Este trabalho aborda a observação de uma experiência didática de caráter voluntário realizada no Mestrado Integrado em Arquitetura do Instituto Superior Técnico de Lisboa, Universidade de Lisboa (IST/UL), no ano letivo de 2012-2013. Denominada Projeto Relâmpago, esta atividade teve como principal objetivo incentivar o trabalho colaborativo e a integração entre os alunos do curso por meio da elaboração de um projeto de arquitetura em uma semana (1).
Como fundamentação teórica explora-se uma aproximação entre a reflexão-na-ação proposta por Donald Schön e a noção de coletivo proposta por Bruno Latour. Ao defender a reflexão-na-ação Schön (2) argumenta que a elaboração de um projeto deve ser realizada sempre com a análise daquilo que se faz – ou se está fazendo – para que a solução final seja construída de modo embasado e crítico.
Já Latour (3) dá à associação e à interação entre atores, humanos e não-humanos o nome de rede sociotécnica – uma rede de elementos materiais e imateriais, onde os conhecimentos tecnocientíficos são indissociáveis das interações sociais e técnicas e são frutos da construção de um coletivo. "Somos animais sociotécnicos e toda interação humana é sociotécnica. Jamais estamos limitados a vínculos sociais. Jamais nos defrontamos unicamente com objetos. Deste modo, podemos considerar que as máquinas, animais, textos, dinheiro e arquiteturas também compõem o social" (4).
Estas premissas contribuem para a compreensão do projeto de arquitetura como um coletivo que se articula e se configura em torno de um conjunto heterogêneo de atores, humanos e não-humanos. Assim, a utilização destes entendimentos no acompanhamento do projeto relâmpago visou subsidiar a observação dos projetos dos estudantes para verificar como e porque cada ator influencia nas tomadas de decisões dos alunos.
Esclarecimentos necessários – a título de fundamentação teórica
A teoria Ator-rede e a noção de coletivo
A expressão ciência em ação, cunhada por Bruno Latour (2000) (5), indica um modo de investigação com o propósito de desvendar o que está por trás das “descobertas” científicas, muitas vezes descritas como “invenções” advindas, exclusivamente, do trabalho realizado nos laboratórios dos cientistas (6). A ciência em ação se ocupa do caminho percorrido por um fato/artefato até o seu reconhecimento como tal; busca identificar o processo de desenvolvimento e consolidação de uma descoberta, através do rastreamento do seu percurso. Para o autor toda invenção surge do entrelaçamento da atuação de um coletivo, ou conjunto heterogêneo que reúne atores humanos e não-humanos, que influenciam a configuração final de determinado fato/artefato. Neste sentido, entende-se que uma invenção não deve ser encarada apenas como resultado de ideias geniais vindas de “mentes brilhantes”.
O projeto de arquitetura, por sua vez, deve ser encarado como um processo investigativo, que não comporta verdades absolutas e definições incontestáveis; que, ao contrário, está aberto a controvérsias e sujeito à atuação de elementos humanos e não-humanos que tecem e são tecidos na trama do projeto.
A Teoria Ator-rede (TAR), proposta por Bruno Latour, John Law e Michel Callon e que vem sendo explorada por pesquisadores de diversas áreas, incluindo a Arquitetura e Urbanismo, possui alguns pressupostos que podem contribuir para a investigação proposta neste trabalho. Entre estes pressupostos desenvolve-se a noção de coletivo, que se refere à associação de humanos e não-humanos como um processo de mediação com responsabilidade dividida entre ambos, evitando separar natureza e sociedade, humanos e não-humanos. Baseia-se no argumento de que um agente social – o ator – é mais que um ser humano e seu corpo:
"um ator é uma rede de certos padrões de relações heterogêneas, ou um efeito produzido por tal rede. [...] daí o termo ator-rede – um ator é também, e sempre, uma rede [...] a TAR é uma forma de sugerir que a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas são todos efeitos gerados em redes de certos padrões de diversos materiais, não apenas humanos” (7).
O coletivo seria, assim, a trama que envolve tudo o que participa da rede; o elemento “entre”, que associa todas as coisas. Um coletivo não hierárquico de elementos distintos que se interferem mutuamente em um processo de mediação entre homens, coisas e técnicas; um híbrido que desfaz as hierarquias e a natureza dos elementos, colocados lado a lado.
A reflexão-na-ação
A reflexão-na-ação, expressão criada por Schön, propõe que a elaboração de um projeto seja realizada por meio da análise daquilo que se faz – ou se está fazendo. Nesse sentido, argumenta que a separação entre a teoria (ou a pesquisa) e a prática não deve ser realizada. Defende que a prática incorpore a teoria e que esta última não seja categorizada (por campos de conhecimento). “Deveríamos estudar a experiência de aprender por meio do fazer e o talento artístico por meio da boa instrução" (8).
No campo da arquitetura pode-se dizer que os profissionais não lidam somente com problemas bem-definidos. Ao contrário, a definição do problema em arquitetura é uma atividade complexa e que depende de diversos fatores. Portanto, pontos de vistas diferentes ou conflitantes vão gerar compreensões e soluções distintas, que levarão a resultados (projeto e obra) também diferentes. O arquiteto ou o estudante de arquitetura deve ser incentivado a tomar decisões nas situações de incertezas e a propor soluções diante dos problemas que surgirão no decorrer do projeto, refletindo sempre sobre o que faz.
O projeto relâmpago
O Projeto Relâmpago trata da elaboração de um projeto de arquitetura em equipe, desenvolvido em ambiente de ateliê e concentrado em uma semana. Inicia-se com um dia de apresentação geral e uma série de conferências sobre a temática abordada; a seguir, prossegue-se com um trabalho em ateliê que termina no sétimo dia com a montagem de uma exposição das propostas de projeto. Os grupos reúnem aleatoriamente entre três e sete alunos, sendo, obrigatoriamente, pelo menos um aluno de cada ano.
Nas edições já realizadas foram abordados problemas complexos e provocativos, previamente selecionados pelos docentes de projeto. O objetivo é confrontar os estudantes com um exercício cujos conteúdos, não divulgados a priori, permitam contínuas revisões, reflexões e reelaborações ao longo do processo projetual: um processo de construção, participação e articulação que rompe com as metodologias de projeto mais convencionais e passa a ser direcionada para uma abordagem interdisciplinar capaz de compreender e transformar um determinado contexto.
No ano letivo de 2012/2013 (9), o tema foi sugerido por um aluno do curso de Engenharia Aeroespacial, que participou das orientações juntamente os docentes de Projeto de Arquitetura e com professores e outros alunos dos cursos de Engenharia Aeroespacial e Engenharia Física Tecnológica para o esclarecerecimento de dúvidas relativas às condições ao ambiente lunar e suas especificadades.
O primeiro dia foi ocupado por sessões informativas sobre as características da superfície lunar e a (possibilidade de) vida na Lua; por testemunhos de experiências em comunidades fechadas sob ambientes hostis – submarino, cockpit de avião, estação de pesquisa na Antártida, nave espacial – e pela realização de observações lunares no Planetário Calouste Gulbenkian e no campus do IST (ambos em Lisboa) para ajudar a criar a desejada “imersão” no ambiente lunar.
A condução dos trabalhos diferenciou-se pelas características dos integrantes das equipes e pelo fio condutor adotado por cada uma. Em algumas equipes as discussões foram de caráter mais teórico-conceitual e abordaram escalas, usos, programas, funções, formas e questões que envolvem as características da superfície lunar; em outras o foco do debate centrou-se nos instrumentos – esquemas e desenhos produzidos pelo grupo – e na exploração da materialidade técnica e formal do projeto de arquitetura em si.
Após uma semana intensa de trabalho, os resultados do processo de projeto foram sintetizados em dois painéis de formato preestabelecido e, a seguir, apresentados e discutidos por uma comissão de professores do curso de Arquitetura do IST, sem a presença dos alunos, para a atribuição das notas finais (10).
Os atores do processo de projeto
Partindo da premissa de que o projeto de arquitetura envolve também elementos não-humanos, para o acompanhamento do projeto relâmpago buscou-se identificar aqueles cujas agências podem ser consideradas, a priori, as mais relevantes neste processo:
a) o tema do trabalho e seu ineditismo, associado às características do ambiente lunar;
b) os estudantes, cujas opiniões, comportamentos, ações e interações com a equipe e com os professores podem produzir desvios ou deslocamentos e modificar o fio condutor do processo.
c) os professores, que orientam segundo uma (teórica) superioridade em termos de experiência profissional e com grau de influência no trabalho dos alunos, que depende do estereótipo dado a cada professor pelos alunos (“exigente, chato, prático, teórico”), do comportamento do docente frente às ideias apresentadas pelos grupos e da formação e área de atuação de cada um.
d) as equipes, entendidas aqui como um só ator; dito de outro modo, considera-se que cada equipe é um conjunto de indivíduos que age de modo a configurar uma única proposta.
e) os objetos e ferramentas de apoio, salas, mesas de trabalho, bancos, quadro negro e branco, papéis, lápis, lapiseiras, canetas e computadores, entre outros.
Assim como estes, outros atores também atuaram neste coletivo e poderiam ser aqui elencados. Entretanto, foi necessário estabelecer um limite para a adequação ao espaço deste trabalho.
Observando a ciência em ação: o processo de projeto em equipe
De modo análogo à experiência realizada por Bruno Latour (11) que seguiu os cientistas em ação, os atores do Projeto Relâmpago foram seguidos com o propósito de (tentar) desvendar o que estava por trás das decisões de um projeto de arquitetura para uma Colônia Lunar.
Pressupondo-se que acompanhar os trabalhos de todas as equipes seria inviável e ineficaz, partiu-se da seleção aleatória de três grupos para serem seguidos durante os seis dias de trabalho em ateliê, sem que o observador fosse identificado. Ou seja, foi realizada uma observação não participante e não identificada para que os membros dos grupos não mudassem de atitude diante do observador. Seguindo o projeto em ação, a observação acompanhou as atividades das equipes para tentar identificar os entrelaçamentos do coletivo em questão e desmitificar a ideia de que somente as “mentes brilhantes” de cada equipe seriam as responsáveis pelas (também brilhantes?) soluções de projeto.
Vale ressaltar, conforme destaca Latour (12)em um trecho da simulação da conversa entre um professor e um estudante, que a TAR não é uma teoria a ser aplicada em uma pesquisa:
Aluno: Bem, sim. Tenho de lhe dizer que tenho dificuldades para aplicar a Teoria do Ator-rede (Actor-Network Theory – ANT) em meu estudo de caso sobre as organizações.
Professor: Não me surpreende. Ela não é aplicável a coisa alguma.
Aluno: Mas nós aprendemos... quero dizer... ela parece ser bastante importante por aqui. Você está dizendo que ela é realmente inútil?
Professor: Ela pode ser útil, mas apenas se não for “aplicável” a qualquer coisa.
Aluno: Desculpe-me, mas você não está tentando me pregar uma espécie de peça Zen, está? Devo alertá-lo, sou apenas um doutorando em estudo das organizações, então não espere... Além disso, não estou muito a par da produção francesa; apenas li alguns dos Mil Platôs, mas não os entendi muito bem...
Professor: Desculpe-me. Eu não estava tentando fazer nenhuma gracinha. Apenas dizia que a ANT é, antes de tudo, um argumento negativo. Ela não diz nada de positivo sobre seja lá o que for.
Aluno: Então, por que ela é chamada de “teoria”, se ela não diz nada sobre as coisas que estudamos?
Professor: Ela é uma teoria, e penso que uma teoria forte, mas sobre como estudar as coisas, ou antes sobre como não estudá-las. Ou ainda, sobre como permitir que os atores tenham algum espaço para se expressarem.
Neste sentido, entende-se que a TAR subsidia a entrada pela “porta dos fundos” do processo de projeto. Ou seja, no lugar de analisar o produto final entregue pelos estudantes ao final de uma semana de trabalho (algo acabado, definitivo, inerte), buscou-se seguir as trilhas percorridas pelas equipes.
Segundo os entendimentos da TAR, o pesquisador deve se deixar levar pelo (e no) coletivo observado, registrando o maior número de informações e ações dos atores humanos e não-humanos envolvidos, de modo a tecer uma narrativa. Essa narrativa deve ser encarada, portanto, como uma (dentre várias possíveis) a ser realizada durante o desenvolvimento do Projeto Relâmpago.
Para a condução deste trabalho, cada equipe recebeu um número genérico e não houve identificação nominal dos estudantes e dos professores.
Primeiros passos
Na equipe 1 as discussões iniciais foram teórico-conceituais. As questões que envolvem as características da superfície lunar foram debatidas sobre a mesa com base em croquis elaborados à mão – a reflexão-na-ação. No primeiro dia de trabalho observou-se que os desenhos e os argumentos apresentados pelos conferencistas direcionaram significativamente os debates. O computador foi utilizado para esclarecer eventuais dúvidas e para direcionar o desenvolvimento dos trabalhos.
Foi identificada uma liderança, formada por dois alunos, que não se limitava à gestão do grupo, mas que assumia a responsabilidade de concatenar ideias e de avaliar os conceitos discutidos, descartando alguns, priorizando outros e definindo caminhos a serem seguidos. Essa liderança influenciou, inicialmente, a participação dos demais membros do grupo, que emitiam poucas opiniões e, em diversos momentos, eram meros espectadores.
Na equipe 2, a condução do trabalho se deu de modo distinto do primeiro grupo em termos da participação dos estudantes. Não havia um líder e nem uma superioridade de discursos. O foco da discussão também se direcionava para os desenhos produzidos no momento, mas a configuração das mesas de trabalho indicava que a opinião de todos os elementos do grupo tinha equivalência. As controvérsias se davam, assim, acerca do problema ainda em seu estado bruto, sem pormenorizar as soluções. O coletivo latouriano se mostrava presente: o computador e a internet tiveram atuações importantes nas tomadas de decisão; eram eles que respondiam às dúvidas surgidas durante as discussões. Com o tempo exíguo, havia pouco lugar para suposições ou imaginações. O embasamento proveniente das palestras e das pesquisas na Internet contribuiu para o estabelecimento dos princípios norteadores do projeto e para a definição dos argumentos e conceitos a serem desenvolvidos.
A equipe 3 se distribuiu em torno da mesa e utilizou um painel (de papel) onde desenhavam, escreviam e discutiam – a reflexão-na-ação. Havia um líder para responder pelas tarefas de organização e gestão do grupo – enviar e-mails, agendar as reuniões. Contudo, nas discussões relacionadas ao tema e ao processo de projeto não houve uma liderança explícita: todos os membros do grupo participaram de forma igualitária. Ao fim da reunião do primeiro dia foi acordado que, no dia seguinte, todos os integrantes deveriam levar alguma contribuição acerca do tema e do que foi discutido em conjunto.
Desenvolvimento do projeto: seguindo as trilhas, desatando os nós.
As discussões na equipe 1 centraram-se, inicialmente, nos membros mais velhos do grupo, especialmente no líder. As conversas direcionaram-se para a busca de um conceito, uma “ideia central” a ser explorada pelo grupo. A partir do momento em que as colocações pessoais começaram a tomar corpo, surgiram as primeiras controvérsias. Os desenhos à mão (croquis) davam continuidade ao fluxo de pensamento – o fazer é pensar (13) e a reflexão-na-ação – e passaram a atuar como porta-vozes do pensamento de cada estudante. Para desatar os nós (14) e dar seguimento aos seus argumentos, cada integrante buscou arregimentar novos aliados. Mais especificamente, foi a presença dos professores (que para os estudantes eram os “donos da sabedoria” e do “saber arquitetônico”) na discussão que modificou significativamente a configuração da equipe. A liderança, antes formada por dois estudantes, que traduziam as ideias da equipe de modo subjetivo e parcial, passou a ser exercida por somente um deles. Assim, o coletivo em questão passou a ser mais “simétrico”, não pendendo somente para o lado dos antigos líderes. A atuação dos professores desatou os nós, estabilizou a rede e deu aos demais integrantes do grupo (incluindo um dos antigos líderes) uma “voz oposta” à do ainda líder.
Após três dias de trabalho a equipe definiu o conceito que iria seguir e defender: a cratera, tomada como o sítio que abrigaria toda a colônia lunar. A partir de então, a discussão se direcionou para a defesa e a delimitação dos pontos-chave da proposta. Novas questões surgiram: eram os “discordantes”, representados por simulações de perguntas que poderiam vir a ser realizadas por um professor no momento da apresentação final. Houve, contudo, um consenso quanto à impossibilidade de se responder a todas as questões eventualmente formuladas, tanto pela complexidade do tema quanto pelas características pouco conhecidas do sítio em questão. Estabilizadas estas (possíveis) controvérsias, seguiu-se a trama do projeto.
O computador passou a ter uma maior atuação, com a presença incondicional dos equipamentos portáteis. Na mesa de trabalho eram eles os suportes para a materialização da proposta final, tanto para a elaboração dos desenhos em plataformas específicas quanto para ser, a partir daí, a plataforma onde se hospedava o painel de discussões (até então o painel era em um papel sobre a mesa). O trabalho passou a ser de cada membro para a equipe, onde a soma da contribuição de cada um era o que garantiria a composição do resultado final. A partir daí, a trilha foi percorrida de modo linear, com um único objetivo em questão: a formatação dos painéis para a apresentação final.
A Equipe 2 desenvolveu seu trabalho a partir da discussão sobre um modelo tridimensional e de debates abertos e interativos. O modelo (maquete conceitual) foi elaborado com pedaços de algodão e atuou como porta-voz do grupo; isto é, um ator não-humano que falava pelo grupo e traduzia os conceitos e ideias discutidos pelos integrantes da equipe. Este modelo potencializou o diálogo com os professores, que passaram a orientar o trabalho tendo a maquete como pano de fundo.
O pensamento reflexivo sobre o modelo conceitual – a reflexão-na-ação – levou a equipe a definir uma ideia básica para o desenvolvimento e a defesa da proposta. Associando a vida de uma comunidade na atmosfera lunar com a vida das formigas em um formigueiro, o grupo estabeleceu um ponto de partida para arregimentar aliados. Como reforço de argumento foi adotada a estratégia de “atacar por dois lados”; ou seja, de estabelecer dois caminhos distintos para alcançarem o mesmo objetivo. De um lado produziram um texto explicativo, denominado pelo grupo de memorial; de outro lado elaboraram desenhos com vistas a dirimir as dúvidas dos avaliadores quanto aos problemas técnico-construtivos inerentes à colônia lunar. Neste caso, os professores atuaram no sentido de tentar fazer com que a equipe conseguisse sintetizar as discussões e concatenar todas as ideias em torno da materialização da proposta.
Na equipe 3 as discussões prosseguiram tendo como principais atores os estudantes. As primeiras controvérsias surgiram antes de qualquer esboço de projeto. A equipe questionou o próprio enunciado do projeto, sobretudo em relação a dois aspectos:
- as questões éticas envolvidas;
- as consequências de um investimento de grande vulto neste projeto em um período que Portugal (e a Europa como um todo) atravessava uma grave crise político-econômica.
Não existia mais a presença de um líder na gestão da equipe. Os desenhos rarearam e os argumentos favoráveis e contrários à implantação de um projeto lunar lutavam para arregimentar novos aliados.
O “ir ou não ir à lua” para instalar uma comunidade se tornou o principal embate a ser resolvido, o que gerou incertezas na equipe e resultou em uma batalha sem vencedores, com um acordo sobre a inexistência de condições suficientes para realizar um projeto de arquitetura na superfície lunar.
Fim de linha: os produtos finais
Considerando que todo e qualquer projeto de arquitetura possui infindáveis soluções, infere-se que poderão existir, também, inúmeras modificações, o que poderia tornar também infindável o próprio projeto. No entanto, invariavelmente, há um prazo final estabelecido para a entrega do projeto (seja essa entrega parcial ou final).
Nesse sentido, as controvérsias surgidas em cada equipe durante o processo de projeto da Colônia Lunar precisaram ser superadas para que o prazo final de uma semana fosse cumprido. Assim, o trecho final da trilha percorrida pelas equipes apresentou, de modo geral, poucos nós a serem desatados. A maioria dos atores tendia a caminhar na mesma direção, com o mesmo destino: a “conclusão” do projeto para a apresentação final.
Apesar do resultado final (o projeto propriamente dito), analisado do ponto de vista qualitativo, não ter sido relevante para esta investigação, considera-se que foi esclarecedor e ilustrativo resultado das atuações dos atores envolvidos.
Na equipe 1 os computadores foram os responsáveis por dar o direcionamento inicial do projeto, por diminuir o número de reuniões presenciais e por proporcionar uma boa apresentação final. Divididas as tarefas para a elaboração dos painéis finais, a essa altura já não se distinguia tão de imediato a presença do líder, que se fundia ao grupo na elaboração de uma tarefa. A liderança só foi identificada novamente no momento em que se discutia, na tela de um computador, a formatação final do trabalho.
A equipe 2, que até então atuou em conjunto, a dois dias da entrega final foi dividida em função das tarefas a serem feitas individualmente. Os alunos se ausentaram da sala durante quase dois dias e as tarefas foram executadas e compartilhadas remotamente. A discussão da montagem do painel final foi realizada na sala, na véspera da entrega.
Na equipe 3, não foi apresentado um projeto de arquitetura, mas dois textos que atuaram como porta-vozes daquilo que a equipe passou a denominar manifesto; o consenso surgiu, portanto, de um “não consenso”: a inexistência de projeto ou de uma intenção projetual. O interesse em contar a história dos debates fez com que o grupo produzisse dois textos que elucidavam os posicionamentos da equipe: por um lado a inviabilidade técnica de se elaborar um projeto de arquitetura sem se conhecer a fundo o sítio e suas características físico-ambientais; por outro lado o questionamento dos investimentos necessários à implantação da colônia lunar.
Considerações finais
Elaborar um projeto de arquitetura no ambiente lunar no prazo de uma semana extrapola as condicionantes de um projeto em que o sítio e o cliente são conhecidos e que possui um prazo de entrega mais amplo.
O acompanhamento do Projeto Relâmpago buscou subsídios teóricos nos pressupostos da Teoria Ator-Rede e no conceito de reflexão-na-ação a fim de analisar o processo de projeto dos estudantes, e não o produto final, como ocorre habitualmente na análise de um projeto de arquitetura. Se, de um lado, a reflexão-na-ação contribuiu para a compreensão do processo de produção do conhecimento durante o desenvolvimento do projeto, por outro a TAR possibilitou a confirmação de que as decisões projetuais, em uma perspectiva sociotécnica, nem sempre são provenientes dos atores humanos. Professores e estudantes deixam de ser os únicos protagonistas do processo projetual e passam a compartilhar essa responsabilidade com os demais atores que agem na trama do projeto – os não-humanos.
Neste sentido, as máquinas (computadores, telefones celulares, tablets), os textos e os desenhos, entre outros, atuaram de modo a desviar a trilha inicialmente percorrida pelos estudantes e a influenciar nas decisões que, em última instância, foram consolidadas no produto final do Projeto Relâmpago.
Assim, na equipe 1, o modo como as controvérsias surgidas ao longo do processo foram equacionadas e atuação dos não-humanos nas tomadas de decisão foram bastante evidentes na configuração do produto final. Um bom exemplo dessa atuação foi o momento ilustrado na Figura 7, em que cada estudante tinha à sua frente um computador portátil e estava totalmente “imerso” na tela. Contudo, em certos momentos havia pausas para discussões em torno do que cada um deles pesquisava, desenhava ou escrevia – ou seja, havia uma interação entre o coletivo latouriano.
Observou-se ainda que a condução do projeto segundo o caminho inicialmente sugerido pelos supostos líderes encontrou as primeiras barreiras já no contato inicial com os professores. Desestabilizada a rede inicial e desviada a discussão para as questões levantadas pelos professores, um dos líderes não arregimentava aliados e os demais participantes do grupo se agrupam em torno das ideias dos professores. No fim, a proposta final é fruto da composição/consolidação das opiniões distintas do (ainda) líder e do restante da equipe.
Na equipe 2, a valorização do processo de projeto, em detrimento do resultado final, foi visível no produto final. As controvérsias surgidas durante o processo de desenvolvimento do projeto foram estabilizadas e a apresentação final evidenciava o trabalho da equipe, e não a soma de esforços individuais ou a “maestria” de um estudante. O coletivo “estudantes- artefatos” gerou um produto final em que a atuação de seus atores e o debate das controvérsias geradas por e na rede é que consolidou a proposta final apresentada.
Na equipe 3 os atores humanos se sobressaíram em relação aos não-humanos. Desenhos, pesquisas no computador e apontamentos das palestras não interessaram muito. As controvérsias estabelecidas por meio da exposição de ideias dos estudantes foram, desde o início, a questão principal. O manifesto apresentado como produto final demonstrou, portanto, que a realização de uma pesquisa teórica e técnica nem sempre gera o produto final que se espera. Ao contrário, como no caso da Arquitetura e Urbanismo, pode gerar um produto que não é um projeto arquitetônico, seja pela verificação da inviabilidade técnico-construtiva ou mesmo por limitações que envolvem questões éticas e morais.
Ao final da observação do trabalho das três equipes foi possível constatar que o processo de lidar com o problema, a reflexão sobre o tema, a formulação das ideias e a gestão do tempo disponível e das diferenças pessoais foram mais importantes do que o projeto em si (resultado final). O reconhecimento da importância didática dos momentos de discussão e de exposição de ideias gerou, de um modo geral, projetos que superaram as expectativas iniciais e que reforçaram a tese de que o ensino de projeto de arquitetura não deve ser baseado apenas na solução de problemas triviais e em soluções previamente antecipadas e advinhas de “ideias geniais”. Ao contrário, deve ser incentivada a tomada decisões em situações de incerteza, a proposição de soluções diante dos problemas que surgem no decorrer do projeto e a constante reflexão sobre as implicações das opções em jogo.
notas
NE – O presente trabalho é parte da investigação realizada como bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PDSE/CAPES) no Mestrado Integrado em Arquitetura do Instituto Superior Técnico de Lisboa, Universidade de Lisboa (IST/UL), no ano letivo de 2012-2013.
1
CARVALHO, Ramon. Cartografando o processo de projeto no ateliê de ensino de projeto de arquitetura.2014. 130 f. Tese (Doutorado em Arquitetura). Programa de Pós-graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
2
SCHÖN, Donald. Educando o Profissional Reflexivo. Porto Alegre: ArtMed, 2000.
3
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação. São Paulo, Editora UNESP, 2000.
4
LATOUR, Bruno. A Esperança de Pandora. Bauru/SP, EDUSC, 2001.
5
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação. São Paulo, Editora UNESP, 2000.
6
Idem
7
CALLON, Michel. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallops and the fishermen of St Brieuc Bay. In LAW, John. Power, action and belief: a new sociology of knowledge? London, Routledge, 1986, pp.196-223.
8
SCHÖN, Donald. Educando o Profissional Reflexivo. Porto Alegre, ArtMed, 2000.
9
No IST segue-se o calendário europeu bianual, em que o primeiro semestre inicia-se em um ano e o segundo semestre é no ano subsequente.
10
SENNETT, Richard. O Artífice. São Paulo: Rio de Janeiro: Record, 2009.
11
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação. São Paulo, Editora UNESP, 2000.
12
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, EDUFBA-EDUSC, 2012.
13
SENNETT, Richard. O Artífice. São Paulo/Rio de Janeiro, Record, 2009.
14
Neste trabalho são entendidos como nós ou pontos de parada de uma trama configurada pelos relatos e traduções de cada estudante do que entendiam ser o problema apresentado. A partir destes nós e desta trama vários caminhos poderiam ser seguidos e outras controvérsias serem formadas.
sobre os autores
Ramon Silva de Carvalho é doutorando em arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor do Centro Universitário Augusto Motta-RJ. Arquiteto do Quadro Permanente da prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, com mestrado pela UFRJ (2005), especialização pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/2001) e graduação pela UFJF (2000). Foi professor substituto na UFRJ (2005/2006) e na UFJF (2000/2002).
Teresa Valsassina Heitor é professora titular de arquitectura do Instituto Superior Técnico (IST), Universidade Tecnica de Lisboa, onde atua também como Coordenadora do Programa de Mestrado Integrado em Arquitetura e lidera uma equipe de investigação especializada em Space-Use Analysis , com foco principal em instalações educacionais e ambientes de aprendizagem inovadores.
Paulo Afonso Rheingantz é arquiteto (1976), doutor em engenharia de produção (Universidade Federal do Rio de Janeiro-2000), pós-doutorado na California Polytechnic State University, San Luis Obispo (2008). Professor associado aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com atuação no Programa de Pós-graduação em arquitetura (Teoria e Prática do Ensino de Projeto e Avaliação de Desempenho do Ambiente Construído).