As chamadas Jornadas de Junho, originalmente convocadas pelo Movimento Passe Livre/MPL em junho de 2013, demandavam a revogação do aumento de 20 centavos (US$ 0,05) na tarifa do transporte coletivo na cidade de São Paulo. No entanto, a pauta do MPL é centrada no Projeto Tarifa Zero, que busca o fim da tarifação do transporte público urbano no Brasil.
Diferentemente de outros movimentos sociais, o MPL não reivindica direitos para si, nem tampouco para grupos específicos, desprovidos deste ou daquele direito social; tem como meta a conquista do direito universal à mobilidade urbana. O Projeto Tarifa Zero ataca apenas um aspecto dessa pauta, algo que provoca muitos questionamentos e conseqüências, na medida em que se afasta das pautas mais tradicionais da esquerda (1). Não obstante, é possível entrever sob essa pauta restrita, uma noção específica e revolucionária de cidade. O objetivo desse artigo é refletir sobre a noção de cidade subjacente ao discurso do MPL.
Serão abordadas questões referentes à realidade das cidades brasileiras, a crise urbana e o conceito de direito à cidade que ampara a proposta do MPL. Tais questões afetam as cidades brasileiras como um todo; contudo, a ênfase aqui recairá sobre a cidade do Rio de Janeiro. Propõe-se uma reflexão sobre a livre apropriação do território, conforme imaginada pelo MPL – apropriação que rejeita a visão funcionalista da cidade, e também a restrição à mobilidade decorrente do atendimento prioritário dado a um tipo específico de deslocamento urbano: o ir e vir do trabalho.
Considerações sobre as cidades
Como fenômeno histórico, o surgimento das cidades coincide com o surgimento de uma civilização que se torna sedentária – fenômeno diretamente vinculado ao advento do excedente de produção. Por esse motivo, David Harvey afirma que “a urbanização tem sido sempre, portanto, um fenômeno de classe, uma vez que os excedentes são extraídos de algum lugar e de alguém, enquanto o controle sobre o seu desembolso normalmente encontra-se em poucas mãos” (2).
Quando Henri Lefebvre, no catártico ano de 1968, publica a sua coletânea de ensaios Le droit à la ville, colocando em evidência a demanda por um direito humano fundamental, seu ponto de partida é o entendimento da cidade como obra social coletiva, na qual o valor de uso deve estar sempre acima do valor de troca (3). Raquel Rolnik também defende a cidade como obra coletiva, destacando, entre outros aspectos, que toda cidade possui uma dimensão política – relacionada à gestão pública de vida coletiva – e uma dimensão mercantil, vinculada à gestão da produção coletiva (4).
A noção de cidade não se restringe portanto à descrição de uma entidade física; abarca também, e talvez acima de tudo, uma dimensão política. Esse conceito conecta-se à noção de cidadania, no sentido de pertencimento e participação ativa dos moradores da cidade. Como esclarece Rolnik, a partir de determinado momento histórico, as cidades passam a se organizar prioritariamente em função de interesses mercantis. Nesse momento, seu valor de troca passa a prevalecer sobre o seu valor de uso.
Na Europa, essa mudança acontece a partir do século 17 com o ideal barroco de cidades-capitais, decorrente da centralização do poder. A cidade-capital, cidade como expressão da “ideologia do poder”, já não se apresenta como uma cidade fechada entre muros, mas como um organismo aberto, um amplo nó de vias de comunicação. Prevalece, todavia, a vontade do soberano e do governo sobre a iniciativa dos cidadãos na relação das transformações internas (5).
Como esclarece Michel Foucault, é nesse momento que se dá a mudança do poder territorial (ou seja, o poder que estava relacionado ao domínio do território) para o biopoder– uma forma de poder que atua através do controle da população. A eliminação da muralha impõe nesse sentido a necessidade de organizar a circulação e o acesso à cidade:
“o que era um dos problemas importantes das cidades do século XVIII – possibilitar a vigilância, a partir do momento em que a supressão das muralhas, tornada necessária pelo desenvolvimento econômico, fazia que não fosse mais necessária pelo desenvolvimento econômico, fazia que não fosse mais possível fechar a cidade de noite ou vigiar com rigor as idas e vindas durante o dia; por conseguinte, a insegurança das cidades tinha aumentado devido ao afluxo de todas as populações flutuantes, mendigos, vagabundos, delinquentes, criminosos, ladrões, assassinos, etc., que podiam vir, como se sabe, do campo [...]. Em outras palavras, tratava-se de organizar a circulação, de eliminar o que era perigoso nela, de separar a boa circulação da má, [de] maximizar a boa circulação diminuindo a má. Tratava-se, portanto, também de planejar os acessos ao exterior, essencialmente no que concerne ao consumo da cidade e a seu comércio com o mundo exterior” (6).
Com o avanço da mercantilização e a transformação da cidade medieval em cidade-capital de um estado moderno, ocorre também o processo de segregação, isto é de separação das classes na organização espacial da cidade. Com a centralização do poder, são realizadas construções de edifícios públicos, e o primeiro movimento de segregação acontece com a separação entre local de residência e local de trabalho (7).
A segregação se traduz de maneiras diversas – por exemplo, por meio dos condomínios fechados e do tratamento diferenciado por parte da autoridade político-administrativa local. Duas formas de segregação são bastante recorrentes nas cidades hoje: a expulsão da população para periferias pouco urbanizadas e os enclaves fortificados.
A expulsão da população para as periferias provoca a necessidade de grandes deslocamentos para as regiões centrais, onde se concentram as ofertas e oportunidades de trabalho, lazer e outros. A segunda forma de segregação é a proliferação dos “enclaves fortificados”, os quais, como explica Teresa Caldeira:
“são espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer ou trabalho. Esses espaços encontram no medo da violência uma de suas principais justificativas e vêm atraindo cada vez mais aqueles que preferem abandonar a tradicional esfera pública das ruas para os pobres, os “marginais” e os sem-teto. Enclaves fortificados geram cidades fragmentadas em que é difícil manter os princípios básicos de livre circulação e abertura dos espaços públicos que serviram de fundamento para a estruturação das cidades modernas. Consequentemente, nessas cidades o caráter do espaço público e da participação dos cidadãos na vida pública vem sendo drasticamente modificado” (8).
As formas de segregação têm efeitos importantes sobre a distribuição espacial da cidade, a circulação e a qualidade do espaço público; conseqüentemente, também impactam sua dimensão política.
Capitalismo e a urbanização no Brasil
Como afirma o geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes, desde a colônia o Brasil “é parte do sistema mundial capitalista e [...] a produção do espaço urbano responde às exigências deste sistema em suas diferentes fases” (9). Assim, para entender a relação entre a morfologia urbana das cidades brasileiras e das cidades do capitalismo central, Fernandes considera quatro grandes ciclos de acumulação e de gestão do território e da cidade: o século 18, com o mercantilismo e a gestão policial; o século 19 com o liberalismo; o século 20, com o fordismo-keynesianismo; e finalmente o período pós 1970, com o neoliberalismo.
No primeiro grande ciclo, no século 18, são adotadas as características da cidade barroca, com abertura de espaços para promover vigilância e o poder do Estado – um modelo que atuava na defesa dos interesses de Portugal. A seguir, com o liberalismo do século 19, a cidade barroca dá lugar à cidade capitalista industrial da livre concorrência, primeiramente na Europa e nos EUA, e mais tardiamente no Brasil, na virada do século 19 para o século 20 (correspondendo ao período das chamadas grandes reformas urbanas). No Rio de Janeiro ocorrem obras de melhoria do Porto e reurbanização da cidade, conduzidas pelo prefeito Pereira Passos. O processo favorece os interesses das oligarquias cafeeiras do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista; é marcado por demolições que visam a abertura de grandes avenidas e que provocam a expulsão da população do centro.
No Século 20, o fordismo-keynesianismo é caracterizado pela promoção do Estado de bem estar social, no qual o Estado participa ativamente como provedor de demandas sociais. No Brasil, tem lugar a intervenção do Estado na promoção da habitação social, embora o período também corresponda à implementação de políticas de “limpeza social” nas áreas nobres, em atendimento aos interesses da crescente especulação imobiliária. A partir de 1930, é aprofundada a intervenção do poder público na cidade e na habitação, fruto da constatação que a população de baixa renda não teria acesso à moradia digna sem apoio governamental. A intervenção Estatal na esfera da moradia social tem continuidade no regime militar, com a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH, cinco meses após o golpe de 1964. O poder público investe de modo expressivo no espaço urbano brasileiro durante o regime militar; no geral, tais intervenções resultam em projetos de baixa qualidade, desprovidos de urbanidade e desarticulados muitas vezes do tecido urbano consolidado (10).
Com a redemocratização dos anos 1980, emergem exemplos de gestão urbana que elaboraram e implementaram planos democráticos de gestão. São desse período: a Constituição Federal de 1988, que insere dispositivos para desenvolvimento territorial até então existentes; em 1989, em Porto Alegre, é implementado o orçamento participativo, que, dentre outras coisa, marca a ruptura da submissão do investimento público aos interesses do mercado imobiliário; e, na gestão de Luiza Erundina na prefeitura de São Paulo (1989-1992), é elaborada a proposta do Projeto Tarifa Zero.
Finalmente, a hegemonia do pensamento neoliberal, surgida no final dos anos 1980, impõe a desregulamentação e privatização dos serviços públicos. Moradia, saúde, educação e transporte são tratados como meras mercadorias. A agenda neoliberal enfatiza o controle da inflação e finanças públicas (em vez de pleno emprego e proteção social) como principais objetivos de política econômica (11). Tais preceitos são sistematizados pelo chamado Consenso de Washington.
Formulado em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Consenso de Washington é um conjunto de medidas constituído por dez regras básicas: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas); e direito à propriedade intelectual (12).
Nesse período, popularizou-se o conceito de trickledown, que consiste na ideia de que se a camada mais rica da sociedade enriquecer, esse crescimento será distribuído de forma gradativa para todos os setores da sociedade. Este conceito foi desmistificado em estudo divulgado pelo próprio FMI. Publicado em 1º junho de 2015, o documento (13) escrito por cinco economistas do Departamento de Política Estratégica e Revisão do FMI afirma que o aumento da desigualdade reduz o crescimento econômico e sugere a adoção de políticas de distribuição de renda como forma de garantir um crescimento sustentável. As conclusões do estudo seguem uma lógica simples, mas que contraria o que o próprio Fundo Monetário defende, ou seja, a concentração de esforços em medidas de austeridade e de “responsabilidade fiscal”.
Do ponto de vista da regulação das cidades, este quadro ganhou mais nitidez no início da década de 1990, com a adoção do chamado planejamento estratégico. Este busca conduzir o desenvolvimento urbano através de projetos e vetores estruturantes que, ao sabor do mercado e da colaboração do Estado (viabilizadas pelas chamadas Parcerias Público-Privadas – PPPs), devem articular os diversos fragmentos metropolitanos de interesse dos agentes globais. Eloquentemente, o período coincide com o enfraquecimento do conceito mais tradicional (e, do ponto de vista da esquerda, mais socialmente engajado) de “planejamento territorial e urbano”.
A consequência direta dessa política neoliberal é a ideia de que o melhor uso para a terra urbana deixa de ser aquele demandado por cidadãs e cidadãos, e passa a ser o uso mais rentável para o capital ali investido – o que na prática se traduz no princípio de que terra urbanizada bem localizada não pode ser ocupada por “pobre” (14). No Rio de Janeiro esse ideal se expressou intensamente nas diversas desapropriações e remoções realizadas no período em que a cidade se preparou para a realização dos chamados megaeventos. A realização dos jogos olímpicos de 2016, por exemplo, previu a remoção de mais de 3.500 famílias de seis favelas das zonas Oeste e Norte da cidade. A maior parte dessas famílias estava em Jacarepaguá, onde foram construídas diversas instalações olímpicas (15). O que se vê, mais uma vez, é a concentração de riqueza traduzida no espaço urbano, num persistente círculo vicioso de manutenção de desigualdades.
Inferno urbano
A crise da mobilidade urbana é apenas um dos sintomas da nossa crise urbana atual. Além dos problemas ambientais, há problemas de déficit habitacional, violência urbana, segurança hídrica, entre outros. O que tudo isso reflete é a crise de um modelo de cidade, e do modelo correspondente de gestão. Não é por coincidência que as cidades estão em crise. Essa crise é consequência de uma configuração histórica de políticas urbanas que priorizam a cidade como espaço para realização de negócios, e que adotam a dimensão do privado como elemento estruturador do espaço público.
Na campo da mobilidade, essa crise é percebida principalmente pelo aumento do tempo de deslocamento e pela crescente sensação de caos urbano. Alguns fatores colaboram para a condição da mobilidade tornar-se um dos maiores problemas sociais e urbanos, dentre os quais se destacam: o recente aumento da motorização individual, associado à má qualidade do transporte de uso coletivo, e a imensa desigualdade territorial.
No Brasil, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (16) divulgados em 2011, a cada R$ 12 gastos em incentivos ao transporte particular, o governo investe R$ 1 em transporte público. O estudo aborda as três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Entre os subsídios considerados pela pesquisa, está a isenção de Imposto sobre Produto Industrializado/IPI dada aos carros de baixa cilindrada. A concessão de incentivos fiscais para a indústria automobilística foi uma das principais medidas do Governo Federal para enfrentar a crise econômica mundial de 2008. A adoção de uma política econômica que sustenta suas altas taxas de crescimento econômico no incentivo ao crescimento da indústria automobilística, ainda que tenham sido benéficas para a economia, foi desastrosa para as cidades brasileiras.
Segundo o Anuário da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores – Fenabrave, em 2003 o número de automóveis em 12 metrópoles brasileiras era de 23,7 milhões e, em 2013, era de 45,4 milhões, ou seja, praticamente dobrou. Nesse mesmo período o número de motocicletas passou de 5,3 milhões para 18,1 milhões, ou seja, quase quadruplicou (17). Os congestionamentos, que comprometem uma parte significativa da vida das pessoas, são a parte mais visível do problema. Perdas econômicas e deterioração da qualidade de vida se tornaram parte do cotidiano urbano brasileiro. A cidade que prioriza os automóveis também gera problemas de poluição e acidentes de trânsito, provoca impactos sociais, econômicos, ambientais e na saúde.
A longa carência de investimentos nos sistemas de transportes coletivos (de 1980 até 2009, aproximadamente) é outro fator que colaborou para a atual condição da mobilidade. É importante destacar que a partir dos anos 1990 a visão mercadológica do transporte ganha força. No estudo Transição Regulatória no Transporte por Ônibus na Cidade do Rio de Janeiro, Igor Pouchain Matela adverte:
“Se o transporte urbano pode ser visto como um serviço público essencial para o bem-estar urbano, um bem comum universal que tem como objetivo fundamental a equidade de acesso à cidade para o conjunto da população; há também quem o veja como um empreendimento, produtor de deslocamentos espaciais, um negócio que busca captar clientes num mercado que pode ser largamente definido pelo conjunto da população urbana” (18).
Para Lucio Gregori – Secretário de Transportes de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina (1990-1992) e autor do Projeto Tarifa Zero – o atual modelo de contratação do setor privado e de prestação de serviço (que é de utilidade pública)
“segue uma tradição típica de sociedades mais ‘atrasadas’ ou de ‘capitalismo tardio’; como se dizia outrora; a concessão dos serviços de transportes coletivos por prazos praticamente intermináveis para os mesmos grupos empresariais por cidade/região e que acabam por se constituir em enormes cartéis, alguns em escala nacional. Esse modo de concessão estabelece a tarifa cobrada como garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato e tem prazos de até 25 ou 30 anos, e que se prorrogam ou se eternizam com a contratação das mesmas empresas. Tudo isso resulta num modelo que se assemelha ao Estado Cartorial a que se referia Helio Jaguaribe. Como ter concorrência, inovação e aperfeiçoamento com modelo assim?” (19)
O resultado dessa visão mercadológica é um sistema de transporte que não atende às demandas da população, nem tampouco cumpre as leis; um sistema que não é pontual, confortável, seguro e acessível do ponto de vista econômico. A campanha “Prefeitura, Eu não sou Cinderela” (20), por exemplo, denuncia o não cumprimento do Artigo 414 da Lei Orgânica Municipal do Rio de Janeiro que estabelece: “É obrigatória a manutenção das linhas de transporte coletivo no período noturno em freqüência a ser estabelecida por lei e que não poderá ser superior a sessenta minutos” (21).
Um levantamento feito pelo grupo “Nós de Campo Grande” (22), bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, mostra que de 59 linhas que tem seu trajeto no bairro, menos de 20% rodam durante a madrugada. Esta realidade certamente não se limita a Campo Grande; o problema é geral e se espalha pela Cidade. Embora o contexto atual não siga mais o rígido horário das indústrias fordistas, a oferta pelo transporte não acompanhou essa mudança. Trata-se de um gigantesco descompasso com relação à realidade sócio-econômica em que o país se encontra.
De modo diretamente articulado aos fatores apresentados, a forma como a cidade é ocupada também atua sobre a mobilidade. Existe uma relação entre centro e periferia bastante radical, onde a mobilidade reforça a cidade excludente e periférica.
Um fato recorrente na cidade do Rio de Janeiro ilustra de forma contundente essa questão: a disputa pelo acesso à praia nos verões carioca. Em 1984, o governador Leonel Brizola, junto com o então Secretário Jaime Lerner, criou linhas de ônibus que atravessavam o túnel Rebouças permitindo que moradores da Zona Norte chegassem mais rapidamente nas praias da Zona Sul, área nobre da cidade. O Jornal do Brasil estampou então na primeira página do seu Caderno B a matéria “Nuvens suburbanas sob o sol de Ipanema”, de Joaquim Ferreira dos Santos, na qual moradores da Zona Sul reclamavam da “invasão ao seu território”.
Mais adiante, em 1985, Brizola encampou 16 empresas de ônibus em situação irregular pela Companhia de Transportes Coletivos do Estado do Rio de Janeiro – CTC-RJ. A ação permitiu ao poder público o controle de 25% do volume total de deslocamentos dentro da região metropolitana. O objetivo era a racionalização do transporte rodoviário urbano, por meio da reorganizando do sistema em moldes econômicos e sociais mais justos. A encampação é uma forma de ação do contratante no modelo de concessão onde o contratante retoma a execução do serviço durante o prazo contratado.
Em 1988, quando o então governador Moreira Franco desencampa as empresas, devolvendo a prestação do serviço para a iniciativa privada, e acabando com a CTC-RJ, as linhas criadas mostraram-se tão rentáveis que são integralmente mantidas. Fica claro, a partir desse exemplo, que o que estava em jogo não era apenas o lucro, mas também o controle do acesso a uma determinada área da cidade – o transporte público reforçando a divisão espacial da cidade.
Essa divisão persiste. Em janeiro de 2015 a colunista Hidelgard Angel (23), publicou em sua página na internet medidas para “solucionar” casos de violência em praias da Zona Sul em dois tópicos. A primeira medida proposta é que "em dias de grande concentração de pessoas nas ruas e praias, nos fins de semana e feriados do verão", a circulação de linhas de ônibus e metrô no fluxo Zona Norte – Zona Sul seja "drasticamente" diminuída. A segunda e não menos polêmica sugestão, chamada por ela de "plano B radical", seria a cobrança de entrada nas praias do Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon.
O problema da violência é complexo e não se resolve com mais exclusão e segregação. No entanto, esta parece ser a principal resposta para a questão: a solução é sempre uma reação ao sintoma. Ainda em 2015, foi realizada no Rio de Janeiro a Operação Verão, em plena primavera, com o objetivo de coibir os arrastões nas praias da Zona Sul da cidade. Percebe-se aí a atuação de um poderoso mecanismo de controle e segurança, que associado à reordenação das linhas de ônibus e a extinção de linhas que realizavam o trajeto Zona Norte/Zona Sul, priva toda uma parcela da população do desfrute de um importante espaço público e coloca em evidência a sua desigual distribuição territorial. Não existe cidade para todos.
O Projeto Tarifa Zero, sozinho, não resolve essa questão; no momento presente, atua sobretudo como um instrumento questionador no amplo processo de promoção de uma cidade mais igualitária. A resistência às decisões sobre a cidade é extremamente importante num contexto em que a política urbana parece dirigida única e exclusivamente na direção dos interesses dos capitais que mais se beneficiam da reprodução de um determinado modelo de cidade – capitais que, não por acaso, financiam pesadamente as campanhas eleitorais. Outros valores devem ser colocados na mesa de discussão.
Direito à cidade – tudo o que foi feito, pode ser reimaginado e refeito
A proposta do MPL – mais especificamente, o projeto Tarifa Zero – está relacionada ao conceito de Direito à Cidade estabelecido por Lefebvre em 1968; ele corresponde ao direito de fruição plena e igualitária dos recursos acumulados e concentrados nas cidades – direito que só seria possível em uma outra sociedade, uma sociedade mais democrática. Este é um dos principais obstáculos para a conquista do direito à cidade – a própria crise no conceito de democracia.
Vigora no Brasil, segundo Marilena Chauí, o costume geral de aceitar a definição liberal da democracia – definição que obscurece o seu sentido original. Segundo tal entendimento, a democracia caracteriza-se como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais; a democracia é assim “reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais” (24). Na concepção liberal, a democracia é encarada pelo critério da eficácia. Sendo uma questão de competência, é reducionista e excludente.
No entanto, explica Chauí, tanto na prática quanto nas concepções democráticas, existe uma profundidade e uma verdade muito maiores do que o liberalismo abrange e deixa perceber. Chauí destaca características do que denomina de democracia social real. A primeira característica, a essência da democracia, é que o poder não se identifica com os ocupantes do governo; o poder não lhes pertence, é sempre um lugar vazio, a ser periodicamente preenchido por representantes eleitos pelos cidadãos. A segunda característica refere-se ao princípio republicano da separação entre o público e o privado. Por fim, Chauí esclarece que na democracia “os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia: a criação de direitos” (25).
O Direito à Cidade reside em uma ideia utópica, uma vez que imagina a sua realização em uma outra sociedade, uma sociedade mais democrática ainda não alcançada. Essa utopia, no entanto, não se dá de forma autoritária. Ela baseia-se na visão de futuro sobre a qual a sociedade pauta seus projetos, isto é a ideia de que o mundo não está condenado a permanecer do jeito que é.
A mobilidade urbana é tida como essencial para a garantia do pleno acesso à cidade e a efetivação de outros direitos sociais. Dessa maneira, a implementação do Projeto Tarifa Zero nas cidades brasileiras, reivindicado pelo MPL, faz parte do embate pela reivindicação do direito à cidade. A discussão da proposta da Tarifa Zero, ou seja, do transporte público gratuito, vai contra a lógica capitalista na qual tudo é mercadoria; logo, é um conceito inadmissível e absurdo do ponto de vista da lógica mercantil do sistema. A gratuidade implica uma sociedade diferente, baseada em valores e regras distintos daquelas do mercado e do lucro capitalistas. É, por este motivo, um princípio revolucionário.
No entanto, embora seja um imperativo de justiça social, o projeto não garante por si só o direito e o acesso à cidade. As utopias servem como um ponto de partida, não como um fim, e não devem ser esgotadas no plano da sua realização. Tão relevante quanto a viabilidade da implementação do Projeto Tarifa Zero, são as questões que a proposta coloca na pauta de discussão: qualidade, custo do transporte público e sua relação com qualidade de vida nas cidades; mercantilização do espaço urbano e degradação do espaço público; injustiças e distorções tributárias; relação Estado e capitais e sua atuação nas cidades. O projeto é um argumento de luta tática da classe trabalhadora e não garante sozinho o pleno direito à cidade, mas é um ponto importante no processo dessa conquista.
Considerações finais
Esse artigo não tem como objetivo discutir a viabilidade da implementação do Projeto Tarifa Zero. Existe um entendimento por parte de seus defensores de que a questão é política, mais que uma questão contábil, na medida em que toca em pontos como a reforma tributária e a transparência na formação de cálculo das tarifas.
A tributação no Brasil, que seria o instrumento mais eficiente na redistribuição de renda, acaba agravando as desigualdades sociais porque a carga fiscal onera sobretudo os pobres e a remuneração do trabalho. Mais da metade da arrecadação tributária provém de impostos que incidem sobre bens e serviços, com baixa tributação sobre renda e patrimônio (26). Existe uma resistência histórica na correção de tais injustiças. A Constituição de 1988 previu, por exemplo, a cobrança do imposto sobre grandes fortunas, mas o tributo jamais foi regulamentado.
Aliada a questão da tributação, não há transparência na formulação do cálculo das tarifas. A maioria dos municípios não divulga as planilhas de cálculo, e aqueles que as divulgam, fornecem dados insuficientes (27). É preciso ainda considerar, além dos custos, as externalidades positivas como a diminuição da poluição e dos congestionamentos. A questão é política, e não contábil. Fazer política é construir possibilidades, e não gerir impossibilidades.
Mas tão importante quanto a discussão da viabilidade da implantação do Projeto Tarifa Zero é a imaginação de cidade que o projeto traz consigo, a ideia revolucionária de uma cidade livre de catracas. É imaginar ser possível locomover-se pela cidade sem nenhum tipo barreira física ou mental – livre das restrições inerentes à visão funcionalista de cidade, em especial o preceito do deslocamento funcional de casa para o trabalho, preceito que faz das ruas o mero segmento de reta que conecta dois usos funcionais. Mudar a forma de se mover, a forma de vivenciar os espaços da cidade, é mudar a forma de viver; é pensar a mobilidade atuando não somente como forma de controle social, ou de gestão dos deslocamentos da classe trabalhadora, mas como promotira de liberdade das escolhas; é aceitar a espontaneidade e a aleatoriedade de movimento dos corpos; é pensar a rua como espaço de um “corpo místico”, no sentido que Hans U. Gumbrecht dá a essa expressão (28); é viver a cidade em sua plenitude, liberta dos limites impostos por um conceito reducionista e opressor de cidade. Como relambrado em Junho de 2013, “as ruas também são pra dançar”.
Dito isso, é preciso ressaltar que, do ponto de vista da luta política, o MPL conquistou mais do que a revogação do aumento das tarifas na cidade de São Paulo; sua ação foi crucial para a inserção da mobilidade urbana como direito social, conforme previsto na Constituição Federal, assim como já eram saúde, educação, moradia, alimentação, trabalho, entre outros. A PEC 74/2013 (29), sancionada em 09 de setembro de 2015 no Senado, é de autoria da deputada Luiza Erundina, ex-prefeita de São Paulo. A questão da mobilidade urbana foi colocada no centro do debate político, e o MPL tem muito a ver com isso.
Junho de 2013 resgatou a confiança na ação coletiva. Lutas pelo direito à circulação nas cidades, pelo direito à moradia, por educação, contra a privatização dos espaços públicos se renovaram. Se é verdade – como aponta o FMI no relatório Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective – que a adoção de políticas de distribuição de renda é uma forma de garantir um crescimento sustentável, tudo indica que a construção e promoção de cidades igualitárias também se enquadre nessa perspectiva.
Essa história está ainda em construção. O caminho se confunde com o próprio caminhar. Como afirma o MPL, ele não começou em Salvador (2003), e não terminou em São Paulo (2013).
notas
1
Ver a propósito: MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, Boitempo, 2013.
2
HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, set./out. 2008. Disponível em: <http://newleftreview.org/?page=article&view=2740>. Acessado em jan. de 2016.
3
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo, Centauro, 2001.
4
ROLNIK, Raquel. O que é a cidade? São Paulo, Brasiliense, 1988.
5
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
6
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 24.
7
ROLNIK, Raquel. Op. cit., p. 39.
8
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Enclaves fortificados: a nova segregação urbana. Novos Estudos, n. 47, mar. 1997.
9
FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Capitalismo e morfologia urbana na longa duração: Rio de Janeiro (século XVIII – XXI). Scripta Nova. Revista Electronica de Geografia y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, v. XII, n. 270 (56), 2008. Disponível em: <www.ub.edu/geocrit/-xcol/144.htm>. Acesso em: dez. 2015.
10
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade, 2013.
11
HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. New York, Oxford University Press, 2005.
12
WILLIAMSON, John. A Short History of the Washington Consensus. Disponível em: <https://piie.com/publications/papers/williamson0904-2.pdf>. Acessado em jan. 2016.
13
DABLA-NORRIS, Era; KOCHHAR, Kalpana; RICKA, Frantisek; SUPHAPHIPHAT, Nujin; TSOUNTA, Evridiki. Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective. Disponível em: <www.imf.org/external/pubs/ft/sdn/2015/sdn1513.pdf>. Acessado em jan. 2016.
14
‘Como é que você vai botar o pobre ali?’, diz bilionário ‘dono da Barra da Tijuca’. Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150809_construtora_olimpiada_jp. Acessado em jan. 2016.
15
AZEVEDO, Lena. SMH 2016 remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro, Mórula, 2015
16
Mobilidade Urbana – O automóvel ainda é prioridade. Disponível em <www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2578:catid=28&Itemid=23>. O estudo completo pode ser acessado em: <www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8589>. Acessado em jan. 2016.
17
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo, Expressão Popular, 2015.
18
MATELA, Igor Pouchain. Transição regulatória no transporte por ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014, p. 62.
19
Lucio Gregori. Apud BORBA, et al. Brasil em movimento: reflexões a partir dos protestos de junho. Rio de Janeiro, Rocco, 2014, p. 103.
20
Campanha “Prefeitura, Eu não sou Cinderela” denuncia a dificuldade para conseguir ônibus durante a madrugada e cobra providências. Disponível em: <http://paneladepressao.nossascidades.org/campaigns/718>. Acessado em jan. de 2016
21
Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro. Disponível em: <www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4946719/4126916/Lei_Organica_MRJ_comaltdo205.pdf>. Acessado em jan. 2016.
22
Pesquisa sobre Ônibus Noturnos em Campo Grande, Rio de Janeiro. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B3ldM1LVCdOnc2tGdVR5RnJHR1E/view>. Acessado em jan. 2016
23
GOMES, Luiza. Jornalista retira texto do ar após propor que entrada em praias do Rio seja paga. O Dia, Rio de Janeiro, 13 jan. 2015. Disponível em: <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-01-13/jornalista-retira-texto-do-ar-apos-propor-que-entrada-em-praias-do-rio-seja-paga.html>. Acesso em jan. 2016
24
CHAUI, Marilena. Democracia e sociedade autoritária. Comunicação & Informação, v. 15, n. 2, jul./dez. 2012, p. 149-161.
25
Idem, ibidem.
26
SALVADOR, Evilasio. O injusto sistema tributário brasileiro. Revista Politika, vol. 1, n. 3, Brasília, Editora FJM, jan./jun. 2016.
27
Propostas buscam dar transparência às tarifas de transporte coletivo. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/22/propostas-buscam-dar-transparencia-as-tarifas-de-transporte-coletivo/tablet>. Acesso em 05 abr. 2016
28
A expressão tem sido usada por Gumbrecht quando trata de manifestações como as Jornadas de Junho.
29
Proposta de Emenda à Constituição Nº 74, de 2013. Disponível em <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115729>. Acesso em 05 jan. 2016
sobre os autores
Isabel Thees é graduada em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (1997) e em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio (2013), e mestrado em Arquitetura pela PUC-Rio (2016).
Otavio Leonidio é arquiteto (1994) e doutor em História (2005), é professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio (2005-2008).