O tema da memória, quando associado ao ambiente urbano, pode sugerir uma narrativa ligada à evocação de lembranças pessoais, uma conversa do cidadão consigo mesmo com o intuito de evidenciar vínculos com o lugar em que vive. Por outro lado, esse tema pode suscitar uma reflexão sobre a memória coletiva, ligada à experiência de compartilhamento de lembranças entre os diversos agentes que interagem no território urbano. É justamente essa discussão acerca da memória social, que se apoia em valores e afetos compartilhados, o interesse deste artigo, tendo como objeto de estudo a cidade, os seus artefatos, os espaços de convívio dos cidadãos, suas memórias.
Este estudo dá continuidade a investigações vinculadas ao grupo de pesquisa Arquitetura, Preexistências, Restauro ancorado no Programa de Mestrado da Universidade São Judas Tadeu, ligado aos temas da memória e da preservação do patrimônio. Tendo em vista esse objetivo, pretende aproximar conceitos de distintos campos disciplinares que permitam revigorar noções de patrimônio arquitetônico e urbano distanciadas da visão oficial apartada do cotidiano. Nesse sentido, procura expor conceitos que colaborem para a compreensão do potencial de artefatos urbanos de valor memorial na formação da identidade local, isto é, a valorização do patrimônio de forma ampliada, ao reconhecer as memórias sociais e não oficiais, como parte da construção do imaginário dos usuários da cidade.
A abordagem aqui proposta não tem, portanto, o objetivo da busca filosófica sobre o sentido da memória, mas sim o reconhecimento do vínculo entre a identidade social e o espaço da cidade, estabelecendo assim um elo entre o material e o imaterial, com base no exame de processos sociais que possam revelar novos significados e potencialidades dos artefatos investidos de valor memorial. Segundo esse prisma, o patrimônio da cidade é compreendido para além das arquiteturas exemplares e das narrativas dominantes, e mais propriamente como espaços que acumulam significados e memórias de amplo espectro, delineando uma espécie de contraponto à visão hegemônica.
Desse modo, pretende ater-se ao estudo de termos chave e da contribuição de autores de diversos campos de estudos que apoiam essa construção e ampliação do olhar sobre o patrimônio e as narrativas não oficiais presentes na cidade, ainda que de modo velado. A exploração do conceito de memória se coloca como um ponto de partida da discussão, ao considerar a cidade como uma construção coletiva de memórias e narrativas, onde a arquitetura exerce o papel de suporte das experiências sociais e históricas.
Assim, o termo lugar (1), conforme a compreensão do arquiteto norueguês Christian Norberg-Schulz é fundamental para a estruturação e materialização da questão do habitar, na medida em que não se apresenta apenas como uma unidade de espaço, mas, ao se considerar os elementos que o compõe, materiais e imateriais, como parte de um contexto que condensa significados e transformações ao longo do tempo.
Portanto habitar o lugar é também reconhecer os lugares da memória, sobretudo a não oficial, tomando como referência a proposição do historiador e crítico contemporâneo Pierre Nora em seu texto Entre memória e história: A problemática dos lugares (2), no qual, a partir nas definições de história e memória, expõe a importância de extrapolar as barreiras das narrativas programadas e reinterpretadas nos processos de documentação histórica, compreendendo os lugares da memória como espaços que acumulam novos sentidos e são construídos em comunidade.
Ao pensamento de Norberg-Schulz e de Nora articula-se a contribuição do sociólogo francês Maurice Halbwachs sobre memória coletiva (3), em uma de suas obras mais marcantes que leva o mesmo título, na qual investiga a relação entre grupos sociais em interação com indivíduos que, associados, sustentam a memória e esboçam perspectivas acerca da identidade de um espaço, localidade ou organização.
Michael Pollack prossegue com a reflexão sobre memória coletiva (4) ao problematizar as disputas de narrativas, entre o hegemônico e o não oficial enfatizando o papel do testemunho no âmbito da história oral, contribuindo para a subversão dos discursos programados de identidade e a valorização seletiva num contexto de cidade ou nação entre atores e processos sociais.
À discussão conceitual relaciona-se o estudo do território da cidade de São Paulo e do imaginário urbano com base no exame do programa Lugares da memória do Memorial da Resistência (5).
A aproximação empírica ao universo urbano paulistano, numa primeira etapa que antecede o corpo a corpo com a cidade, apoia-se nos escritos de Nádia Somekh (6), que contribui para a discussão ao apresentar uma análise aproximada da atuação dos órgãos de preservação no estado de São Paulo, bem como dos instrumentos que guiaram os objetivos e demandas da conservação, compreendendo e reforçando a legitimidade da busca pelo reconhecimento de artefatos que representam o cotidiano do usuário, ligados à memória social, mais do que apenas o patrimônio reconhecido oficialmente, aquele que é construído pela interação com a coletividade.
Sobre história e memória
Em busca de uma abordagem multidisciplinar, a princípio menciona-se aqui Maurice Halbwachs, o qual se destaca por seus conceitos sobre memória coletiva, em que reconhece a construção das lembranças como um conjunto de experiências não apenas individuais, mas, sobretudo, de grupos sociais. Segundo a abordagem do autor, a memória coletiva é resultado de contribuições de diversos dispositivos (7), ou seja, mecanismos de controle, de mediação entre os indivíduos e as instituições, e de pessoas que sustentam as lembranças dentro de um espaço e um determinado tempo.
Assim, a persistência da memória depende especialmente dos vínculos concebidos a partir das dinâmicas de grupos sociais que se adaptam às realidades. Nesse contexto, as percepções atuais são passíveis de interpretações e podem estabelecer relações de identificação e reconhecimento com certos fatos, como expressa Halbwachs:
“A consciência não está jamais fechada sobre si mesma, nem vazia, nem solitária. Somos arrastados por múltiplas direções, como se a lembrança fosse o ponto de referência que nos permitisse situar em meio à variação dos quadros sociais e da experiência coletiva histórica” (8).
Logo, a memória nunca é hermética ou fechada, tampouco estática, o que determina que os indivíduos estejam submetidos a diversos dispositivos que transformam a história e até mesmo reformulam e distorcem a memória.
A partir de tais concepções, é possível expor a fundamental diferença entre a memória afetiva e a história, a primeira recompondo parcialmente os eventos e persistindo na medida em que os grupos sociais portadores do testemunho a sustentam, isto é, enquanto a lembrança é transmitida de geração para geração, a segunda como uma interpretação de fatos, com uma finalidade didática e crítica de reconstrução do passado em busca de um vínculo entre presente e pretérito.
Acompanha-se o autor:
“[Memória coletiva] É uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade nada artificial já que retém do passado somente aquilo que está vivo ou é capaz de viver na consciência de um grupo que a mantém.
A história, que se coloca fora dos grupos e acima deles, não vacila em introduzir na corrente dos fatos divisões simples e cujo lugar está fixado de uma vez por todas. Ela obedece assim fazendo somente a uma necessidade didática de esquematização” (9).
É válido lembrar que o controle sobre as visões históricas é também parte de um processo de disputa de poder transmitido através dos tempos, no qual as imposições de valores morais, culturais, religiosos e étnicos, são bases de um modelo de dominação ao longo da história, em especial em países latinos ocidentais e africanos. Em decorrência disso, a relevância da história não se sobrepõe à memória, pois as lembranças recompõem o passado e o registro histórico é igualmente vinculado a uma interpretação de fatos, a uma pretensa linearidade sistemática de tempo e principalmente, à seletividade de narrativas.
Essas reflexões podem ser aproximadas às de Nora, em seu texto Entre memória e História, problemáticas dos Lugares, no qual enfatiza o processo de rompimento entre presente e passado em decorrência da aceleração do tempo, e assinala a importância da consagração de lugares de memória na atual sociedade desritualizada: “Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais” (10).
Nora destaca a efemeridade das lembranças, devido ao processo de globalização e modernização. A passagem do tempo deixa de representar um fenômeno natural, entre o nascer e o por do sol, e torna-se moeda de troca da sociedade capitalista, e a memória verdadeira, transmitida através de gerações dá lugar à memória sem passado, fabricada e atualizada. Segundo o autor, não se volta para o passado em busca de respostas ou ao presente para a construção do futuro. A busca pelo que há de vir transforma as relações dos indivíduos no que se refere à transferência dos testemunhos, num contexto familiar, através da herança memorial, de costumes e crenças; ou num contexto coletivo no compartilhamento da história documentada. Esse mecanismo contribui para a valorização das narrativas produzidas e midiáticas em detrimento da tradição memorial vivida no meio social ou intimo doméstico.
“Esse arrancar da memória sob o impulso conquistador e erradicador da história tem como que um efeito de revelação: a ruptura de um elo de identidade muito antiga, no fim daquilo que vivíamos como evidência: a adequação da história e da memória” (11).
Assim como Halbwachs, Nora aponta a diferença entre memória e história: A memória é a vida (12), a contribuição de lembranças e fragmentos que constituem a memória coletiva; já a história, vincula-se aos acontecimentos lineares e à continuidade temporal. Destaca o processo de transformação dos testemunhos e memórias em narrativas, em decorrência da necessidade da transmissão de fatos da história de forma didática e documentada, num processo de restabelecimento do vínculo com o passado. Portanto, tendem a conduzir novas possibilidades de interpretações de memórias, e nesse processo, à relação dos fatos históricos e cronológicos se sobrepõe o interesse pela difusão e valorização do testemunho.
Na possibilidade de contrapor o rompimento de tradições à necessidade de memória, coloca-se a pertinência dos lugares da memória como espaços que retêm e cristalizam testemunhos, como um ponto de referência em meio à relatividade das narrativas históricas, pois: “A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, as evoluções e às relações das coisas” (13).
Convém ressaltar a relação oportuna entre a ativação da memória e a criação de arquivos históricos, identificados pelo autor como suportes de lembranças que tiveram seu significado transformado ao longo do tempo: a lembrança deixa de ser uma prática social e se torna um acúmulo de informação vinculado a grupos de representatividade social.
“À medida que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se este dossiê cada vez mais prolifero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da história” (14).
O desaparecimento da memória tradicional, colocado pelo autor, dá-se a partir de um processo de transformação dos valores, relacionados à transmissão do testemunhos, validada na modernidade a partir do vínculo concreto que a memória é capaz de exercer, seja nos lugares da cidade, seja em objetos que adquirem significado quando relacionados a algum contexto individual, familiar ou coletivo. A memória não é mais vinculada apenas à tradição e aos costumes, mas ao hábito de acúmulo de referências do passado, como uma reconstituição das lacunas.
A informação histórica torna-se instrumento de poder, e a interpretação da memória adquire caráter formador de opinião e consciência humana, considerando fatos da tradição ou não.
A possibilidade da crítica à história modifica a forma pela qual a sociedade interage com os dados, e o compromisso com a fidelidade das narrativas traz à tona a necessidade de aproximação com a vida cotidiana partir de relações concretas com a memória, sobretudo no que se refere aos dados oficiais, que nem sempre são suficientes para reconhecimento e identificação de um fato, isto é, para rememoração daquilo que permanece na lembrança ou que representa uma minoria e que apenas a memória coletiva é capaz de resgatar e sustentar.
Tais ligações materializadas em arquivos podem, e devem ser expandidas no momento atual, entendendo a cidade como uma construção coletiva de narrativas da grande coleção de memórias, na qual o patrimônio histórico se coloca como matriz de permanência em meio às transformações do espaço urbano. Volta-se, portanto, à visão ampliada sobre tais artefatos de interesse histórico, não mais referente ao objeto isolado, mas ao conjunto de referências e lugares que possibilitam habitar a memória.
Habitar a memória
Colocam-se aqui as principais questões que motivam a construção e a busca por um sentido dessa memória não oficial neste estudo: que memória é esta e o que significa habitar a memória?
Para o entendimento da problemática do habitar a memória, recuperam-se as discussões sobre fenômeno do lugar, formuladas pelo arquiteto Christian Norberg- Schulz, ocorridas num momento de revisão dos conceitos vinculados ao movimento moderno da arquitetura, em que o arquiteto propõe o retorno às coisas (15), apoiando-se nas proposições do filósofo alemão Heidegger, nos estudos da fenomenologia e do sentido de ser e existir.
Contrapondo-se ao pensamento científico e funcional, Norberg-Schulz coloca a vida cotidiana como um conjunto de fenômenos concretos, afirmando que dão sentido a nossa existência: “O modo como você é, eu sou, o modo como os homens são é habitar” (16). Tais fenômenos se completam a partir de elementos existentes no espaço, e a junção desses qualifica o lugar, que se torna mais que apenas uma localização, mas uma identidade particular (17).
A compreensão dos fenômenos, nesse caso, inclui tanto os elementos concretos, como os imateriais, a percepção humana, a vida cotidiana e a memória. Portanto, o conceito de lugar, para o autor, é uma totalidade de fenômenos e coisas que possuem substância e característica capazes de atribuir significado ao lugar. Logo, os espaços da cidade ou os ambientes internos de um lugar situam o homem num contexto a partir da relação que ele estabelece com o ambiente ao longo do tempo.
Nessa perspectiva, a relação entre usuário e lugar coloca-se como estratégica, para que efetivamente possibilite o pertencimento e identificação com o ambiente: a adaptação de um meio natural a um contexto cultural, a partir da intervenção, é essencial para que o espaço se torne um lugar, e que faça parte da identidade dos usuários. A arquitetura se torna um caminho possível de ressignificação da memória e o reconhecimento da vocação do lugar: “Na verdade, proteger e conservar o Genius Locci (sic) implica concretizar sua essência em contextos históricos sempre novos” (18).
Assim, habitar é ativar a relação entre homem e lugar, que pressupõe necessariamente o desenvolvimento de uma ligação recíproca com o ambiente e todas as variáveis que compõem o espaço, as experiências vividas cumulativamente durante a vida ou acrescidas a partir da vivência do meio efervescente, ao qual se refere Halbwachs, em sua obra Memória Coletiva. Com base nessa compreensão, a identificação e a relação com o ambiente tornam-se mais efetivas, transformando a percepção do usuário à medida que um vínculo é criado, pois: “A identidade humana pressupõe a identidade do lugar” (19).
Logo, o habitar, não só guarda relação com os artefatos da cidade, mas implica também reconhecer, dialogar e estabelecer uma relação amistosa com os lugares que contribuem para a formação do imaginário urbano, como parte de uma construção coletiva de múltiplas narrativas que compõem o caráter do lugar. Nesse sentido, os artefatos da cidade reconhecidos pelo seu valor, ou não, se colocam como um registro concreto da experiência urbana e da passagem do tempo, que, uma vez apropriados, potencializam o acesso, pelo usuário, às narrativas não oficiais, construídas a partir da experiência e testemunho individual ou de grupos sociais.
Portanto, habitar a cidade é também reconhecer os lugares da memória não oficial, a cultura, a identidade e os portadores das lembranças como parte integrante de um meio complexo constituído a partir do diálogo entre o lugar e cidadão, que compõe o caráter dos espaços da cidade e extrapola os limites da valorização seletiva, relacionadas a estilos, linguagens arquitetônicas consolidadas em memórias hegemônicas.
A memória que interfere no olhar sobre a cidade
É possível, com base nas referências aqui mencionadas, compreender e ampliar o entendimento do espaço da cidade para além de um acúmulo de funções vinculadas à produção, mas a uma trama de relações entre cultura, identidade e a identificação do cidadão com o espaço habitado, onde o lugar do patrimônio não oficial pode se colocar como reivindicação e direito à memória.
Este artigo faz referência, portanto, ao patrimônio em seu sentido ampliado, em que os artefatos arquitetônicos de valor memorial tornam-se documentos de pedra da experiência coletiva, e os usuários possuidores das lembranças e testemunhos, pois a memória está onde o usuário habita. Dessa forma, o que está em questão não são apenas as arquiteturas célebres ou produções relevantes de um determinado tempo, mas sim espaços que abrigam memórias marcantes, mesmo as incômodas, que representam a vida cotidiana dos usuários da cidade.
A memória não oficial aqui mencionada volta-se às narrativas coletivas, ligadas às lutas sociais de minorias, as quais adquirem força no Brasil a partir do final dos anos 1970 e inicio de 1980, quando ocorrem as retomadas dos movimentos redemocratização após o período de repressão política.
É válido destacar, que as transformações ocorridas a partir desses processos e o reconhecimento de novas narrativas, ainda se apresentam de modo retraído em órgãos de preservação do patrimônio a partir dos anos 1980 no Condephaat, na procura do reconhecimento de memórias atribuídas a espaços menos nobres, como sanatórios, hospitais, vilas operárias e presídios, porém, ainda priorizando os traços que constituíram o surgimento das primeiras iniciativas de preservação do patrimônio no Brasil.
“Embora ampliando seu escopo discursivo, a ação do Condephaat nas primeiras décadas de existência foi similar à do nível nacional: tombamento de “monumentos” bandeiristas, construídos em taipa de pilão e poucos recursos investidos de forma centralizada. Foi inovador, no entanto, na introdução de conjuntos urbanos, vilas operárias e a definição de áreas envoltórias com raio 300 metros em torno de cada monumento” (20).
Nesse contexto, na tentativa de ilustrar ligeiramente as raízes da atuação dos órgãos de preservação, menciona-se aqui o SPHAN, fundado em 1937, com Gustavo Capanema à sua frente, ao lado de intelectuais como Rodrigo Melo Franco de Andrade, cujo objetivo era a preservação do patrimônio cultural identificado pelo grupo, os quais buscavam o senso cívico de proteção das memórias, a identidade brasileira e vestígios de sua formação (21).
Eram identificadas e priorizadas, inicialmente as memórias do Bandeirismo e do Barroco mineiro; e em São Paulo a busca pelo patrimônio voltou-se ao reconhecimento das construções de taipa do período de desbravamento do território e formação dos primeiros povoados da cidade. Vale ressaltar a atuação seletiva do órgão, que na tentativa de fortalecer uma identidade nacional, atribui valor prioritariamente a artefatos de camadas dominantes ao longo de sua atuação:
“No âmbito federal, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, criado através da Lei 378 de 1936 e regulamentado em 1937, passou a atuar em São Paulo tombando exemplares bandeiristas isolados, tratando-os como “monumentos” históricos” (22).
A partir de 1967 menciona-se o surgimento do Condephaat, como órgão responsável por medidas protetivas de espaços de interesse histórico de São Paulo, o qual carrega ainda as noções de valorização do SPHAN, com o objetivo de inibir o apagamento de narrativas dominantes: a representatividade da igreja católica, o reconhecimento das ocupações do litoral de São Paulo e das fazendas de café.
Nesse percurso da preservação no Brasil é de importância enfatizar a ampliação do significado do patrimônio para além do objeto excepcional isolado, mas abarcando o conjunto urbano, que é parte constitutiva dos bens de interesse histórico, além do surgimento uma série de princípios que contribuíram para a demarcação de espaços de relevância.
Coloca-se como marco desse período o estabelecimento do raio de envoltória de 300 m nos primeiros anos de atuação do Condephaat, a ampliação da noção de patrimônio, num segundo momento, na Carta Patrimonial de Veneza, da qual o Brasil participa como signatário. Como aponta Nádia Somekh: “amplia a noção de monumento histórico, estendendo-a não só a grandes criações, mas também a ‘obras modestas’ que tenham adquirido significação cultural” (23).
Portanto, é possível entender que as ações de preservação dos artefatos da cidade tiveram como prioridade a manutenção da memória hegemônica, branca, europeia, colonizadora, colocada como símbolo da construção da cidade e identidade, e que, apesar da ampliação do conceito de conservação, as memórias a serem preservadas, relacionam-se a inventários elaborados no interior de instituições compostas por grupos intelectuais, apartados das tensões do meio urbano, alheios à dimensão do cotidiano dos cidadãos, portadores da memória social.
Vale resgatar, nessa perspectiva de negociação entre o não oficial e o hegemônico, nas dinâmicas políticas de enquadramento, isto é, na formulação de discursos de história, de acordo com Michael Pollack (24), ao enfatizar a história oral como um mecanismo de escuta e iluminação das narrativas subterrâneas, vinculadas às minorias. Logo, os processos associados às práticas patrimoniais construídas na colaboração ativa entre instituições e indivíduos produtores do cotidiano, colocam-se como um meio possível de aproximação entre o espaço construído da cidade e o usuário ativando relações de pertencimento e cidadania, pois:
“Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais” (25).
Assim, é possível sustentar que a memória da cidade é aquela que nos é fornecida, mas também a que podemos construir a partir de processos sociais. A busca do equilíbrio entre a memória e história, quando relacionado ao patrimônio, pode representar uma estratégia para órgãos de preservação na interação com a sociedade, numa ação de integração das discussões de conservação, que incluem estratégias de gestão participativa e de proteção abrangente da memória; aproximando o cidadão de suas próprias narrativas, testemunhos e representações simbólicas.
Acerca das discussões colocadas, cita-se a iniciativa do inventário Lugares da Memória, que subentende a coleta de dados e identificação de espaços que abrigaram eventos repressivos e emblemáticos no período da ditadura, simbolizando as demandas de preservação do patrimônio de valor memorial, vinculados ao reconhecimento e diálogo coletivo com memórias difíceis e que não convém esquecer.
Programa Lugares da Memória - PLM
Esse programa refere-se a um conjunto de ações de preservação, comunicação entre os usuários da cidade e o patrimônio de valor memorial do período da repressão. Idealizado em 2007 pela diretoria da Pinacoteca da cidade de São Paulo e consolidado entre 2010 e 2016, tem como objetivo expandir a ação de preservação e reconhecer a memória ligada às lutas por liberdade e democracia junto ao Museu da Resistência.
A atuação do programa ocorre por meio do levantamento, documentação e sinalização de espaços que abrigaram eventos traumáticos e relevantes no contexto da Ditadura Militar de 1964, além de ações educativas, de modo a aproximar os habitantes das memórias e testemunhos do período, colaborando para a formação crítica, estabelecendo diálogos entre os tempos.
Segundo a instituição, o projeto divide-se em quatro vertentes: 1. Inventário, que é a base do programa 2. Exposição “Lugares da Memória. Resistência e repressão em São Paulo” 3. Sinalização dos Lugares de Memória 4. Museu de Percurso, onde atualmente apenas as duas primeiras categorias são desenvolvidas.
Destaca-se neste artigo a ação de inventário do programa, com a busca do reconhecimento de espaços que foram abrigo de eventos traumáticos e ações repressivas, identificadas a partir de pesquisas da equipe do memorial:
“Inicialmente, o levantamento partiu de pesquisas em publicações, como os diversos relatórios e dossiês sobre violações de Direitos Humanos na ditadura, além de livros historiográficos, de memórias e relatos jornalísticos, entre outras narrativas que tomam, por tema, histórias da resistência política (com uma ênfase bastante forte nas organizações políticas clandestinas de esquerda) e informações sobre o aparato repressivo.
Em um segundo momento, a pesquisa seguiu através do aprofundamento do estudo sobre os primeiros Lugares selecionados. A partir dessa ação, a equipe identificou a fertilidade de um método de pesquisa que chamou de lugares inter-relacionados. Trata-se de um processo que gera um círculo de informações comuns, permitindo que a pesquisa mapeie mais do que acontecimentos, mas processos sociais de uma região, em um determinado período, em sua extensão, fazendo surgir assim novos Lugares” (26).
Dessa forma, está na gênese do programa o reconhecimento plural de memórias vinculadas a grupos sociais atuantes na luta por direitos e retomada do sistema democrático, num sentido ampliado de patrimônio, que abarca não apenas as grandes narrativas, mas as demandas de preservação vinculadas ao cotidiano vivido, admitindo a relevância das lutas por direitos como parte constituinte da história e imaginário da cidade de São Paulo.
Assim, o programa representa uma nova abordagem sobre as memórias difíceis, ao evidenciar não apenas espaços, mas o diálogo participativo entre a instituição, comunidade e ex-presos políticos, num mecanismo colaborativo na reunião de fragmentos de tal período.
No momento, o PLM tem como objetivo somente a documentação e reconhecimento de tais espaços, sem uma previsão ou projeto de intervenção ou utilização museológica de cada um dos imóveis ou espaços inventariados, atendendo apenas a demarcação de alguns desses lugares, seguindo a linha de ação estritamente relacionada com a sinalização.
Portanto, a partir de tal iniciativa, abre-se uma gama de possibilidades para a pesquisa científica, seja de forma experimental, através de demandas emergentes de musealização do programa ou de vínculos que tais espaços podem adquirir, criando-se uma oportunidade de reflexão acerca da utilização de espaços de caráter memorial que extrapolam os limites institucionais e as narrativas seletivas.
Convém destacar dentre os espaços inventariados, o aparato repressivo da Operação Bandeirante instalada nos prédios da Rua Tutóia, responsável pelo recolhimento de presos, aproximadamente cinco mil pessoas, para interrogatórios e torturas, acusando-se a morte de pelo menos cinquenta.
O espaço inaugurado em 1969, com a instituição da Operação, funcionou até o fim do período de repressão, sob o comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra; foi local de assassinatos não desvendados até recentemente, como a morte de Vladmir Herzog e Manoel Filho, que representaram um ponto de ebulição para o levante popular contra a ditadura, em momento de crise.
A relevância do DOI-Codi para o inventário dá-se pelos atos ocorridos no espaço no período da repressão, na possibilidade de enfatizar a potencialidade do lugar e da memória para os dias de hoje, e assim reproduzir ideais de liberdade de pensamento e expressão, o desejo de um estado democrático de direito, pois mais importante que ações museológicas de réplicas dos espaços de tortura, simulacros, sustenta-se ser mais convincente afirmar o respeito aos direitos humanos, tão combalidos nos dias atuais, por desconhecimento do seu real significado, confundindo-se, com a defesa dos delitos, ou de quem os comete.
“Desprovido de valor arquitetônico relevante e distante de um circuito de artes plásticas e música erudita, ordinariamente situado em um bairro de uso misto, o prédio cinza da Rua Tutóia pode se dedicar apenas a provocar conhecimento e reflexão. Em outras palavras, talvez já tenha chegado, e há muito, o momento de se colocar o dedo na ferida e temos aqui uma oportunidade ímpar” (27).
Sabendo que patrimônio não se restringe mais somente a um objeto, mas sim, um conjunto que extrapola os limites do material; o usuário adquire nesse espaço um novo papel, mesmo que de forma temporária, torna-se testemunho do processo social e agente da transformação do lugar.
À vista disso, vale o destaque para as ações organizadas em prol da memória de ex-presos políticos e transformação do espaço que hoje abriga serviços de segurança da Policia em memorial. Realizadas pelo Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça e pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, os atos ocorrem todos os anos desde 2014, quando o golpe militar completou cinquenta anos, apoiadas não apenas por instituições, mas por jovens, além de familiares e ex-presos políticos.
Entre poesias e testemunhos, encenações de teatro e concertos musicais, tais atos demonstram um novo sentido para a ação de ocupar o espaço e reivindicar a memória e revelam a vocação do lugar, ressignificando lembranças, dialogando com o presente e habitando a memória.
Considerações finais
A legitimidade das memórias não oficiais ou incômodas coloca-se como uma oportunidade de ampliação da atuação de instituições de preservação, cultura em interação com a sociedade, ao incluir as solicitações dos usuários da cidade, contribuindo para o fortalecimento das relações de apropriação e construção da identidade coletiva, que vai além do reconhecimento presente na história hegemônica, ao elevar os indivíduos e grupos sociais à condição de protagonistas, agentes e produtores das próprias narrativas.
O Programa “Lugares da Memória” representa um contraponto à ação restrita da memória, pois aqui o chamamento público acolhe a participação de grupos sociais para a interação e identificação de espaços que abrigaram episódios repressivos e coloca-se como uma abordagem repleta de possibilidades para a difusão da memória e utilização dos espaços, abarcando de forma plural os testemunhos e lembranças de atores sociais que fizeram parte do contexto, reconhecendo-os no presente e transmitindo para o futuro, incorporando a memória viva presente na identidade do cidadão e da cidade.
Vale citar a atual iniciativa de comunicação do programa com a comunidade através do aplicativo do Instagran “#SP64” (2017), resgatando a memória da ditadura com um mapa interativo da cidade, numa estratégia que se apropria da necessidade de locomoção aliada ao ato conveniente de lembrar, identificar e interagir com a memória.
Além das iniciativas já descritas, coloca-se aqui a relevância de inventários sentimentais, como as Jornadas Patrimoniais que interagem com o usuário da cidade ao produzir e reunir memórias, além de ações dos diversos coletivos no centro e periferias, como agentes de apropriação e transformação da cidade na pluralidade de identidades, na difusão de memórias não oficiais e na realização de mobilizações de resistências no território de São Paulo.
Seja como e onde for, o ato de reconhecer a memória, sobretudo a não oficial, como um componente que interfere no olhar sobre a cidade, permite estabelecer um diálogo recíproco entre o cidadão e as camadas de tempo do espaço urbano, uma relação contemporânea, que revê o passado e entende o presente como uma construção contínua de múltiplas narrativas, muito além da história que nos foi dada.
notas
1
SCHULZ, Christian Norberg. Fenômeno do Lugar. In NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica (1965-1995). São Paulo, Cosac Naify, 2013, p 443-461.
2
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n. 10, São Paulo, PUC-SP, 1993, p. 7-28. Disponível in <https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/12101/8763>.
3
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e Memória individual. In HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990, p. 25-47.
4
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n.3 p.3-15, 1989. Disponível in <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>.
5
ARRUDA, Beatriz C. de. O Museu da Cidade de São Paulo e seu Acervo Arquitetônico. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, 2014.
6
SOMEKH, Nadia. Patrimônio cultural em São Paulo: resgate do contemporâneo? Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 185.08, Vitruvius, out. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.185/5795>.
7
A referência ao termo dispositivo remete-se a Michel Foucault, Halbwachs utiliza a expressão Meio efervescente para sinalizar as relações entre instituições, indivíduos e grupos sociais, que condicionam a construção de narrativas. Entende-se que os conceitos possuem uma relação clara e oportuna para o desenvolvimento do tema da memória coletiva.
8
HALBWACHS, Maurice. Op. cit.
9
HALBWACHS, Maurice. Oposição final entre a Memória Coletiva e a História. In HALBWACHS, Maurice. Op. cit., p. 81 e 82.
10
NORA, Pierre. Op. cit., p. 7.
11
Idem, ibidem, p. 8.
12
Idem, ibidem, p. 9.
13
Idem, ibidem, p. 9.
14
Idem, ibidem, p. 15.
15
SCHULZ, Christian Norberg. Op. cit., p. 445.
16
Idem, p. 454.
17
Idem, ibidem, p. 454.
18
Idem, ibidem, p. 454.
19
Idem, ibidem, p. 454.
20
SOMEKH, Nadia. Op. cit.
21
O desenvolvimento desse tema escapa ao escopo principal deste artigo. A título de aprofundamento, indica-se aqui a produção de Maria Cecília Londres Fonseca, que esclarece conceitos e posturas vigentes na política pública de preservação do patrimônio nacional desde sua origem. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, UFRJ, 2009.
22
Idem, ibidem.
23
Idem, ibidem.
24
POLLAK, Michael. Op. cit., p. 3-15.
25
Idem, ibidem, p.10.
26
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA. Apresentação e Metodologia do Programa Lugares da Memória. São Paulo, 2016, p.11 e 12. Disponível in <www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/upload/memorial/debates/131249994466318000_Apresentacao_MetodologiaPLM_site.pdf>.
27
RUBINO, Silvana Barbosa. Parecer de processo de tombamento DOI-Codi, 66578/2012,p. 3 Disponível in <http://studylibpt.com/doc/4762792/clique-aqui-para-ler-o-parecer---secretaria-da-cultura>.
sobre as autoras
Aline Lourenço Campanha é arquiteta (Universidade São Judas Tadeu, 2016), mestranda pela mesma Universidade, na linha de pesquisa: Projeto, Produção e Representação, integrante do Grupo de Pesquisa CNPq “Arquitetura, preexistências, restauro”, com bolsa da CAPES/USJT.
Eneida de Almeida é arquiteta e doutora (FAU USP, 1981 e 2010), mestre em Studio e Restauro dei Monumenti - Università degli Studi di Roma La Sapienza (1987). Professora da USJT na Graduação e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, coordena o Grupo de Pesquisa CNPq “Arquitetura, preexistências, restauro”, é coeditora da revista eletrônica arq.urb, do PGAUR/USJT.