Historiografia, crítica e propaganda
Quando Luigi Pirandello escreveu a peça teatral "Assim é (se lhe parece)" (1), ainda em 1917, talvez não imaginasse que o tema pudesse ser tão abrangente e se manter atual por tanto tempo. A comédia, mais acertadamente classificada como melancólica, se passa em uma cidade pequena para onde se mudam um casal e uma senhora. A partir daí toda a comunidade local passa a montar hipóteses para o estranho arranjo familiar. Os relatos sofisticadamente bem embasados vão criando uma sensação angustiante de que a verdade jamais virá à tona. O que o autor explora, durante os três atos em que se sucede a trama, é a questão da verossimilhança em contraposição à verdade universalizante.
Extrapolando aquele universo, é possível associar esse conceito à historiografia da arquitetura. Diferente da história – sucessão de acontecimentos –, a sua escrita pressupõe uma construção que depende, no caso daquela disciplina, da seleção dos exemplares e das ocorrências que permitirão ao historiador, diante de um recorte temporal, geográfico e cultural, imprimir a sua visão e interpretação dos fatos (2).
Deste modo, entendendo a historiografia como uma história contada, uma narrativa, assume-se que não existe uma única possibilidade, mas diversas possíveis descrições e formas de abordar um mesmo acontecimento ou período, como caricaturado por Pirandello ainda no início do século passado. Em relação à arquitetura, esse item é bem pontuado por Gustavo Rocha-Peixoto em seu livro Estratégia da aranha:
"O que a historiografia do modo culturalista almeja não são mais os novos modelos de explicação total. O objetivo é propor explicações parciais para quaisquer conjuntos de fatos (...). Para isso não caminha necessariamente pelas mesmas vias já tantas vezes trilhadas do tempo linear, mas acha estradas secundárias, atalhos, fissuras inexploradas no tecido do tempo em procura de significados alternativos e não excludentes" (3).
Entendemos que a escolha da maneira de contar e dos exemplares que irão representar uma determinada narrativa já constitui, em si, um ato crítico. Em outras palavras, um julgamento anterior foi aplicado e por determinados critérios decidiu-se que tais obras ilustrariam melhor aquela história. Ruth Verde Zein faz uma pertinente observação acerca dessa questão:
"Crítica de arquitetura, porém, não é só o discurso escrito. Publicar esta e não aquela obra, dar mais ou menos destaque a ela na publicação, debate-la com mais cuidado ou apenas dar-lhe um modesto espaço pode ser uma forma, e bastante direta, de exercício da crítica da arquitetura" (4).
A partir dessas colocações preliminares, o que se pretende ao longo do texto é investigar a influência da propaganda na formação dos juízos acerca da arquitetura. Suspeitamos que a sua divulgação nos meios de comunicação de massas, seja como protagonista – em revistas destinadas à publicação de projetos – ou como coadjuvante – como cenário nos anúncios publicitários de outra natureza –, possa interferir nas avaliações e na formação dos juízos críticos e, consequentemente, reverberar sobre a construção historiográfica.
Para entender a possível interferência da publicidade e da propaganda nesse contexto, é necessário investigá-la dentro do campo da comunicação e da cultura de massas. Luiz Costa Lima situa o incremento no interesse nas pesquisas sobre as consequências das mensagens publicitárias na sociedade e na cultura – o que diretamente aponta para a relevância do fato – a partir da década de 1940 nos Estados Unidos (5). Foi nessa década, em especial no período do pós-guerra, quando medidas políticas e econômicas propiciaram uma euforia desenvolvimentista naquele país, que fomos buscar as primeiras pistas sobre a exploração que iniciaremos a seguir.
Por fim, apesar de sugerirmos a identificação de uma possível origem histórica do fenômeno, não pretendemos construir uma argumentação baseada na sequência linear de acontecimentos, mas tecer uma narrativa que acolha acontecimentos e autores que proporcionem chaves de leitura para o tema em questão. Assim, avançar e retroceder no tempo, reunir fragmentos e cruzar fatos são estratégias através das quais propomos a aproximação ao problema.
Juízos e reverberação midiática
Conforme observa Josep Maria Montaner, a crítica presume a aplicação de um juízo e de uma valoração, o que, portanto, subentende a existência de valores diferentes. Onde há consenso, portanto, não há dúvida, daí o fato de a crítica arquitetônica enquanto instituição ter se estabelecido mais fortemente a partir da segunda metade do século 18, juntamente com o Neoclassicismo. Seu desenvolvimento mais profícuo, contudo, ocorreu ao longo do século 19 na esteira do surgimento do ecletismo e da pluralidade de correntes e estilos que se tornaram possíveis a partir do enfraquecimento da tratadística clássica unificante (6).
No entanto, foi a possibilidade de propagação dessas opiniões contrastantes que alavancou a crítica e em grande parte isso se deveu ao desenvolvimento da mídia e dos meios de comunicação, canais através dos quais as obras e seus juízos puderam alcançar públicos cada vez maiores (7). Portanto, as editoras, periódicos, jornais, além da televisão e do cinema, exerceram um papel transformador na difusão desses julgamentos e, por conseguinte - o que suspeitamos -, na estruturação da crítica e da historiografia da arquitetura.
Naquelas mídias, as imagens utilizadas para ilustração, exemplificação ou comprovação de hipóteses, permitem oferecer ao espectador um ponto de vista controlado de acordo com as intenções do crítico, editor ou arquiteto, através do manejo das fotografias e mesmo de alterações e edições de imagens. E esse recurso, embora possa parecer uma facilidade contemporânea, fruto dos programas de editoração, é praticado pelo menos desde o começo do século 20. Beatriz Colomina, arquiteta e historiadora em Princeton, demonstrou em seu livro Privacy and publicity (8), que Le Corbusier não se privava de fazer modificações nas fotos de seus projetos para publicá-los em sua revista L`Espirit Nouveau, de modo a conseguir transmitir a mensagem que lhe interessava. As intervenções iam desde aplicação de air brush nas imagens - de modo a proporcionar-lhes uma estética mais purista – até recortar elementos inteiros e eliminar o entorno das casas para que reforçassem a ideia de objetos isolados (9).
Desde então, a sujeição da arquitetura aos meios de comunicação só vem se estreitando e se intensificando. Beatriz Colomina pesquisa intensamente esse vínculo e sustenta a tese de que a arquitetura moderna só se configurou como tal e conseguiu o grau de representatividade que todos conhecemos a partir de seu engajamento umbilical com a mídia (10). Diante disso, ela afirma, a arquitetura passa a se confundir com todos seus sistemas de representação:
"O edifício deve ser entendido da mesma maneira que seus desenhos, fotografias, textos, filmes e propagandas; não só porque estes são os meios em que mais frequentemente o encontramos, mas porque o edifício é, em si, um mecanismo de representação" (11).
Os meios de comunicação se constituem não apenas em fonte propagadora da crítica arquitetônica institucionalizada, ou seja, aquela feita por profissionais, mas também como difusores das imagens das arquiteturas que passam a alimentar o campo e servir de referência a projetos a serem executados. Deste modo, independente dos critérios que propiciaram a sua publicação, o que defendemos é que a partir do momento em que são registradas tornam-se exemplares e passam a influenciar outros projetos e a contribuir para a formação do gosto de diferentes públicos.
E essas imagens, vale reforçar, são passíveis de manipulação, tal como ilustramos acima através das descobertas da pesquisa de Colomina. Indo além, em sua tese doutoral, Fernando Diez – editor da revista Summa+ e professor da Universidade de Palermo – afirma que alguns projetos são idealizados para serem fotogênicos e emblemáticos:
"O edifício é um meio necessário para chegar à projeção de suas representações. Esse utilitarismo cru não merece reprovação, pelo contrário, nos círculos da crítica e entre os que praticam a 'alta arquitetura' de investigação predomina um consenso implícito, no qual é lícito que o edifício sacrifique, para esse fim, questões mais elementares e pueris de habitabilidade. São mais importantes os planos, vídeos, explorações visuais e montagens de todo tipo, que superpondo seus fragmentos e multíplices camadas são projetados nas salas dos museus, bienais e congressos ou nos sites da internet, do que o prédio concreto e a prova de seu uso" (12).
A tarefa do historiador e do crítico torna-se mais delicada nesse cenário. É preciso identificar com cautela as reais motivações que conduzem a produção em determinada direção (ou direções). Como dito, a construção da historiografia da arquitetura configura-se em um ato crítico na medida em que elege alguns projetos para sua exemplificação. Não é necessário dizer que outros tantos passam incólumes pelos registros. Cabe ao pesquisador buscar as outras histórias paralelas e, como um investigador, reunir seus rastros e construir uma narrativa factível.
Esses critérios de valoração se alteram também a depender do personagem ou ator que lhe atribui o juízo. Nestes termos, investigar com olhar jornalístico as fontes onde a arquitetura não se apresenta intencionalmente formatada como um documento histórico, mas como coadjuvante – por exemplo, nos anúncios publicitários -, pode trazer aportes reveladores acerca dos diferentes pontos de vista que incidem sobre o mesmo objeto.
Paralaxe crítica
O julgamento da arquitetura é afetado por uma paralaxe (13), ou seja, um deslocamento entre as diferentes percepções que são formadas pelos distintos atores que se relacionam ao projeto. Assim, os juízos do crítico, do arquiteto da prática e do arquiteto da academia e ainda do cliente, usuário ou contratante acabam sendo essencialmente diferentes.
O arquiteto e professor da Universidade do Texas Michael Benedikt redigiu a introdução de uma edição da Harvard Design Magazine intitulada Judging Architectural Value (14). Toda a publicação, editada por William Saunders, é dedicada a discutir, por diferentes prismas, a questão da valoração do projeto de arquitetura. No texto de abertura, Benedikt elenca quatro vieses de julgamento e a forma como se concretizam. Deste total, dois são especialmente relevantes para subsidiar nossa argumentação.
Segundo o autor, os arquitetos são avaliados pelo público em geral e nesse caso ele pondera que o julgamento é mais informal, tanto quanto superficial: gostar ou não gostar, ser bonito ou feio. Alguns poucos jornais (15) publicam alguma crítica bem como as revistas de arquitetura que são direcionadas aos leigos (16). Além disso, o público é capaz de manifestar sua aprovação através de seu comportamento e, assim, os lugares que gostam de frequentar e as propriedades que compram ou alugam também indicam subjetivamente um juízo de valor.
Outro tipo de julgamento que Benedikt lista ocorre entre os arquitetos. Eles se honram mutuamente através de prêmios e distinções, concursos, publicações em revistas, livros e convites para conferências. Cabe a ressalva aqui que consideramos que esse grupo não seja homogêneo de modo que as divergências internas da classe terminam por impactar, não apenas o juízo que emitem, mas também os projetos que executam.
Fernando Diez divide o resultado final do conjunto da produção arquitetônica, atribuindo a elas os nomes de arquitetura de proposição e arquitetura de produção (17). Segundo esta categorização, a primeira é projetada e construída em condições diferenciadas, amplamente publicada e reconhecida pela crítica arquitetônica por suas qualidades exemplares. É ligada aos círculos acadêmicos e utilizada como referência nos ateliês de projeto. Já a arquitetura de produção, é aquela massificada, que responde às demandas da encomenda e que, por ser quantitativamente prevalente, molda e dá forma às cidades, especialmente em suas áreas de expansão, onde se reflete o modo de produzir que a caracteriza.
Na verdade, essas distinções, mais que revelarem uma diferença no produto construído, descortinam uma divergência nos critérios de julgamento a que são expostos os projetos arquitetônicos. Na publicação anteriormente citada, William Saunders realiza uma entrevista com Kenneth Frampton (18). Consideramos pertinente reproduzir aqui uma das primeiras perguntas que faz: "Por que, no século 20, há tanta diferença entre o gosto erudito e o popular em arquitetura, entre os edifícios estimados pelos historiadores e críticos e aqueles bem recebidos pelo público?" (19) Em sua resposta, Frampton pondera que esse fenômeno parece ter se reforçado na segunda metade daquele século. Segundo sua opinião, as casas usonianas (20) de Frank Lloyd Wright e as Case Study Houses (21), representavam uma maior aproximação entre o gosto erudito e o popular.
O grande momento de ruptura ocorre, de acordo com Kenneth Frampton, a partir do que ele chama de ocupação populista dos subúrbios americanos. A construção de casas que atendiam ao gosto popular se tornou um bom negócio para a especulação imobiliária e igualmente acessíveis aos compradores através de planos especiais de financiamento e hipotecas. Diante disso, o entrevistado credita à ação dos hidden persuaders (22) a difusão daquele modelo.
E esse é o ponto que interessa à nossa argumentação. Na opinião de Frampton, ações de marketing e de publicidade, respondendo à interesses capitalistas dos empreendedores foram responsáveis pela difusão de imagens e a reverberação do gosto popular através dos potentes meios de comunicação de massa então disponíveis. Costa Lima relata a intensificação do modelo que ocorre nesse período, em especial na sociedade americana:
"A partir da década de 1940, nos Estados Unidos, questão pouco frequente entre ensaístas, pensadores e pesquisadores sociais tornou-se assídua entre suas publicações. Tratava-se da importância de consequências socioculturais das mensagens transmitidas por canais, dotados de alto poder de alcance e/ou reprodução (jornais, histórias em quadrinhos, revistas de atualidades, rádio, cinema, disco, em breve, a fita magnetofônica e a TV)" (23).
O término da II Guerra inaugurou um momento muito peculiar da economia americana, que passaria a ocupar uma posição hegemônica no mundo ocidental. O fim do conflito trouxe novas oportunidades e o consumo, que estava estagnado desde a grande depressão da década de 1930, aumentou vertiginosamente. Esses dados, aliados a medidas econômicas incentivadoras por parte do Estado fez emergir a verdadeira classe média americana, fortalecida e com grande poder de compra e consequentemente, maior representatividade (24).
E essa classe média, em grande parte composta pelos muitos veteranos de volta ao país, terminou criando uma demanda súbita por novas unidades habitacionais. Assim, entre 1952 e 1966 foram erguidos os primeiros e maiores subúrbios construídos em massa. As comunidades planejadas, empreendimentos da firma Levitt & sons, receberam o nome de Levittown (25). Além dos preços acessíveis e planos especiais de financiamento para os veteranos, os projetos das casas representavam o gosto popular dominante.
São esses os modelos aos quais Frampton se refere na entrevista que concede a William Saunders. A referência aos hidden persuaders faz alusão às estratégicas de pesquisa de mercado e mapeamento das demandas de consumo. Essa dinâmica de funcionamento se coaduna com a lógica da indústria cultural, em que, a partir de uma sociedade de consumo plenamente instalada se dá a exploração, com fins comerciais e econômicos, de bens considerados culturais (26).
Diez descreve com precisão a engrenagem desse sistema ao afirmar que "a maquinaria do marketing opera alternativamente como um leitor e um escritor destes estilos. Lê, copia e amplifica as tendências culturais, e as transforma em ‘estilos’ reproduzíveis em produtos" (27). Assim, a incorporação da arquitetura como um legítimo produto cultural, a subjuga às noções de gosto e de moda, inseparáveis critérios de julgamento e valoração através dos quais a disciplina passaria a ser também avaliada, como também observa o autor:
"De uma forma diferente, mas convergente, a arquitetura se constitui, ela mesma, em um produto comercial. É projetada para um mercado que é auscultado, não mediante recursos da própria arquitetura, mas mediante as enquetes prospectivas da mercadotécnia. Para a moradia, trata-se da estandardização de regras de desenho que refletem uma demanda cujos gostos e preferências já não são reconhecidos através do lento processo histórico que havia caracterizado o processo eminentemente cultural de sua evolução tipológica" (28).
Nesta condição, torna-se sensível aos desejos manifestos pela sociedade na mesma medida em que se descola da teoria e da história da arquitetura, o que termina por impactar no seu modo de produção e no juízo, que passa a se alimentar em um campo alheio ao da disciplina. No que diz respeito às casas, a ligação é ainda mais direta especialmente por conta da familiaridade que os usuários mantêm com esse programa, como se a expertise do arquiteto fosse necessária, nesse caso, apenas para interpretar e tornar factíveis os desejos do cliente.
Arquitetura como produto cultural
A partir da plena instalação do modelo baseado na dinâmica produtiva da indústria cultural, fica estabelecida também a sua subordinação aos meios de comunicação de massa. Consequentemente, os anúncios deixam de ter apenas um caráter informativo e descritivo e passam a incorporar um papel subjetivo de criação de uma identidade cultural e da antecipação de hábitos e preferências de consumo. Com a propaganda, pretende-se formar um público consumidor, despertar desejos e construir uma imagem e um estilo de vida que passem a ser almejados. Diez também observa esse momento de transição:
"depois da ampliação do mercado, promovida pelo welfare-state, o que adquire uma dimensão dominante e superpresente é a área do marketing em suas duas facetas principais: o sistema prospectivo de auscultação da sociedade, e o sistema de comunicação e difusão, pela mídia, do produto" (29).
No caso de Levittown, a mídia se ocupou em plasmar uma imagem ideal que se sobrepusesse aos aspectos negativos dos subúrbios. Assim, os inconvenientes da distância dos centros e da falta de infraestrutura urbana seriam compensados pelos atributos imateriais que a estratégia publicitária buscou adicionar ao empreendimento. Desse modo, não só as possíveis objeções iniciais seriam atenuadas, mas convertidas em virtudes, de maneira que a localização periférica e o entorno intocado se tornaram altamente desejáveis a partir da associação com conceitos de felicidade, tranquilidade e bem-estar.
Os anúncios apresentados a seguir demonstram a habilidade da propaganda em formar, subliminarmente, as opiniões que ratificam os produtos que oferecem. Antes de vender a casa, a propaganda pretende vender um estilo de vida. Deste modo, através da imagem e do texto que postula: "Essa é a forma como vivemos em Levittown", são introjetados nos consumidores os valores de conforto e segurança. Uma mensagem de esperança depois dos duros tempos que se arrastavam desde o entre guerras.
A casa ao fundo em outra publicidade aparece como cenário para o instantâneo de harmonia da família: o casal que se entreolha, a criança brincando ao lado dos pais; tudo é leve e colorido com o intuito de produzir a associação entre o lugar que se vive e o estado de espírito que ele é capaz de proporcionar. Para não deixar dúvidas sobre a interpretação, em letras grandes lê-se: "Viva melhor em uma casa própria", reforçando e confirmando a construção mental induzida pela imagem cuidadosamente escolhida.
Através desses mecanismos, a incorporação de referências e os critérios de julgamento passam a acontecer em uma esfera de legitimação que está além das questões e critérios intrínsecos à disciplina arquitetônica, como reiterado por Fernando Diez: "No caso da arquitetura, isto desloca seu fundamento para fora da disciplina e, portanto, a faz refém de aquelas disciplinas que se arrogam o conhecimento necessário para interpretar os desejos do público" (30).
Com a perda da autonomia resultante desse processo, a arquitetura passa a ser apresentada aos consumidores por intermédio dos novos vetores - televisão, revistas, jornais – através dos quais são introduzidos modelos que, a depender das conexões que se estabelecem, passam a ser tidos como desejáveis e são apropriados por parcelas da sociedade. O tipo e o grau de empatia e identificação que estabelecem não só com o objeto, mas também com quem transmite a mensagem – seja um indivíduo ou um meio de comunicação – são fatores essenciais ao bom funcionamento da estratégia.
Marshall McLuhan (31), ao teorizar sobre essa dinâmica mercadológica recém surgida no pós-guerra, propõe a ideia de que o meio através do qual a mensagem é transmitida é, ele próprio, o conteúdo da mensagem. Se entendida como objeto de consumo, portanto, a habitação também comunica sobre seus moradores, como vivem, seu nível socioeconômico e outras distinções sociais. Em consequência, uma casa não é julgada apenas pelos seus atributos arquitetônicos formais ou espaciais e até mesmo tectônicos, mas pelo capital simbólico que a mídia e a indústria cultural foram capazes de adicionar-lhe.
A indústria, no outro extremo desse azeitado esquema de produção capitalista, trata de ajustar seus produtos de forma a deixá-los em consonância com o ideal formatado. Na propaganda de tinta para paredes há uma preocupação em ilustrar o sentimento de felicidade. O produto aparece ali como um colaborador dessa promessa.
Além do cenário de perfeição, o slogan confirma o que se vê: "Uma pequena casa, muita felicidade". Nesse caso, o produto propriamente (a tinta de paredes) aparece como um adjuvante para a plena realização através da casa, como descrito no texto secundário da mensagem: "Pequena ou grande, uma casa é para sempre. Se você quer que a sua [...] seja sempre uma fonte de orgulho e felicidade, pinte-a regularmente com branco brilhante Dutch boy".
Mesmo nos anúncios onde a casa ou subprodutos diretos dela não são o foco comercial, ela aparece como o cenário que situa o seu público alvo através da associação que se produz com a imagem, como pode ser visto quando o produto anunciado é o carro, mas a casa que aparece como pano de fundo não está ali representada de maneira inocente, mas como uma referência de padrão social para o consumidor.
Dentre os meios de comunicação já mencionados, as revistas, nesse período, tiveram importante papel na difusão dos modelos. As diferentes publicações atuaram como fator multiplicador das mensagens diretas e indiretas, como enfatizado por Diez:
"A própria mecânica do processo impulsiona a aceleração desta difusão, de modo que o consumo de suas imagens, sejam as fotografias e os manifestos da arquitetura de proposição ou as imagens da promoção imobiliária da arquitetura de produção, é a medida de um êxito que depende da quantidade e da publicidade como técnica" (32).
Embora o autor não se referisse ao mesmo período dos exemplos apresentados acima, a sua colocação, que faz menção à situação contemporânea, apenas reforça a continuidade e a expansão do modelo anteriormente implantado.
Deste modo, através dos periódicos especializados em arquitetura ou nas edições destinadas a diferentes públicos; em matérias cujo foco são os projetos ou nas que a arquitetura é apenas um pano de fundo para a apresentação de um outro produto, as revistas, através de matérias objetivas ou da propaganda, se configuraram como importantes veículos de apresentação de novos modelos, dentro da lógica de consumo que se estabeleceu mais estruturadamente a partir do final da II Guerra na sociedade americana.
Revistas, historiografia e crítica
Nesse esquema, portanto, os editores e publicitários são alçados à posição de formadores de opinião. São eles, e não os próprios arquitetos ou críticos, os novos mediadores da disciplina, quem interpreta e traduz as imagens desejáveis, em especial na dinâmica que envolve as residências unifamiliares. Através da mídia é possível construir uma imagem, replicar um padrão e induzir ao consumo de determinado modelo. E o que se especula aqui é se o ofuscamento gerado pela propaganda seria capaz de repercutir na construção da crítica e da historiografia arquitetônica.
A relação entre a arquitetura e as revistas não é uma novidade e já foi bastante estudada em pesquisas como a de Beatriz Colomina, dentre outras. O que reforçamos aqui é a permanência e a intensificação desse modelo (33), que desloca para fora da disciplina arquitetônica a maior parte de seus critérios de valoração e julgamento. Nesse sentido, os parâmetros imanentes se diluem e se reduzem a imagens rapidamente reproduzíveis e assimiláveis pelos consumidores, como comentado pela autora:
"Isso pressupõe uma transformação do local da produção arquitetônica - não mais localizada no local de construção, mas cada vez mais deslocada para os sítios imateriais das publicações de arquitetura, exposições e revistas. Paradoxalmente, esses são, provavelmente, meios muito mais efêmeros do que a construção e, no entanto, de muitas maneiras são muito mais permanentes: eles asseguram um lugar para a arquitetura na história, um espaço histórico projetado não apenas pelos historiadores e críticos, mas também pelos próprios arquitetos que implementaram aqueles suportes" (34).
Então, uma vez deslocada da arquitetura a sua autonomia disciplinar, tornam-se inevitáveis os borramentos entre a mídia e a crítica. O advento da indústria cultural e dos meios de comunicação de massa provocou uma mudança radical nas dinâmicas sociais e econômicas e em outras áreas da sociedade, inclusive na arquitetura, que precisou se ajustar ao novo cenário. A potência amplificadora da mídia é inquestionável e o olhar para qualquer produto através de sua lente, torna-se direcionado.
As casas que aparecem nas peças publicitárias utilizadas ao longo da argumentação mais se assemelham às construídas nos subúrbios de Levittown, do que às casas usonianas de Wright ou às Case Study houses. Essas últimas, iniciativa da revista Arts & Architecture, também se propunham a cobrir o mesmo público – os soldados egressos da guerra -, contudo, apresentavam a interpretação dos arquitetos mais reconhecidos do período (35) daquilo que consideravam que fossem as casas adequadas para aqueles moradores.
Essa pequena amostragem nos informa sobre o aumento da paralaxe, o distanciamento entre o gosto popular e o erudito. Enquanto as Case Study são exemplos icônicos de arquitetura de boa qualidade, fazem parte da categoria da "arquitetura de proposição" definida por Fernando Diez, os subúrbios de Levittown não são mais que "arquitetura de produção". No entanto, foram essas as casas que o mercado ora interpretou e difundiu como desejáveis e ideais. Esse fato nos fornece um indício do que suspeitamos sobre a influência da propaganda na incorporação e divulgação de referências, em especial no que diz respeito às residências.
Nesse panorama, percebe-se que os meios de comunicação contribuem para a coexistência de uma pluralidade de narrativas perfeitamente factíveis, a depender do grupo e do meio a que se destinam (36). No entanto, as historiografias possíveis podem ser bastante distintas e talvez, evidenciar um excessivo descolamento entre os modelos enaltecidos pela crítica erudita e aqueles acolhidos pelo público em geral.
Construir uma narrativa apoiada sobre os suportes periféricos em que a arquitetura foi divulgada, como a propaganda, pode sugerir uma visão diferenciada do campo, na medida em que ela ali aparece sem a pretensão de fazer história, mas tão somente com o intuito de contextualizar um determinado modo de vida, como bem observado por Marshall McLuhan:
"Os historiadores e arqueologistas um dia descobrirão que os anúncios de nosso tempo constituem os mais ricos e fiéis reflexos diários que uma sociedade pode conceber para retratar todos os seus setores de atividades" (37).
Além disso, há de se considerar os juízos daqueles que constroem essa narrativa, não necessariamente o crítico, o arquiteto ou o historiador, mas, cada vez mais nas mãos dos jornalistas, publicitários e editores. Após a II Guerra, esses personagens tornam-se igualmente relevantes na medida em que contribuem para a formação da massa de informações que será posteriormente filtrada e organizada pelo crítico-historiador.
E nesse contexto turbulento e embaçado, esperar deles objetividade e imparcialidade é, como afirmou Waisman, uma "interpretação simplista" (38) da sua tarefa. Suporia a existência de uma arquitetura correta, uma verdade universal. Mas, iniciamos nosso argumento demonstrando que mesmo Pirandello, ainda no início do século passado, já acenava com a impossibilidade de se estabelecer um relato único ao invés de narrativas possíveis. O que se mostra, enfim, é que desde que verossímeis são possíveis. "Assim é (se lhe parece)".
notas
NA - Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento no PROARQ – UFRJ, inserida no projeto de pesquisa “Historiografia da arquitetura e do patrimônio arquitetônico”. Como tal, neste momento se propõe mais a organizar indícios e testar hipóteses, que apresentar conclusões definitivas.
1
“Cosi è (se vi pare)” no original em italiano, é o título de uma comédia teatral de Luigi Pirandello, escrita e encenada em 1917.
2
Cf. WAISMAN, Marina. O interior da história. São Paulo, Perspectiva, 2011.
3
ROCHA-PEIXOTO. Gustavo. A Estratégia da aranha ou: da possibilidade de um ensino metahistórico em arquitetura. Rio de Janeiro, RioBooks, 2013, p. 80.
4
ZEIN, Ruth Verde. O lugar da crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegre, Ritter dos Reis, 2001, p. 207.
5
LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 13.
6
MONTANER, Josep Maria. Arquitetura e crítica. 2ª edição. Barcelona, Gustavo Gili, 2015, p. 16.
7
WAISMAN, Marina. Op. cit., p. 22.
8
COLOMINA, Beatriz. Privacy and publicity. Cambridge, The MIT Press, 1996.
9
Idem, ibidem, p. 107.
10
Idem, ibidem, p. 15.
11
Idem, ibidem, p. 25.
12
DIEZ, Fernando. Crise de autenticidade, mudanças na produção da arquitetura Argentina 1990-2002. Tese de doutorado. PROPAR UFRGS, 2005, p. 32.
13
Paralaxe é um termo originário da astronomia, do grego paralaxis, que significa mudança. De acordo com o dicionário Houaiss “ambivalência de perspectivas de observação de um determinado corpo”. Para a astronomia “deslocamento aparente do objeto quando se muda o campo de observação”.
14
SAUNDERS, William (Org.). Judging architectural value. Minneapolis, University of Minesota Press, 2007.
15
No eixo Rio-São Paulo, o jornal paulista Estadão mantém uma coluna quinzenal. No Rio de Janeiro, O Globo mantém alguns encartes na edição dominical, porém as matérias são mais relacionadas à decoração de interiores.
16
As bancas possuem uma variedade de revistas direcionadas a diferentes estratos socioculturais. As revistas nacionais do segmento arquitetura e decoração de maior tiragem, de acordo com pesquisa realizada pela autora junto ao Instituto Verificador de Comunicação – IVC, órgão responsável pela auditoria da maioria das publicações impressas nacionais, são das revistas Arquitetura & Construção, com 166.086 e Casa & Jardim com 158.880. A título de comparação, a revista Vogue colocou no mercado a média mensal de 53.951 exemplares e a revista AU (direcionada para o público profissional) apenas 14.485. (Dados de 2014). Porém, à exceção da revista AU, as outras mais publicam matérias sobre decoração que verdadeiramente apreciações críticas da arquitetura.
17
DIEZ, Fernando. Op. cit., p. 12.
18
Esse é o título do livro escrito pelo jornalista americano Vance Packard em 1957. Ele fala, pela primeira vez na propaganda subliminar e nos métodos de sugestão aplicados pelos profissionais de marketing.
19
FRAMPTON, Kenneth. Questions of value: an interview with Kenneth Frampton. Minneapolis, University of Minesota Press, 2007. Judging architectural value. Harvard design magazine, v.4. Entrevista a William S. Saunders e Nancy Levinson. Tradução da autora.
20
Conjunto de casas de classe média (algumas não construídas) projetadas por FLW a partir de 1936. A ideia era que fossem projetos com moderado custo de construção, visando a classe média americana.
21
As Case Study Houses foram projetos de casas patrocinados pela revista Arts & Architecture entre 1945 e 1966. Alguns dos grandes arquitetos da época participaram da empreitada. A ideia era a de suprir a demanda de moradia que se intensificou com a volta dos veteranos no pós-guerra.
22
Este é o título do livro escrito pelo jornalista americano Vance Packard em 1957. Ele fala, pela primeira vez, na propaganda subliminar e nos métodos de sugestão aplicados pelos profissionais de marketing.
23
LIMA, Luiz Costa. Op. cit., p. 13.
24
Sobre os dados da economia norte americana ver HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos, o breve século XX. Rio de Janeiro, Cia das Letras, 1995.
25
Nova York (1957), Pensilvânia (1952), Nova Jérsei (1958) e Porto Rico (1963).
26
ADORNO, Theodore; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
27
DIEZ, Fernando. Op. cit., p. 198.
28
Idem, ibidem, p. 202.
29
Idem, ibidem, p. 216.
30
Idem, ibidem, p. 216.
31
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 2005.
32
DIEZ, Fernando. Op. cit., p. 44.
33
Colomina realiza a pesquisa no período anterior a que nos referimos aqui. A abrangência de seu estudo vai do final do século 19 até a década de 1930, gestação e apogeu do movimento moderno.
34
COLOMINA, Beatriz. Op. cit., p. 14, tradução nossa.
35
Nomes como Charles Eames, Eero Saarinem, Richard Neutra, entre outros.
36
WAISMAN, Marina. O interior da história. São Paulo, Perspectiva, 2011, p. 34.
37
MCLUHAN, Marshall. Op. cit., p. 262.
38
WAISMAN, Marina. Op. cit., p. 47.
sobre a autora
Dely Soares Bentes, doutoranda (Proarq UFRJ) desde 2017. Mestrado em Arquitetura na mesma instituição desde 2006. Arquiteta e Urbanista (USU-1999). Tem experiência profissional e acadêmica na área de Arquitetura. Professora no Departamento de arquitetura da PUC - RJ desde 2009.