em chamar aquilo que faz pelo nome “arquitetura” – aí está a política de seu gesto. Implodir o nome, a instituição, sem que ela seja destruída. Como a demanda por um casamento outro: o casamento que é instituição, mas que abriga outras possibilidades. A instituição criticada nas manifestações políticas é afirmada por sua crise, positivada no movimento de reterritorizalização contido no movimento de desterritorialização que a colapsa. A política é agir nessa instituição destacando seu contratempo e o desejo. A proposta é talvez uma não-proposta: não fazer concessões, andar na direção contrária da procissão; esbarrar, incomodar, estar presente em sua ausência e indicando outras escolhas para a mesma ação, devires. Continuar a andar: todavia, o que é outro no movimento vem da confusão e do estremecimento das relações. Linguagem como prática-crítica; contratempos e distúrbios etc.

“As figuras retóricas são ficcionais porque, apesar de os elementos do sítio parecerem estar em sua posição original, isto é, parecerem localizar-se de acordo com a sua condição prévia de estrutura formal (eixos e eventos no começo, meio e fim de tais eixos), na verdade, eles não estão. Origem e destino são coetaneamente percebidos, mas o efeito do movimento em direção ao destino é um retorno à origem. A percepção em um ponto dado de todos os elementos da progressão, redispostos em escala e distância, deslocaliza a relação entre tempo e espaço. Poderíamos, da mesma forma, percorrer o eixo e encontrar os mesmos elementos várias vezes. Tempo e espaço, forma e figura, desse modo, entram em colapso como entidades interdependentes, o espaço se torna independente do tempo (real e histórico), e o espaço (mais precisamente lugar e lócus) se torna independente da forma. Isso permite conceber esses elementos, tempo, espaço, lugar, forma, figura, dentro de um sistema que contém a possibilidade de sua própria contradição. O significado de espaço de tempo se liberta então de uma representação simbolizada: a definição do tempo como circular ou linear e do espaço como dinâmico ou estático passa a não ter nenhum significado no sentido tradicional. Nega-se o sistema de significado (estrutura cultural) de uma forma sem negar a forma: mas agora as formas elas mesmas não têm mais nenhum significado transcendente ou a priori. Elas são destituídas de sua antiga condição de coisas dadas. O significado está na relação: a arquitetura está entre os signos. Essas supostas condições de presença fazem coexistir as analogias e seus precedentes, mas as põem suspensas em uma condição de ausência. Isso deslocaliza a essência conceitual de suas típicas estruturas prévias (hierarquia, tempo, espaço, lugar etc.). Retira o significado “original” desses elementos; desenraizando-os de uma cultura, história, lugar, espaço ou tempo. São agora ao mesmo tempo o “velho” e o “novo”, atemporais, sem lugar e sem espaço em termos de escala, distância ou direção. Isso significa que a sua forma e figura não têm uma relação direta com a estrutura inescapável de tempo e lugar” (29).

Fotograma do filme Caché, de Michel Haneke, 2005
Foto divulgação

A ficção de Peter Eisenman pode ser discutida em “Caché” (30) de Michel Haneke. Mais um de seus intercessores (31), Haneke faz um trabalho que não se importa com a resposta de perguntas ao final. Na ilegibilidade (32), “Caché” passa as imagens projetadas do físico na tela para o mental do espectador numa outra relação que não da fenomenologia; o jogo de “Caché” se dá numa “fisicalidade mental” importante para a arquitetura conceitual pois a passagem da opacidade para a transparência não vem junto de um significado imposto ou de uma experiência. Os elementos do texto são  colocados numa trama frouxa e formam um espaço dissimulado: uma ficção a não ser compreendida por completo, a ser especulada em seus vazios, em sua retórica da intriga. O que está escondido permanece escondido, constantemente. A instrumentalidade da linguagem está perdida, o que se pode fazer é, portanto, viver (n)essa angústia. A mensagem da falta de mensagem. A dissimulação não imita ou reproduz; ela quebra caminhos, códigos, sentidos e apresenta intensidades problemáticas. Outras posturas são exigidas e outros movimentos podem ser avistados. Pássaros que atacam sem motivo; não se sabe de onde vieram ou para onde vão.

“Devir nunca é imitar. Quando Hitchcock faz o pássaro, ele não reproduz nenhum grito de pássaro, ele produz um som eletrônico como um campo de intensidades ou uma onda de vibrações, uma variação contínua, como uma terrível ameaça que sentimos em nós mesmos” (33).

Exercícios de instabilidade, projetos dissimulados ou ficções são intrigas e caminhos do discurso que o implodem e que o retomam. O que se afirma é o nome, nome que carrega seu contratempo: as máquinas e seus movimentos. “Arquitetura”. As propostas insuficientes da arquitetura conceitual são “trincas” (na amplitude da palavra) de uma ação infinitiva, intelectual. Nem presença, nem ausência: “presentness”. Um projeto não hermenêutico num nome em crise – e que tem nela a sua continuidade.

Fotograma do filme Os pássaros, de Alfred Hitchcock, 1963
Foto divulgação

sobre os autores

Lucas Ferraço Nassif é do programa de pós-graduação em arquitetura, teoria e história do projeto, na PUC-Rio. Tem graduação em audiovisual pela ECO-UFRJ e foi integrante do programa de aprofundamento em artes visuais da EAV-Parque Lage. Seu vídeo “Reinforced Concrete” faz parte do projeto “Labour in a Single Shot” de Harun Farocki, exposto, dentre outras, na Bienal internacional de arte de Veneza 2013, no pavilhão latinoamericano. Funcionário em museologia na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Otavio Leonídio é arquiteto, doutor em História, professor da PUC-Rio

notas

1
DERRIDA, Jacques. O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 453.

2
BARTHES, ROLAND. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 39.

3
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo. São Paulo, Editora 34, 2012.

4
Idem, ibidem, 2010, p. 30 (ambas).

5
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 91.

6
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo, Editora 34, 2010, p. 155.

7
Ibidem, 2011, p. 11

8
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia. São Paulo, Editora 34, 2010.

9
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Op. cit., p. 93.

10
FOUCAULT, Michel. Des espaces autres. Architecture, Mouvement, Continuité, Paris, n. 5, out. 1984.

11
SÜSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. Prosa (Jornal O Globo), Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/21/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.asp. Acesso: 25/04/14.

12
EISENMAN, Peter. Arquitetura e o problema da figura retórica. In: NESBITT, K. (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

13
NESBITT, Kate. (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

14
Idem, ibidem, p. 191.

15
FOUCAULT, Michel. Op. cit.

16
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 5. São Paulo, Editora 34, 2012, p. 238.

17
EISENMAN, Peter. Arquitetura e o problema da figura retórica (op. cit.), p. 196.

18
Idem, ibidem, p. 194.

19
LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo, Boitempo, 2011, p. 14.

20
TSCHUIMI, Bernard. Arquitetura e limites. In: NESBITT, Kate. (Org.). Op. cit.

21
Idem, ibidem, p. 187.

22
EISENMAN, Peter. Arquitetura e o problema da figura retórica (op. cit.), p. 194.

23
EISENMAN, Peter. Post/El cards: A Reply to Jacques Derrida. Assemblage, Cambrige, n. 12, 1990, p. 16.

24
Idem, ibidem, 2007, p. 47.

25
LEPECKI, André. Exhausting Dance: Performance and the politics of movement. Nova York, Routledge, 2006, p. 1.

26
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo, Editora 34, 2011, p. 91.

27
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia (op. cit.).

28
EISENMAN, Peter. Written into the void. New Haven e Londres, Yale University Press, 2007, p. 47.

29
EISENMAN, Peter. Arquitetura e o problema da figura retórica (op. cit.), p. 198.

30
Caché, 2005, direção de Michel Haneke. Ver EISENMAN, Peter; HANEKE, Michel. The Eisenman-Haneke Tapes. Icon Magazine Online, n. 55, jan. 2008. Disponível em: http://www.iconeye.com/news/news/the-eisenman-haneke-tapes. Acesso: 25/04/14.

31
DELEUZE, Gilles. Conversações (op. cit.), p. 155.

32
EISENMAN, Peter; KOOLHAAS, Rem. Supercritical. Londres, AA Publications, 2010, p. 28.

33
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Volume 4. São Paulo, Editora 34, 2012.

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