O rio como gerador de paisagem
A importância da presença dos rios no tecido das cidades ou de um país é ressaltada por alguns aspectos relevantes. O papel social dos rios é tão importante que, mesmo poluídos ou degradados, grandes ou pequenos, são utilizados para fins cerimoniais, circulação, comércio, ou mesmo recreação e lazer, por que a água, além de exercer enorme poder de atração, ser fonte de vida, conforto e deleite, é também símbolo de poder e de renascimento, de acordo com Noll (1).
Os rios sempre tiveram destacada e essencial importância na estruturação e construção das paisagens urbanas e do desenho urbano de inúmeras cidades, e consolidaram uma conexão entre forma e uso culturalmente exclusiva. Esse desenvolvimento urbano está precedido, quase sempre, de peculiaridades do sítio paisagístico, de algumas condições ou acidentes geográficos relevantes (2). Assim, no cruzamento de duas ou mais linhas, manifestaram-se as probabilidades de agrupamento, de construção e o desenvolvimento de signos de uma consciência humana que lhes ordenou e orientou. As vias navegáveis tiveram, então, mais do que os caminhos terrestres, a primordial atribuição de assegurar a subsistência e a proteção da emergente associação humana, como ocorreu, dentre muitos outros, com o Rio Tigre, em Bagdá.
O Rio Tigre e a cidade de Bagdá
O Rio Tigre, que flui desde os Montes Tauros, na Anatólia, Turquia, através do Iraque, em geral na direção sudeste, ao longo de 1800 quilômetros -até unir-se ao Rio Eufrates, formando o baixo curso de águas denominado Shatt al-Arab a, aproximadamente, 100 km do Golfo Pérsico, e dando origem a um amplo delta-, apresenta condições ideais para promover rica paisagem cultural, não fossem os históricos, eternos e atuais conflitos de ordem social, econômica e, principalmente, política. Ambos rios definiam a antiga Mesopotâmia, e entre eles estendia-se um grande jardim que, por sua magnífica beleza, foi considerado o paraíso, berço das mais antigas civilizações conhecidas, as primeiras com mais de 5000 anos de história, cujos conhecimentos culturais e científicos incorporaram-se à cultura ocidental por meio de gregos e romanos.
Na Antiguidade, muitas das grandes cidades da Mesopotâmia se estendiam às margens de um dos dois rios, ou ao menos perto deles, aproveitando-se de suas águas para os sistemas de irrigação de culturas da civilização suméria. Assim, nos limites e bordas do Rio Tigre encontra-se Bagdá, construída ad nihil entre 762 e 766, originalmente na margem oeste desse rio. Três muros circulares e concêntricos fechavam Bagdá -o nome persa da localidade- e ainda que seu nome original fosse Madinat as-Salam -Cidade da Paz, ou ainda Cidade da Saúde, conforme (3) -, era popularmente conhecida como Cidade Redonda. Sua expansão gradual fez com que se estendesse além de seus muros originais e para a margem leste do rio, nomeando-se essa, Rusafah e a outra, a oeste, Karkh, suas duas metades sendo unidas por uma ponte sobre barcos. Durante os Séc. 8 e 9 Bagdá era o centro de importantes rotas comerciais entre o leste e o oeste e seus impressionantes edifícios e magníficos jardins outorgaram-lhe a reputação de mais rica e formosa cidade do mundo.
Mas na última metade do Séc. 9 o poder califal debilitou-se devido a lutas internas que culminaram com uma guerra civil. No Séc. 13 Bagdá foi invadida pelos mongóis e muitos edifícios e o sistema de irrigação foram destruídos, contribuindo para o seu declínio. Em 1534 a região tornou-se parte do império otomano e a cidade caiu, durante séculos, na obscuridade e no esquecimento. No início do Séc. 20 ocorreram modestas melhorias, construindo-se alguns hospitais e escolas e o auge da exploração de petróleo, nos anos de 1970, trouxe crescentes riquezas ao país, e a cidade experimentou então impressionante processo de desenvolvimento, com a construção de novos sistemas de infraestruturas de água e de esgoto e a construção de uma rede de autovias e de um novo aeroporto. Mas provavelmente esta cidade moderna não seja tão impressionante e fascinante como aquelas velhas imagens palimpsestas de Bagdá, que podem ser evocadas por pensamentos imaginários.
Frank Lloyd Wright em Bagdá
Anterior a esse último período de crescimento, ainda sob a monarquia de Faisal II, que ocorreu entre 1953 e 1958 -quando um golpe de estado a depôs-, estava em execução o segundo programa plurianual de desenvolvimento para a modernização de Bagdá a partir de um Plano Diretor desenvolvido entre 1954 e 1956 pelos arquitetos e urbanistas ingleses Minoprio, Spencely e Macfarlane, no qual foram selecionadas áreas urbanas para a construção de residências, centros de saúde e de educação, além de edifícios cívicos e culturais.
Para contribuir na construção dessa Bagdá moderna foram convidados arquitetos de renome internacional, especialmente arquitetos europeus, e entre os que efetivamente expressaram seu desejo de trabalhar no Iraque constavam Alvar Aalto, então contratado para projetar um museu de artes, Le Corbusier, para projetar um estádio olímpico e um complexo esportivo, Walter Gropius, para projetar a universidade, Gio Ponti para projetar o edifício central do Ministério do Desenvolvimento. Entre estes, também se encontrava Oscar Niemeyer, que declinou do convite afirmando não trabalhar para regimes opressivos, conforme Marefat (4). Todos os projetos foram elaborados dentro da tradição da Arquitetura Moderna dos anos 1950 e 1960, similares a outros projetos desenvolvidos para diferentes países de distintos climas.
Frank Lloyd Wright também foi convidado para projetar na cidade iraquiana, de modo a auxiliar em sua transformação como símbolo de prosperidade e de desenvolvimento que, na década de 1950, desfrutava este país árabe rico em depósitos de petróleo.
A criação de paisagem de águas como metáfora de cultura
Os esforços para proporcionar caráter cultural às margens fluviais históricas podem ser comprovados através das atuações arquitetônicas, paisagísticas e urbanas projetadas nos limites e bordas do Rio Tigre, em Bagdá, por Frank Lloyd Wright, que aproveitou o convite oferecido para construir no Iraque, para dedicar seus projetos a Suméria, Isin, Larsa e Babilônia como antigo lugar de nascimento da civilização, e para mostrar que uma grande cultura merece não apenas uma arquitetura contemporânea mas, principalmente, uma arquitetura própria, autóctona.
Seus projetos, nunca executados, diferem dos projetos dos demais arquitetos estrangeiros em forma, intenções e referências. As bases geométricas de seus projetos recuperavam o plano original circular de Bagdá, com as elevações de terra aplanadas e naturais que animavam a arquitetura mesopotâmica formando-se na subestrutura dos principais projetos. Wright logo transformaria seu simples encargo para uma Ópera num elaborado plano para um Centro Cultural para a Grande Bagdá, projetando uma grande e complexa cidade que previa um museu para esculturas monumentais e arqueológicas, uma galeria de artes contemporâneas, um grande bazar, a Esplanada do Rei Faisal, duas pontes, uma grande e outra pequena, perfiladas por comércios, estacionamentos circulares e aterraçados a modo de zigurat, um monumento dedicado a Harun al-Rashid, um jardim botânico, um parque zoológico, um cassino e um anfiteatro, um campus universitário e torres de radio e televisão, permeados por uma paisagem antrópica que ocuparia lugar preconcebido dentro do domínio da arquitetura, com grandes jardins providos de espelhos d’água, fontes e esculturas, confirmando sua visão holística da arquitetura integrada à paisagem, tudo isto tendo ciência de que um museu de artes já fora oferecido para ser projetado por Alvar Aalto e a universidade, por Walter Gropius.
Ademais, fora deste complexo cultural, Wright projetou um novo edifício para os Correios e Telégrafos a ser construído no centro histórico da cidade. Para Wright, esse edifício deveria ser um dos mais bioclimáticos dentre os edifícios urbanos de Bagdá porque igualmente econômico e flexível, adequado ao extremo calor da região, sereno em estilo e orgânico em caráter, digno de ser chamado arquitetura "moderna" (5).
A Ópera que Frank Lloyd Wright deveria projetar tinha sua implantação prevista para um terreno de aproximados 9000 m2, situado no interior deste centro histórico de Bagdá e envolveria a demolição de muitos edifícios, mas por sua sugestão esse edifício seria construído fora do centro urbano, na grande ilha do Rio Tigre e com essa área ampliada e relativamente isolada obteve as condições para propor a visão de um complexo cultural e educacional digno de um rei, provendo a cidade com um novo foco e escala profundamente arraigados aos princípios históricos de Bagdá.
Ao contrário da maioria de seus projetos, aqui Wright não cultivou o hábito de se curvar à natureza, e iniciou seus projetos redefinindo antropicamente os limites e bordas da ilha -propondo a redução de seu tamanho e elevando-a para produzir a base de um zigurat, ligeiramente protegida de possíveis subidas do nível do rio e permitir, assim, sua anexação ao desenvolvimento urbano- para conformar um grande plano geral de idealização própria, e projetou uma área maior do que a ilha ao anexar a Península de Karradah, reservada à universidade. Esse Plano para a Grande Bagdá foi um ensaio de urbanismo arqueológico -retrospectivo, imaginativo e reconstrutivo- metaforicamente espelhando, numa reinterpretação coerente de seu significado mais fundamental e nível estrutural, em outro tempo e em outro lugar não muito distante, da cidade de Abu Jafar al-Mansur, na qual a universidade circular alcança forte distinção urbana, e como a Cidade da Paz, simboliza a paisagem suprema de valores paradisíacos (6).
Partindo da Praça Tahrir, no coração do centro histórico de Bagdá, da qual irradiam as principais ruas da cidade, Wright propôs uma larga avenida direcionada à Meca e convenientemente denominada Esplanada Rei Faisal que, como acesso principal e direto, atravessaria o Rio Tigre sobre uma ponte baixa que se bifurcaria pouco antes da chegada à ilha. A via direcionada à Meca chegaria à Ópera, e a outra, orientada a sudeste, atravessaria a ilha, passando ao lado do anfiteatro, pelas cercanias da Galeria de Artes e do Museu de Esculturas e, por outra ponte maior, seguiria ao Campus Universitário, na Península de Karradah.
A ampla e bifurcada ponte foi projetada um pouco acima do nível normal da lâmina de água, o suficiente para não obstar a passagem de pequenos barcos ou canoas, e a outra, sobre o largo braço do rio, que permitiria a passagem de embarcações maiores, sofre a meio caminho entre a ilha e a península, sobre as águas do rio, um alargamento em forma convexa e interseccionada para abrigar um pequeno jardim, metáfora perspicaz dos ancestrais jardins suspensos da Babilônia. Ao longo de toda a Esplanada, na via transversal à ilha que conduz à península e sobre as pontes projetadas com amplos passeios como forma de privilegiar seu uso pelos pedestres, localizar-se-iam, em intervalos equidistantes, numerosas passagens subterrâneas e rampas de entradas e saídas e quiosques comerciais.
A via de acesso à península conduziria à extensa, circular e perimetral fortificação do Campus Universitário, uma via espiralada de três níveis que reflete, em sua forma, o plano original da Cidade Redonda e tem como modelo os antigos zigurates recuperados do passado longínquo, aludindo às antigas heranças assíria e mesopotâmica. Serviria como estacionamento e via de comunicação entre os distintos edifícios semi-circulares das faculdades que foram projetados junto à circunferência interna desta via de circulação, e a biblioteca, o único edifício projetado externamente ao estacionamento-zigurat.
O espaço central desse campus, com a coerência e a singularidade do jardim central da Cidade da Paz, seria um grande parque reservado exclusivamente para pedestres, no qual transcorreria a vida universitária, com um espelho d’água circular, em cuja linha perimetral estariam dispostos -em metáfora ao palácio real e à mesquita com sua cúpula que definiam o centro aberto da Cidade Redonda- os estúdios de rádio e televisão, personalizados por seus três esbeltos minaretes. Esses estúdios interligar-se-iam triangularmente por esplanadas sutilmente elevadas em relação ao nível das águas do lago, e no centro dessa triangulação, chafarizes jorrariam altos jatos de água.
Wright projetou também, tanto na península como na ilha, embarcadouros para fomentar o uso de canoas ou barcos como um agradável e romântico meio de transporte alternativo aos automóveis que, apesar de muito admirá-los, considerava o mais crítico problema urbano, devido aos enormes congestionamentos de tráfego que geram nas cidades. Ainda junto à universidade, Wright pensou na implantação de uma proeminente mesquita provida de uma cúpula cônica e um minarete, que podem ser vistos tanto na planta do conjunto projetado para a cidade, quanto na perspectiva exclusiva do Campus Universitário, não aparecendo nem na perspectiva aérea do Plano para a Grande Bagdá, nem no projeto final. Essa mesquita tampouco aparece na grande maquete feita para a exposição Frank Lloyd Wright: de dentro para fora, realizada em 2009 no Museu Guggenheim de Nova York.
O mesmo princípio organizacional -o zigurat, a forma arquitetônica ancestral anteriormente já utilizada por Wright em outros projetos ocidentais como um meio moderno de acesso de veículos e estacionamento e uma combinação consciente entre arquitetura e paisagismo- foi também usado na ilha, que Wright preferiu renomear como Ilha de Edena, em referência ao pântano ao sul de Bagdá onde, crê-se, historicamente estaria localizado o Jardim do Éden. Conformada, aplanada e consolidada em sua forma hidrodinamizada e larvar, a Ilha de Edena, projetada paisagisticamente com espelhos d’água, fontes, alamedas e pomares exuberantemente ornados com cítricos, também suporta o orbicular jardim de Adão e Eva, o Jardim do Éden, totalmente dedicado aos pedestres, que a sudoeste dá forma aos limites e bordas da ilha.
A tectônica Cidade da Paz é, à sua imagem e semelhança, transfigurada neste jardim moderno, sua muralha externa estabelecendo-se no passeio circular, largo e tectônico às margens do Rio Tigre e abrigando diversas estátuas que enaltecem outros povos e nações, juntas a espelhos d’água circulares ou semicirculares que, assim como a lâmina de água fluvial, permitem suas vívidas imagens reflexas. O espaço intersticial entre os muros concêntricos, com densificadas edificações da cidade de al-Mansur, foi exemplarmente substituído pela densa vegetação com árvores frutíferas de todos os climas, em círculos concêntricos acessados por caminhos também concêntricos.
Esse espaço foi seccionado por uma via igualmente orientada à Meca, que tem seu ponto médio nas duas estátuas monumentais que representam as figuras de Adão e Eva, cada uma sob uma cúpula de água formada por um consistente jorro em meio a lâminas circulares. Esse jardim estava contrabalançado na afilada extremidade oposta, a montante, por um monumento em homenagem ao califa Harun al-Rashid, uma estátua de placas metálicas douradas sobre estrutura de aço, que deveria se elevar a uma altura de pouco mais de 90 m e direcionada ao centro histórico da cidade, sobre um zigurat executado em concreto e também revestido com placas metálicas, como uma pequena torre de Babel, claramente inspirado no minarete da Grande Mesquita de Samarra (847-61), cidade situada a aproximados 10 km ao norte, construída no Séc. 9 para, por um breve intervalo, relocar Bagdá como a capital do califado abasside. Pensado para ser um símbolo de Bagdá, apresentaria esculturas em relevo de uma procissão de camelos montados subindo aos pés do califa, e visaria representar a continuidade da identidade cultural fundamentada num passado histórico e rico.
A avenida que liga esse monumento ao Jardim do Éden foi tratada como uma via cultural arborizada, na qual, à pequena distância dessa estátua, Wright propôs a construção de uma galeria de artes iraquianas contemporâneas, como um edifício alongado e elíptico, no centro do qual um círculo protuberante estaria coberto por uma cúpula reticular de concreto e vidro. Sob a qual se pretendia que houvesse um espelho d’água rebaixado adornado por uma escultura, uma recorrente proposição nesse edifício -cujo projeto reapareceu como galeria para o departamento de artes no plano de Wright para a Universidade do Arizona, em 1959, conforme Marefat.
Mais adiante, do outro lado da avenida que conduz à universidade, projetou um museu dedicado às grandes esculturas arqueológicas, como uma estrutura longa e monumental sobre uma base alta. Sua entrada estaria flanqueada por dois imensos leões alados assírios e, tanto a galeria das artes como o museu, possuiriam clarabóias que propiciariam difusa luz a seus corredores internos. Entre essas duas expoentes estruturas, a ambos lados da via que conduz à Universidade, haveria, à esquerda, um anfiteatro e um cassino para gerar socialização e trazer à ilha aspectos da vida diária da cidade contemporânea de Bagdá. E à direita, prolongando-se até as imediações do Museu de Esculturas, um grande bazar. Seu objetivo seria proporcionar vitalidade comercial à ilha e que, de modo similar aos quiosques dispostos ao longe da esplanada e das pontes, consistia numa série de estruturas com cúpulas suportadas por uma parede de concreto contínua, gerando duas linhas ortogonais que contribuiriam para conformar um polígono de uso exclusivo de pedestres, com jardins e uma lâmina de água circular com alto chafariz.
A Ópera é um dos mais elaborados edifícios projetados por Wright. É uma luxuosa obra que se eleva de um lago artificial circular rodeado por um jardim, por sua vez circundado pelo estacionamento em forma de zigurat que reconfigura uma solene paisagem. De todas as intervenções projetadas na Ilha de Edena, é o principal ponto convergente, testemunha de sua criatividade, condensando e aprimorando as ideias introduzidas no projeto da universidade, e símbolo do continuado esforço em recriar a representação artística dentro de um desafiante ambiente tectônico (7). Propôs o acesso axial ao edifício pela Esplanada Rei Faisal. E no térreo, um pátio elíptico marca a entrada principal com rampas que chegam desde o estacionamento-zigurat e um acesso de serviço posterior para a entrada de equipamentos ao depósito, às coxias e aos camarins do teatro. Um túnel sob a principal estrutura da Ópera conduziria a um planetário, sobre cujo teto em forma de cúpula flutuaria o piso do teatro.
Apresentou a Ópera -uma estrutura circular rodeada por uma colunata etérea de alabastros ilusionisticamente representando cortinas atadas, coroada por um pináculo reticulado como se se tratasse de uma torre gótica, com placas metálicas douradas e que abrigaria uma estátua de Aladim vista contra o céu orquestrando os acontecimentos através da fricção de sua lâmpada maravilhosa, símbolo da imaginação humana. Essa estrutura também estaria marcada por um alto e afilado minarete, alegoria à espada de Maomé, similar aos minaretes alocados no centro do campus universitário. Propunha-se ser um edifício flexível para poder ampliar sua capacidade e servir como auditório cívico de convenções, celebrações públicas e grandes reuniões políticas.
O palco e a plateia da ópera conformam-se a partir de dois círculos intersecantes que recordam o revolucionário não executado projeto do Teatro Total, de 1927, de Walter Gropius. De modo similar ao Auditório de Chicago, de 1887, de Adler e Sullivan, cujo projeto contou com a colaboração do então estagiario Wright, apresenta uma estrutura de arcos elípticos escalonados, metáfora da lua crescente. Esses arcos originam-se sobre o proscênio, formando uma concha inclinada em direção ao palco, com o objetivo de, iniciando uma ampliada série de curvas como ondas orientadas à plateia, conduzir o som com perfeição, como uma extensão poética dos princípios acústicos envolvidos. Nesses arcos, suas aberturas circulares conteriam, cada uma, uma escultura de bronze em representação a personalidades dos contos das Mil e Uma Noites, importante literatura popular e nacional que Wright descreveu como fonte de energia visionária e didática. O maior desses arcos, o mais afastado do proscênio, prolonga-se ao exterior para transmitir a imagem metafórica do som ao ambiente. Incorpora-se ao espelho d’água circundante e configura, em ambos lados do edifício, uma série de cascatas escalonadas.
Para Levine, esse arco, que age como uma sinédoque de todo o projeto e que externamente estabiliza o edifício como um arcobotante gótico, tem analogias com o arco do Palácio dos Soviéticos, de 1931, de Le Corbusier. Recorda o também não construído auditório para Tallahassee, Florida, de 1956, de Walter Gropius, e traz à mente a Ópera de Sydney, de 1955-57, de Jorn Utzon, pela imaginária projeção e reverberação do som sobre a baía produzido por suas conchas de concreto expostas e entrelaçadas.
Conclusão
A monarquia do Rei Faisal teve sua trajetória interrompida por um golpe militar e o governo que a substituiu considerou os projetos do Plano para a Grande Bagdá anacrônicos, fantásticos, extravagantes e possivelmente identificados com a deposta monarquia. Tal avaliação trivializou o que poderia ter sido o supremo projeto da vida profissional de Frank Lloyd Wright, quiçá sua magnum opus. Transpondo a cultural mensagem implícita em sua obra para Bagdá, evidencia-se sua ímpar sensibilidade frente às oportunidades. Com sua visão futurista e capacidade aguda para reconhecer a herança cultural árabe que, para ele, incluía edifícios, objetos, as artes, costumes, hábitos sociais e a memória coletiva, perseguiu princípios e métodos que pudessem resistir ao tempo, ultrapassando as limitações do pós-modernismo para aprofundar-se no contexto histórico da cidade e evocar imaginativas reinterpretações (8). Seus projetos para Bagdá, impregnados de extremo desejo de não ser convencional e embebidos de elevada harmonia e unidade formal, de linguagem simbólica (9), resultaram em uma rara mescla de respeito ao passado e à tecnologia, e cristalizaram, na memória coletiva, a histórica cidade como uma vibrante capital digna de sua glória. A materialização dos contos das Mil e Uma Noites.
Esses projetos idealizados por Frank Lloyd Wright nos limites e bordas do Rio Tigre, propiciariam à cidade exponencial integração entre os consolidados espaços urbanos e as novas áreas objeto de intervenções, formalmente estabilizando o perímetro da Ilha de Edena, oferecendo, tanto nesta como na Península de Karradah, espaços livres de uso público como um oásis ou um jardim celestial formado por água, vegetação e arquiteturas, elementos já usados anteriormente com exemplar propriedade no jardim árabe histórico, e que amalgamariam a líquida paisagem do rio à tectônica paisagem da cidade.
notas
1
NOLL, João. Entre o liquido e sólido: paisagens arquitetônicas em limites e bordes fluviais. Blumenau, EDIFURB, 2010.
2
LAMPUGNANI, Vittorio; Magnaro, FISCHER; MESEURE, Anna. (ed.). Wohnen und arbeiten am Fluß: Perspektiven für den Frankfurter Osthafen. Frankfurt, DAM, 1992.
3
STIERLIN, Henri. El Islam desde Bagdad hasta Córdoba: las edificaciones de los siglos VII al XIII. Köln, Taschen, 2002.
4
MAREFAT, M. Wright’s Baghdad, in ALOFSIN, A. Frank Lloyd Wright: Europe and beyond. Berkeley, University of California, 1999.
5
Idem.
6
LEVINE, Neil. The architecture of Frank Lloyd Wright. Princeton, Princeton University Press, 1996.
7
JONCAS, Richard. Edifícios dedicados a las artes, in DE LONG, D. G. Frank Lloyd Wright y la ciudad viviente. Weil am Rhein, Vitra Design Museum, 1998.
8
MAREFAT, Mina. Wright’s Baghdad, in ALOFSIN, Anthony. Frank Lloyd Wright: Europe and beyond. Berkeley, University of California, 1999.
9
JONCAS, Richard. Edifícios dedicados a las artes, in DE LONG, David. G. Frank Lloyd Wright y la ciudad viviente. Weil am Rhein, Vitra Design Museum, 1998.
sobre os autores
João Francisco Noll é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, RS, possui mestrado em Educação: Ensino Superior pela Universidade Regional de Blumenau e doutorado em Modernidade Contemporaneidade na Arquitetura pela Escola Técnica Superior de Arquitetura da Universidade de Valladolid. Atualmente é sócio-proprietário da Neo Arquitetura Paisagismo Interiores, e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional de Blumenau, FURB.
Gisele Odebrecht Noll é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Regional de Blumenau e mestranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional na Universidade Regional de Blumenau. Atualmente é sócia-proprietária da Neo Arquitetura Paisagismo Interiores.