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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo reflete sobre estratégias de venda da “cidade ilusória”, analisando a publicidade sobre a produção habitacional em subúrbios ingleses, no início do século 20, e estratégias semelhantes promovidas no Brasil, voltadas para a classe média.

english
This paper reflects on strategies of selling the "illusory city", analyzing the publicity established on the housing production of English suburbs in the early twentieth century, and similar strategies promoted in Brazil, aimed at the middle class.

español
En este artículo se reflexiona sobre las estrategias de venta de "ciudad ilusoria," el análisis de la publicidad establecida en la producción de viviendas de los suburbios ingleses, y otras estrategias promovido en Brasil, se centraron en la clase media.


how to quote

FONSECA E SOUZA, Maressa; RIBEIRO FILHO, Geraldo Browne. Refletindo sobre o marketing urbano. A venda da cidade ilusória nos subúrbios ingleses e em condomínios fechados no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 202.00, Vitruvius, mar. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.202/6480>.

Introdução

“A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir”.
Ítalo Calvino (1)

Este artigo tem como propósito refletir sobre a produção e as estratégias de venda do que se chamou de “cidade ilusória”, realizada por meio de companhas publicitárias que estimulam a representação mental de um estilo de vida urbano, promovido como objeto de desejo. A produção habitacional feita para as massas é tomada para a análise em dois momentos e países distintos, sejam eles os contextos urbanos da Inglaterra no início do século 20, onde as estratégias de marketing foram fruto da aliança entre empreendedores imobiliários e empresas do setor de transporte coletivo, e as recentes intervenções promovidas pelo setor imobiliário no Brasil, voltadas principalmente para a classe média em consonância com o processo de financeirização da moradia (2). Embora os contextos sejam distintos, os recortes justificam-se pelas semelhantes estratégias imobiliárias utilizadas para a promoção dos empreendimentos e pela importância histórica e artística do material gráfico produzido pela empresa “London Urderground”, denotando a influência das representações simbólicas sobre a produção do espaço urbano.

Na Inglaterra, o material gráfico produzido sob a forma de cartazes, principalmente, visava promover o uso constante do metrô e as vantagens da vida distante dos tumultuados e desordenados centros urbanos, incentivando a mudança dos usuários para as unidades habitacionais recém construídas nos subúrbios (3). Já no Brasil, a construção de empreendimentos habitacionais voltados para a classe média, principalmente sob o formato de condomínios verticais, foi impulsionada pelas possibilidades abertas pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV. As estratégias de venda dos empreendimentos têm seu foco na promoção de um estilo de vida restrito aos apartamentos e às limitadas áreas de lazer, utilizando-se de diversos recursos de representação gráfica e arquitetônica em sua promoção, como maquetes digitais, animações, vídeos, stands de vendas em shoppings e simulações de apartamentos decorados.

1.1. A cidade problematizada

O planejamento urbano como campo de estudo e intervenção começa a se delinear a partir das análises e do enfrentamento dos problemas das cidades no contexto da Revolução Industrial, afinal, a sociedade industrial era urbana e tinha como horizonte a cidade, conforme Choay (4) afirmou. A Revolução Industrial foi seguida por uma expansão demográfica sem precedentes nas cidades europeias, fenômeno bastante expressivo naquele período em Londres. A cidade do século 19 começou a tomar forma própria, se tornando objeto de observação e reflexão – o estudo da cidade assumiu assim dois aspectos principais, sendo eles descritivos e políticos.

De um lado estavam aqueles que se ocuparam em descrever a cidade, entendendo o fenômeno da urbanização pela identificação de causas e efeitos, polemizando os problemas urbanos e caracterizando as cidades por metáforas patológicas – a cidade se tornara uma doença que deveria ser curada. Nesse sentido, surgiram relatórios e denúncias sobre a situação física e moral que vivia o proletariado urbano, contribuindo para a propagação de ideias sanitaristas que iriam influenciar as futuras intervenções urbanas. Na Inglaterra, foram delegadas comissões reais para realizar pesquisas sobre higiene na área urbana, publicando relatórios que informavam sobre as condições de vida nas grandes cidades, tendo como fruto a criação da legislação sobre trabalho e habitação do país.

Sob o aspecto político, estudiosos denunciavam a situação das cidades, como Engels (5) ao descrever as condições de vida dos trabalhadores da indústria na Inglaterra, a partir de suas observações em cidades como Manchester e Liverpool. Apontavam-se os contrastes entre os bairros habitados pelas diferentes classes, a segregação urbana, a monotonia das construções voltadas para as massas, a distância entre trabalho e habitação, dentre outros aspectos presentes na cidade industrial. Tais críticas eram alinhadas com a crítica global à sociedade industrial, afirmando que a produção do espaço urbano estava diretamente ligada ao conjunto de relações econômicas e políticas da sociedade.

A partir da constatação de uma suposta desordem urbana, que Choay (6) chamou de pseudodesordem, a ordem deveria ser convocada, materializando-se nas propostas de intervenções urbanas que assumiram modelos baseados em imagens da cidade futura. Os modelos de planejamento classificados pela autora, como culturalista e o progressista (7) se contrastavam na busca por soluções para as cidades, entretanto não dariam conta da complexidade das questões urbanas se tornando também alvo de questionamentos.

1.2. Mais subúrbios, menos revoluções

Cartazes elaborados na década de 1920 estimulam as compras de inverno e a ida aos jogos de futebol utilizando o metrô
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

Como prática de intervenção na Inglaterra no início do século 20, Hall (8) examinou o processo de formação de subúrbios ocorrido em Londres como uma resposta à “Cidade da Noite Apavorante” (9). Londres foi caracterizada por diversos relatórios da Comissão Real Britânica, sendo denunciada por um estado deplorável de miséria, adensamento populacional excessivo e falta de higiene. Entretanto, o pavor que pairava não era necessariamente sobre as condições de vida dos trabalhadores, mas “o verdadeiro terror que dominava a classe média [...] era de que a classe trabalhadora se sublevasse. E em parte alguma esse medo era maior do que nos meios governamentais” (10).

Na visão do governo, os recursos a serem gastos para sanar os problemas urbanos e habitacionais seriam compensados, evitando-se manifestações populares, a propagação de ideais comunistas e levantes de revoluções. A preocupação não se dava somente com a construção de moradias, mas com o projeto das unidades: “As novas casas construídas pelo Estado – cada uma com seu próprio jardim, cercada por árvores e sebes, e equipada internamente com as comodidades de um lar de classe média – tinham de constituir a prova visível da irrelevância da revolução” (11).

Em termos urbanos, a solução aplicada foi dispersar e desconcentrar a população, proporcionado a ocupação de áreas distantes do centro das cidades. O processo de suburbanização fez com que as cidades de estendessem, atendendo as exigências de leis sanitárias nas construções e proporcionando novas áreas de moradias para os trabalhadores. No contexto inglês, publicações de orientação progressista ressaltavam a necessidade de se melhorarem os meios de locomoção como um primeiro passo para solucionar os problemas habitacionais. Isto ocorreu inicialmente através do uso de bondes, linhas de ônibus municipais e ferrovias de interligação com o centro. Em Londres, o crescimento da construção habitacional visando o lucro nas áreas periféricas da cidade dependia diretamente da disponibilidade de linhas de transporte eficientes e de maior alcance, o que se materializou pela expansão das linhas do metrô e de suas conexões com outros meios de transporte.

2. O metrô desenha Londres

Cartazes elaborados na década de 1920 estimulam as compras de inverno e a ida aos jogos de futebol utilizando o metrô
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

A construção de estradas de ferro na Inglaterra teve início no século 19, sendo que em meados do século existiam seis terminais independentes de comboios na cidade de Londres. Em 1902, foi criada a companhia Underground Eletric Railway of London Limited – UERL, por iniciativa de empreendedores com o objetivo de expandir e consolidar as linhas de metrô londrinas. A implantação das redes de transporte era responsabilidade de empresas privadas, como a UERL, ou de empreendedores que desenvolviam a construção dos subúrbios no entorno das estações. A parceria entre empresas de transporte e empreendedores imobiliários se tornou lucrativa, uma vez que, quanto mais se construíam linhas de metrô, mais se ampliavam os horizontes para a construção dos subúrbios. Nesse contexto foram criadas as primeiras estratégias de venda de moradias suburbanas.

Embora o objetivo inicial das construções nos subúrbios fosse solucionar os problemas decorrentes do adensamento populacional, parte da população mais pobre, que realmente necessitava ser suprida pela construção de novas moradias, não possuía condições para adquirir imóveis nos subúrbios ou de arcar com os custos do deslocamento centro-periferia, preferindo permanecer nas residências antigas. A população que tinha condições de se deslocar para as áreas suburbanas foi influenciada pelas campanhas publicitárias promovidas pela “Underground”, as quais difundiam o ideal do subúrbio como reduto de qualidade de vida, onde era possível o contato com a natureza e ar puro.

Sob o comando do advogado e administrador de transportes Frank Pick (1878-1941) na segunda década do século 20, a Underground descobriu a publicidade e investiu na venda de um ideal de vida nos subúrbios. Pick possuía grande interesse pelo design gráfico e seu uso na vida pública, tendo comandado o desenvolvimento da identidade corporativa da Underground, encomendando a elaboração de um logotipo para a empresa (utilizado até os dias atuais) além de cartazes, ilustrações e slogans, em uma verdadeira campanha de marketing a favor do uso do metrô. Sob sua direção, a rede operada pela Underground se expandiu, atingindo consideravelmente novas áreas e estimulando o crescimento dos subúrbios de Londres. Segundo Barman (12), seu impacto sobre o crescimento de Londres no período entre guerras o levou a ser comparado à Haussmann (1809-1891), devido às intervenções em Paris, e ao engenheiro norte-americano Robert Moses (1888-1981), figura controversa na história do planejamento urbano dos Estados Unidos.

Como gerente comercial da companhia, Pick tinha como responsabilidade aumentar o número de passageiros e acreditava que a melhor forma de fazê-lo era incentivar a utilização dos serviços da empresa fora dos horários de pico. Para tanto, encomendou cartazes que promoviam o uso de trens e ônibus também nos finais de semana, como meio de alcançar a zona rural e as atrações de lazer dentro da cidade. Os cartazes eram feitos por artistas e em estilos diferentes, pois, para a empresa, a variedade era importante para manter o interesse dos viajantes. Sob seu comando, o número de rotas operadas pela Underground triplicou e a área coberta pelos serviços aumentou em cinco vezes.

Mapa não geográfico das linhas do metrô, elaborado pelo designer Harry Beck em 1933
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

Além disso, Pick introduziu uma política de publicidade padronizada, melhorando a aparência das estações e sistematizando as formas de sinalização visual nas mesmas. Nesse sentido, utilizou da linguagem arquitetônica modernista nos projetos das estações do metrô, que ganharam uma identidade visual integrada também por meio da sinalização gráfica padronizada. Em 1931, foi desenhado por Harry Beck o primeiro diagrama esquemático não geográfico do metrô de Londres, o qual Beck se inspirou nos desenhos de diagramas de engenharia elétrica. O mapa representava as linhas, estações e zonas do metrô de maneira não geográfica, uma vez que o interesse do passageiro estava na ordem e relação das estações entre si, e não em sua localização geográfica precisa. A concepção básica do mapa do metrô de Londres tem sido amplamente utilizada na representação de outras redes de transportes em todo o mundo, notadamente no mapeamento topológico e não geográfico. Desde 1933, havia uma aparência unificada de veículos, prédios, cartazes e mapas, que continuam em vigor até os dias atuais (13).

3. O subúrbio como objeto de desejo

Cartazes produzidos para a Underground evidenciavam as vantagens da vida nos subúrbios em contraste com o caos do centro da cidade
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

Os cartazes artísticos e as campanhas de publicidade da Underground, além de estimularem o uso do metrô fora dos horários de pico, também se aliaram à construção dos subúrbios. Traziam consigo frases de efeito e artes gráficas que buscavam estimular as pessoas a viverem nas áreas recentemente construídas, propagando um estilo de vida bucólico, em contato com a natureza e distante do centro da cidade, representada pela poluição e desordem.

Cartazes produzidos para a Underground evidenciavam as vantagens da vida nos subúrbios em contraste com o caos do centro da cidade
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

Em diversos pôsteres, contemplavam-se imagens de casas típicas dos subúrbios, cercadas por vegetação, crianças brincando, homens cuidando do jardim e mulheres costurando, isto muitas vezes em contraste com representações de uma cidade em tons de cinza, marcada pela presença de indústrias, poluição e barulho. As frases de efeito destacavam a idealização dos novos bairros: “É de uma mudança que você precisa, venha para Osterley”; “O topo de Londres: Hampstead. Viaje pela London’s Underground”; “Viva em Edgware e VIVA!”; “Golders Green: um lugar para expectativas deliciosas”. O estímulo à mudança se focava na qualidade de vida ligada ao passado, tanto pelo estilo das construções quanto pela relação com um modo de vida ruralizado, em que o homem poderia retomar seu contato com a natureza e o ar puro do campo. A ida ao trabalho e os passeios poderiam ser facilmente obtidos pela compra de um ticket do metrô.

Cartazes produzidos para a Underground evidenciavam as vantagens da vida nos subúrbios em contraste com o caos do centro da cidade
Imagem divulgação [London's Transport Museum]

Viver nos subúrbios representava a possibilidade de se alcançar melhor qualidade de vida, deixando para trás os cortiços de casarios enfileirados, precários e superlotados. Questiona-se, entretanto, até que ponto a suburbanização de fato favoreceu a qualidade de vida da população. Segundo Hall (14), antes da I Guerra a ocupação dos subúrbios não teve tanto sucesso, pois, após algum tempo, muitos moradores voltavam para os cortiços por não possuírem condições de arcar com as despesas do financiamento do imóvel e dos deslocamentos. Além disso, havia aqueles que sentiam falta da dinâmica da cidade face à monotonia que se configurou nos bairros suburbanos. Ressalta-se, contudo, que desde o início o tipo de moradia construído acabou sendo destinado a uma camada da população que possuía recursos para arcar não só com os financiamentos, como com as despesas que este novo padrão de vida requisitava, sendo assim, as estratégias de marketing possuíam um público alvo específico.

Inicialmente, as casas construídas com fins lucrativos eram projetadas por trabalhadores não qualificados em termos de formação acadêmica; livros e revistas traziam modelos de projetos que eram reproduzidos indefinidamente pelos construtores em diversas partes da cidade. Os empreendedores eram livres para construir de forma mais densa e barata em troca da doação de terrenos para as autoridades locais, dessa forma, os esquemas urbanísticos tinham sempre as mesmas características:

“Mas com frequência o subúrbio de finalidade lucrativa era destituído de todo e qualquer plano abrangente, desenvolvendo-se à medida que, uma após outra, se abriam ruas, obra de vários construtores até que a terra acabasse... Daí resultava, por vezes, um estirão de casas semi-isoladas, monotonamente semelhantes, dispostas ao longo de uma movimentada artéria viária, tendo ao fundo um desperdício de terra cultivável derrelita, e distantes de serviços tais como lojas, escolas e estações” (15).

A construção dos subúrbios representou um dos embriões dos modelos de urbanização regidos pelo mercado. Como consequência se deu a formação de uma paisagem monótona e segregada, em que a qualidade das habitações e a baixa densidade populacional passaram a ser sinônimo de status social. Os subúrbios ingleses inauguraram um novo padrão de produção do espaço, reproduzido em outras partes do mundo em diferentes escalas e contextos, fruto de um processo regido pelo mercado. Guardadas as diferenças, como as de padrão arquitetônico, estas podem ser consideradas também as bases da estrutura urbana de diversas cidades brasileiras na atualidade (16).

Subúrbio na região leste de Londres
Home From Above Project, Jason Hawkes, 2012

4. A “habitação social de mercado” (17) no Brasil

Procura-se realizar uma comparação entre as estratégias imobiliárias discutidas anteriormente e estratégias semelhantes, que vem sendo utilizadas para a venda de empreendimentos habitacionais no Brasil, entendendo-se ambos os casos como frutos de um processo de produção do espaço regido pelo mercado. Na Inglaterra, as intervenções urbanas do início do século 20 voltaram-se para a construção dos subúrbios como solução aos problemas habitacionais; no contexto brasileiro atual tem-se no déficit habitacional uma das justificativas para a disponibilização de crédito para o financiamento e construção de habitações, com foco nas possibilidades abertas pelo Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV lançado pelo Governo Federal, em 2009, sob a gestão do então presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Casas construídas pelo PMCMV em Viçosa-MG. Diferenciação das residências por meio de cores distintas
Agnaldo Pacheco, 2012

No Brasil, as justificativas para a implantação do PMCMV não têm como base a necessidade de se acalmarem massas de trabalhadores revoltosos, como no contexto inglês, entretanto o lançamento do programa diz respeito a uma política anticíclica adotada como solução diante da crise econômica mundial iniciada em 2008. A partir do momento em que grandes empresas do setor imobiliário abriram seu capital na Bolsa de Valores, alguns anos antes, estas se tornaram vulneráveis à crise então deflagrada. Para escapar da quebra e atenuar os efeitos econômicos, o governo disponibilizou recursos financeiros para o uso em projetos habitacionais destinados a faixas de renda inferiores às atendidas até então pelas empresas, que passaram a produzir para o mercado popular.

Emprego de mão de obra pouco qualificada, produção barata, padronização do processo de projeto e construção, ausência de controle pelo poder público sobre o programa, facilidades de acesso aos recursos, dentre outros aspectos fizeram com que a lucratividade de empresas incorporadoras despontasse. O PMCMV tem se refletido em um modelo de urbanização deixado a cargo do mercado, admitindo como legado o aprofundamento da segregação espacial nas cidades. A construção de conjuntos habitacionais fora da malha urbana, em áreas sem infraestrutura adequada, sem espaços comerciais ou equipamentos públicos, precariamente conectadas ao tecido urbano, com condições inadequadas de transporte público e mobilidade tem sido um padrão constante na inserção dos empreendimentos do PMCMV nas cidades brasileiras (18). O programa tem sido criticado como um modelo insustentável e privatista de crescimento das cidades, fantasiado de política social (19).

Em se tratando de um país em desenvolvimento, a produção da habitação deixada a cargo do mercado brasileiro se diferencia em certos aspectos do processo ocorrido na Inglaterra. No contexto inglês, os construtores se aliaram aos administradores dos sistemas de transporte em uma parceria para expandir seus negócios, entretanto este processo permitiu a consolidação da infraestrutura do metrô, que possui atualmente uma das maiores redes do mundo, ainda que o objetivo primordial tenha sido o lucro. No Brasil, a ação dos agentes de produção do espaço, no caso empreendedores associados a mecanismos políticos, vem representando a construção de cidades segregadas, onde as periferias possuem infraestrutura de transportes precária e onde o transporte coletivo nem sempre é garantido.

Empreendimento “Jardim de Minas”, em Juiz de Fora-MG, a área de lazer é comumente evidenciada, mesmo representando uma área residual do terreno
Divulgação MRV Engenharia

Quanto à natureza dos projetos habitacionais, seja para a classe média ou para a faixa mais carente da população, são seguidos os mesmos padrões históricos já produzidos no país. Condomínios com prédios em formato “H” e faixas extensas de casas idênticas isoladas no lote são as tipologias comumente adotadas, entretanto, nos últimos anos, a linguagem arquitetônica foi incrementada: nos prédios para estes segmentos econômicos, detalhes neoclássicos evocam um ilusório padrão de classe alta, e quando das casas isoladas, se alternam as pinturas entre uma casa e outra, em uma variação de cores restrita para diferenciar as residências.

Analisando entrada do capital financeiro na atuação das grandes empresas construtoras e o aumento da disponibilidade de recursos de fundos públicos e semipúblicos destinados à habitação, Shimbo (20) investigou os aspectos da “habitação social de mercado” no Brasil, englobando o momento de atuação do PMCMV. Sendo a habitação social uma mercadoria, é necessário vendê-la, e, se for possível, vendê-la antes mesmo que seja construída para que o capital de giro das empresas se eleve. Para tanto, é necessário consolidar a imagem de um padrão de vida atraente para o público, o qual, no segmento econômico, se vincula ao padrão da classe média. Da mesma forma com que Frank Pick estrategicamente utilizou recursos de marketing para estimular a venda de habitação nos subúrbios londrinos, vendendo a ideia e a imagem de locais bucólicos e em contato com a natureza, o mercado imobiliário e as grandes construtoras vêm dando ênfase à venda de um padrão de vida relacionado aos condomínios fechados destinados à alta renda. Conforme ressalta Barbosa (21), tais empreendimentos “preconizam ‘o prazer de morar’ como uma experiência individual, subjetiva e mágica; a indução a este prazer se dá através de estratégias de marketing, que mexem com o imaginário social e coletivo dos sujeitos” (22).

Empreendimento “Jardim de Minas”, em Juiz de Fora-MG, a área de lazer é comumente evidenciada, mesmo representando uma área residual do terreno
Divulgação MRV Engenharia

As áreas comuns e de lazer são frequentemente evidenciadas, procurando reproduzir ambientes existentes em empreendimentos de alto padrão. “Espaço gourmet”, “espaço fitness”, “espaço zen”, “redário”, playground, piscinas, quadras e salões de festas são alguns dos ambientes anunciados, geralmente ilustrados por representações 3D associadas a fotografias de modelos de casais e famílias jovens. Entretanto, na maioria das vezes tais espaços representam uma parcela muito pequena dos terrenos onde os condomínios são implantados, em comparação com o número de unidades habitacionais propostas (23). Muitas vezes, os espaços que ainda não foram nem construídos são vendidos na planta, tendo papel fundamental nesse processo o marketing em torno dos empreendimentos aliado às possibilidades de financiamentos. Além disso, o apelo que mais é valorizado na propaganda de tais empreendimentos se dá no sentido da aquisição da casa própria, slogans como “saia do aluguel” ou “o seu primeiro apê está aqui” são bastante comuns nos prospectos das empresas construtoras (24).

12. Prospecto do empreendimento Reserva Maragogi, em Maceió-AL. Estilo neoclássico, família jovem, natureza e destaque para a saída do aluguel
Divulgação MRV Engenharia

5. Símbolos vendidos na cidade

Na Inglaterra do início do século 20, a construção habitacional nos subúrbios teve como motivação o adensamento populacional e as condições precárias encontradas nas cidades. A construção destes loteamentos foi grandemente influenciada pelo transporte coletivo, em uma aliança entre as empresas de transporte e os empreendedores do setor da construção civil para a consolidação de suas estratégias imobiliárias. No Brasil, a construção de condomínios horizontais ou verticais para os vários segmentos sociais nas áreas mais distantes dos centros urbanos apresentam outras motivações. No caso brasileiro, os condomínios são construídos, muitas vezes, em áreas de expansão das cidades, em terrenos adquiridos por preços muito baixos ou guardados como reservas sobre especulação. Destacou-se nesta reflexão que as estratégias de venda são as mesmas – glamourização, promoção de um status social, diferenciação – contudo, os objetivos se distinguem.

A produção de um espaço ilusório, que vende determinado “estilo de vida” se identifica com o conceito de produção e consumo de capital simbólico, identificado na obra de Bourdieu como o acúmulo de bens de consumo suntuosos que atestam o gosto e a distinção de quem os possui. O conceito foi lembrado por Harvey (25) quando do estudo da pós-modernidade na cidade, afirmando que a sociedade de consumo possui ênfase maior na diferenciação de produtos nos projetos urbanos, por meio da exploração dos domínios do gosto e preferências estéticas diferenciadas. O capital simbólico é transformado em capital-dinheiro por meio do consumo do gosto (a qualidade de vida dos subúrbios ou lazer e segurança dos condomínios), em um fetichismo evidente, que oculta a base real das diferenciações econômicas.

A venda da imagem de um espaço simbólico, de uma representação mental, com referências a um padrão de vida da classe alta, produz e reproduz efeitos no espaço urbano, como a diferenciação e a fragmentação. O consumo do capital simbólico acaba por esconder os problemas estruturais do espaço urbano, refletindo a própria sociedade.

“Como os ‘efeitos ideológicos mais bem-sucedidos são os que não têm palavras e não pedem mais do que o silêncio como cúmplice’, a produção do capital simbólico serve a funções ideológicas porque os mecanismos por meio dos quais ela contribui ‘para a reprodução da ordem estabelecida e para a perpetuação da dominação permanecem ocultos’” (26).

Dessa forma, as intervenções urbanas no contexto capitalista fazem uso do marketing imobiliário como estratégia de comercialização dos produtos imobiliários, aliado ao capital simbólico para facilitar e perpetuar a lógica da ordem já estabelecida. Seja no Brasil ou Inglaterra, disfarçada de política habitacional ou expansão dos meios de transporte, a busca por meios de comunicar distinções sociais através da aquisição de símbolos de status permanece como uma faceta central na vida urbana.

notas

NA – Publicação original: SOUZA. M. F.; RIBEIRO FILHO, G. B. Um século de marketing urbano: Promovendo a venda da cidade ilusória desde os subúrbios ingleses aos condomínios fechados no Brasil. In: XVI ENANPUR – Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Belo Horizonte, maio de 2015. Anais do XVI ENANPUR – Encontro Nacional da ANPUR, 2015.

1
CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 23.

2
ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo, 2015.

3
Ver PALLONE, Simone. Diferenciando subúrbio de periferia. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 57, n. 2, abr./jun. 2005. Ressalta-se que neste contexto a palavra subúrbio não possui a conotação área ocupada por moradores com baixo poder aquisitivo, mas é utilizada no sentido de localização afastada da área central da cidade, caracterizada pela baixa densidade de ocupação, traduzindo uma situação intermediária entre cidade e campo e não uma condição socioeconômica.

4
CHOAY, Françoise. O urbanismo em questão. São Paulo, Perspectiva, 1982.

5
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução B. A. Schumann. São Paulo, Boitempo, 2008.

6
CHOAY, Françoise. Op. cit.

7
Segundo Choay, as propostas culturalistas caracterizavam-se por uma crítica nostálgica ao urbano, propondo que a cidade deveria voltar ao que era no passado, apoiando-se em estudos históricos e arqueológicos; tais ideias resultaram em propostas de cidades com dimensões reduzidas e traçados orgânicos, com destaque para o modelo de Cidade Jardim, de Ebenezer Howard. As propostas progressistas baseavam-se nos ideais racionalistas pautados no progresso propiciado pelo advento da Revolução Industrial, tendo o homem com ser tipo, portanto com necessidades padronizadas; as propostas caracterizaram-se por espaços abertos, com a separação de funções e disposição racional de edifícios, tendo-se como referência as propostas de Charles Fourier, Robert Owen, influenciando posteriormente as ideias de Tony Garnier (La cité industrielle) e Le Corbusier.

8
HALL, Peter (1995). Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo, Perspectiva, 2005.

9
Título do segundo capítulo do livro Cidades do amanhã, de Peter Hall, no qual o autor discorre sobre as condições das cidades industriais no século 19.

10
HALL, Peter. Op. cit., p. 29.

11
Idem, ibidem, p. 82.

12. BARMAN, Christian. The man who built London Transport: a biography of Frank Pick. Newton Abbott, David & Charles, 1979.

13
DE MOZOTA, Brigitte Borja. et all. Gestão do design: usando o design para construir valor de marca e inovação corporativa. Porto Alegre: Bookman, 2011.

14
HALL, Peter. Op. cit.

15
BURNETT, 1978. Apud HALL, Peter. Op. cit., p. 89.

16
SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Capitalismo e urbanização. São Paulo, Contexto, 2000.

17
Termo cunhado por SHIMBO, Lúcia. Habitação social de mercado: a confluência entre Estado, empresas construtoras e capital financeiro. Belo Horizonte, C/Arte, 2012.

18
CARDOSO, Adauto Lúcio. (Org.) O Programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2013.

19
ARANTES, Pedro. Arquitetura contemporânea: entre favelas e modernismos. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 333, São Leopoldo, 2010, p. 31-33.

20
SHIMBO, Lúcia Zanin. Empresas construtoras, capital financeiro e a constituição da habitação social de mercado. In: MENDONÇA, Jupira G.; COSTA, Heloísa S. de Moura (Org.). Estado e capital imobiliário: convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro. Belo Horizonte, C/Arte, 2011, p. 41-62.

21
BARBOSA, Luciana Antunes. Faces da produção do espaço urbano em cidades médias: “os enclaves residenciais fortificados” em Limeira – SP. Dissertação de mestrado. Rio Claro, Universidade Estadual Paulista – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, 2007.

22
BARBOSA, Luciana Antunes. Op. cit., p.48.

23
RIBEIRO, Najla J. L. Sales. Imagem publicitária da arquitetura dos empreendimentos da “Minha Casa Minha Vida”. In: Anais do XV ENANPUR, Recife, 2013.

24
SHIMBO, Lúcia Zanin. Op. cit., p. 41-62.

25
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança social. São Paulo, Edições Loyola, 1993.

26
HARVEY, David. Op. cit., p.81.

sobre os autores

Maressa Fonseca e Souza é arquiteta e urbanista (DAU/UFV), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFV). Foi professora substituta no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa (2015-2016), na área de História e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo.

Geraldo Browne Ribeiro Filho é mestre em Urbanismo (PROURB/UFRJ), doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), professor associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa.

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