Introdução
"É sem dúvida um dos piores males do nosso atual sistema fundiário que, ao invés de colher o benefício do esforço comum de seus cidadãos, uma comunidade acabe sempre por pagar pesada penalidade aos proprietários de terra por valorizarem as suas terras".
David Lloyd George, primeiro-ministro britânico, em 1909, ao introduzir uma taxa de captura da valorização terra como parte da primeira lei nacional de planejamento e uso do solo (1).
O presente artigo, derivado do 3o. Seminário Instrumentos Urbanos Inovadores – financiamento urbano e urbanismo social (2), aborda a estratégia desenvolvida durante a gestão Haddad (2013-2016) em São Paulo de protagonizar a questão fundiária como elemento chave na promoção do desenvolvimento urbano como exercício de promoção social. Um conjunto de políticas públicas urbanas – como a regulação do uso da terra, planos e ações integradas – foi desenvolvido e pactuado na cidade nesse período e serviu como indutor de um uso mais equilibrado socialmente do território, levando assim à promoção de inclusão socio-territorial.
Trata-se da promoção do urbanismo social a partir de políticas fundiárias. Isso ocorre por meio de ações estratégicas, estruturantes e sistêmicas, de alcance de longo prazo que atuam na forma do uso do território, de forma a protagonizar sua dimensão pública e coletiva.
Nesse sentido, o novo marco regulatório urbano desenvolvido no período – culminado com o premiado Plano Diretor Estratégico – PDE (3) – é uma peça fundamental, mas integrante de uma visão política de cidade que priorizou os mecanismos de acesso ao uso público do território. As ações de resgate e valorização dos espaços públicos e da mobilidade sustentável, privilegiando o transporte coletivo e a mobilidade ativa, assim como a adoção dos instrumentos urbanísticos de indução à função social da cidade, dentre outras medidas, inserem-se no paradigma da questão fundiária como estrutura transformadora.
Essas ações levantam a pauta da capacidade de desempenho do urbanismo social, que intenciona a transformação da ordem vigente da cidade e possui uma dependência direta em relação aos meios encontrados para viabilizar economicamente as políticas públicas.
Em outras palavras, as estratégias integradas de políticas públicas urbanas com protagonismo social passam pela questão do acesso coletivo à terra qualificada, levando em conta a devida infraestrutura de suporte, que inclui toda a infraestrutura básica, além das redes de transporte público e de equipamentos sociais.
Nesse sentido, a partir da recente experiência na maior cidade do país, discute-se a urgência da percepção em nossa sociedade de que o território é um bem coletivo e não uma coleção de propriedades privadas. Surge, assim, a percepção de que o uso do território é de domínio público e, portanto, deve ser regrado por políticas públicas que o disciplinem e privilegiem os instrumentos de inclusão social.
O artigo compõe-se de quatro partes:
- a primeira trata do desafio histórico da construção das políticas públicas urbanas orientadas ao interesse coletivo e com visão duradoura;
- a segunda aborda o protagonismo da inclusão socio-territorial e a indução ao urbanismo social;
- a terceira trata do acesso à terra infraestruturada e qualificada para todos;
- e a quarta demonstra as evidências de avanços na questão da terra como elemento promotor do urbanismo social em São Paulo.
O desafio histórico da construção das políticas públicas urbanas orientadas ao interesse coletivo e com visão duradoura
Assim como a grande maioria das cidades brasileiras, São Paulo se constituiu, em grande medida, a partir do somatório de lógicas desordenadas e espontâneas e opções tecnocráticas com inexistência de um objetivo comum de coletividade; sendo assim, mostrou-se negligente perante um planejamento orientado ao uso equilibrado do território. Esse processo histórico, agravado com o dramático crescimento da cidade durante o século 20, revela na atualidade um intenso desequilíbrio socio-territorial, que gera uma demanda urgente pela introdução de um novo padrão de cultura urbana, que passa pela questão da terra urbana.
A dinâmica paulistana é moldada por um paradigma irracional de uso do solo, que orienta a cidade a um ciclo vicioso de desintegração social. A população mais pobre e vulnerável, imensa maioria, concentra sua ocupação progressivamente em áreas periféricas e vulneráveis, que carecem de oferta de emprego, enquanto a minoria da população, composta pela classe de alta renda, reside em centralidades urbanas com infraestruturas consolidadas, que oferecem tais empregos. Essa herança decorreu de uma intensa valorização territorial e conseguinte processo de gentrificação, caracterizada por um distanciamento geográfico proposital das classes sociais mais vulneráveis, em que o padrão de crescimento econômico do Brasil foi moldado. As aglomerações populacionais de pouco poder aquisitivo, situadas em áreas afastadas do centro expandido, contribuem para o cenário excludente e para a precariedade de acesso tanto à oferta de trabalho quanto à interação com outros grupos sociais e aos serviços e equipamentos públicos. Tal condição socio-territorial se agrava com a questão da mobilidade urbana insustentável, sintomatizada no movimento pendular diário de moradia-trabalho, e colabora para perpetuar a insuficiência contínua do sistema público de transporte.
A dimensão coletiva do uso da cidade é a sua essência. Todavia, historicamente na contramão, a cidade de São Paulo vem sendo privatizada – ou seja, negada enquanto cidade, a começar por sua superfície. O solo de São Paulo é privado. A terra nua não dá lugar a parques ou equipamentos públicos, mas é tratada como estoque especulativo de riqueza (4).
Trata-se, obviamente, do enfrentamento do enorme desafio histórico brasileiro de superação de um modelo de segregação social, patrimonialismo arcaico e viciosa concentração de terras e poder – como já demonstrado nos clássicos estudos, por exemplo, de Raimundo Faoro e Sergio Buarque de Hollanda (5) – concretizado no uso desequilibrado do território urbano da maior cidade do país, epicentro destas contradições.
No momento em que se comemoram os trinta anos da Constituição Federal, há que se avançar na concretização da superação do modelo incompleto de modernidade presente nas cidades. Construímos um Pacto Federativo e um conjunto de políticas públicas urbanas robusto que resultou em uma marco regulatório urbano inovador e reconhecido internacionalmente – o Estatuto da Cidade (6) – e colocou a cidade como ente protagonista na sociedade contemporânea.
Os obstáculos estão, portanto, possivelmente na histórica distância entre o discurso (a legislação) e a prática (a aplicação) no Brasil, cuja síntese ocorre: no território urbano – constituído pela cidade formal (de exceção e excessivamente regulada) versus a cidade informal (a regra, a terra de ninguém); na burocracia exagerada; no desafio da governabilidade; e também na ausência da aplicação dos instrumentos urbanos, assim como de sua concretização e territorialização.
Paralelamente, há que se lembrar o momento contemporâneo do planeta, tendo em vista os novos desafios impostos às grandes cidades, que concentram populações e demandas crescentes, mesmo nos países mais desenvolvidos. Em tais países, "não apenas a iniqüidade de nossas cidades, mas a desigualdade de nossa geografia em geral" impõem aquilo que autores como Richard Florida veem como numa nova crise urbana mundial, em que a questão central é a promoção de novas formas de urbanismo, com maior equidade social, passando necessariamente por estratégias de uso da terra urbana de forma mais acessível (7).
Para mitigar o padrão de segregação social impresso na cidade, é essencial que haja uma contemporização das diferentes necessidades coletivas e privadas através da aplicação de políticas contínuas indutoras do desenvolvimento urbano e do bem-estar social.
Para promover uma lógica de construção de tais políticas públicas urbanas com visão de inclusão socio-territorial continuada é fundamental, além de superar disputas governamentais, perpetuar uma apropriação das estratégias construídas e pactuadas junto à sociedade. A assiduidade dessas estratégias depende da coerência cotidiana que elas têm para a população, pois o êxito recai sobre sua participação tanto no momento da elaboração das políticas e planos territoriais, quanto na posterior manutenção das ações urbanas. A inserção junto à comunidade só é socialmente pactuada se a abordagem não for imposta de cima para baixo, mas trabalhada com ela, em constante colaboração.
O protagonismo da inclusão socio-territorial e a indução do urbanismo social
O urbanismo social objetiva promover a melhoria da qualidade de vida urbana e a inclusão socio-territorial, especialmente direcionando investimentos para áreas mais socialmente vulneráveis e para a solução integrada de grandes questões habitacionais urbanas e de infraestruturas de suporte. Em outras palavras, busca-se aproximar pessoas e infraestrutura: adensar onde há infraestrutura, bem como prover mais e melhor infraestrutura de suporte onde há maior densidade populacional e onde há maiores necessidades e carências. Além disso, sobretudo, busca-se financiar a cidade com os recursos gerados pelo próprio processo de urbanização, com critério redistributivo.
Uma questão se coloca, então, à luz do cenário desanimador de um país detentor de boas leis mas que não as aplica na cidade real: é possível planejar o desenvolvimento urbano com as transformações desejadas de promoção social no uso do território sem a adoção dos instrumentos que o induzem?
A indução agressiva à produção de um novo padrão de cidade é indispensável e, para tanto, há que se promover corajosamente a concretização, implementação e territorialização dos instrumentos urbanísticos necessários. Porém, tal indução não pode ser desenvolvida sob a lógica que vem acompanhando, até agora, o desenvolvimento da nossa cidade. As políticas públicas devem ser integradas e territorializadas; os marcos regulatórios urbanos, espacializados; a gestão do território, democratizada e compartilhada.
O urbanismo social demanda a integração das políticas públicas que atuam sobre o território, as quais incluem: planos e ações integradas em infraestrutura urbana, mobilidade urbana, serviços e equipamentos públicos sociais, além de habitação social. Quando se discute transporte e habitação conjuntamente, por exemplo, está se discutindo o metabolismo das cidades mais sustentáveis socialmente a partir de um uso mais equilibrado do território.
Assim, o urbanismo social não se refere apenas, ou isoladamente, às questões de oferta de moradia social e urbanização de favelas ou à construção de equipamentos sociais nas periferias, mas antes à promoção da cidade acessível socialmente através do acesso à terra qualificada. Tal processo deve ocorrer por meio de infraestrutura de suporte e moradia adequadas, além de uso coletivo do território, acessível a todos.
Recentemente, os prefeitos de Londres e Barcelona, Sadiq Khan e Ada Colau, lideraram um sintomático manifesto junto a diversas outras cidades – Cities for Housing, no Fórum de Governos Locais e Regionais da Organização das Nações Unidas –, apontando para a urgência das cidades possuírem competências jurídicas e recursos financeiros para combater os crescentes e nefastos processos de especulação imobiliária, gentrificação e financeirização dos territórios urbanos, além do resgate do papel primordial das cidades: "as propriedades da cidade devem ser casas para as pessoas primeiro – não investimentos” (8).
O uso mais acessível do território é desafio para as diversas políticas públicas da cidade e a pauta da cidade saudável é de enorme relevância. Como já foi dito, as populações vivendo em territórios menos equipados e qualificados são sempre as maiores vítimas, como demonstram estudos recentes de importantes pesquisadores como David Tuller e Paulo Saldiva. O estudo de Tuller aborda a questão integrada de habitação, saúde e zoneamento inclusivo, enquanto Saldiva destaca que, infelizmente, não apenas as doenças mais conhecidas como também “a taxa de doenças mentais é também um bom indicador para aferir a desigualdade entre os habitantes urbanos" (9).
O urbanismo social, por meio da ocupação qualitativa da cidade, fornece ferramentas de transformação à sociedade civil, que se encontra absorta em uma lógica incongruente de afastamento econômico-territorial. O meio público, como promotor de intercâmbio cultural, desempenha função essencial nos processos de convivência interpessoal e composição de vínculos locais.
Têm sido observadas nos anos recentes mudanças no comportamento social da população, que passa a reivindicar seu direito à cidade, ocasionando assim transformações nítidas no espaço público, que perde seu caráter único de passagem para se tornar destino. O ato de percorrer e permanecer na rua assegura benefícios aos seus usuários, incentiva a economia local e alavanca as livres expressões culturais. Lutas cívicas acompanhadas por ações públicas ousadas são resultados da participação popular na demanda sobre os setores públicos e no envolvimento aos âmbitos decisórios da gestão urbana.
O acesso à terra infraestruturada e qualificada para todos
O sistema de preços e a lei de oferta e demanda são excelentes para o funcionamento da atividade econômica imobiliária, mas completamente ineficientes para atingir objetivos sociais no território e menos ainda para redistribuir a riqueza gerada pelo próprio processo de desenvolvimento urbano. Muito pelo contrário, o livre jogo econômico no tabuleiro urbano incrementa a inequidade, concentra riqueza e empobrece a cidade, assim como suas condições urbanísticas.
A atividade regulatória do território (planos, políticas públicas e muita gestão pública fundiária) é a aposta principal de muitos governos no mundo, com especial ênfase nos países de mais alta qualidade de vida e desenvolvimento urbano. A regulação urbanística condiciona o mercado do solo e impõe exigências, obrigações e custos de urbanização à atividade imobiliária (10).
A regulação urbana focaliza em aspectos básicos para o bem-estar social na cidade, tais quais a provisão e o financiamento de infraestruturas de suporte, proteção de bens e valores ambientais e culturais, bem como a oferta suficiente de moradia em condições e preços adequados para a população, em especial a de baixa renda.
Todavia, como alcançar objetivos tão almejados e urgentes através da regulação urbanística?
Financiar o urbanismo social vai muito além de arrecadação. A principal fonte do financiamento urbano é a riqueza, valorização ou mais-valia gerada pelas ações da coletividade e do governo na cidade, que se reflete nos incrementos de preço da terra. O governo gera riquezas por meio de investimentos públicos em obras e de decisões, em especial de tipo urbanístico. Não existem ações de proprietários, individuais ou isoladas, que consigam gerar valorização imobiliária por si só.
O ordenamento do território regula algo essencialmente público e de imenso valor econômico: os atributos urbanísticos de uso e aproveitamento do solo. Por isso, a questão fundiária está no centro das regulações urbanísticas e do financiamento urbano. Ainda que o Estatuto da Cidade faculte aos municípios estabelecer contrapartidas pela outorga de aproveitamento do solo e mudanças de uso, essa infelizmente é uma prática muito pouco frequente nas cidades brasileiras.
Graças à homogeneização do coeficiente básico de aproveitamento gratuito na cidade para efeitos do instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC, a gestão pública galga um enorme passo em direção à um urbanismo social. Dar tratamento diferenciado aos proprietários no que diz respeito ao direito de construir, que será outorgado de forma gratuita, é reforçar as inequidades socioterritoriais sob a forma de direitos, além de entregar o patrimônio público como se fosse um bem privado.
A OODC é um instrumento chave para transformar a cultura da cidade como objeto de apropriação privada em direção a uma cidade guiada pelo interesse coletivo e que entenda os benefícios urbanísticos como importante agente público. Ao mesmo tempo, e essa é a sua função mais visível, permite materializar o urbanismo social, pois capta recursos derivados das decisões normativas do município para financiar a cidade – e, mais especificamente, financiar a cidade no território mais vulnerável socialmente e mais carente de investimentos.
Conforme o Artigo 26 do Estatuto da Cidade (11), os recursos devem destinar-se a fins redistributivos, privilegiando investimentos que reduzam a brecha social no território e que equilibrem a cidade. Exemplos disso seriam atender áreas precárias, promover moradia social, proteção ambiental, espaços públicos, transporte coletivo etc.
A OODC é necessária? Sim. Suficiente? Não. Avançar em direção ao urbanismo social requer importantes esforços do setor público. Nossas cidades acumulam a dívida de séculos de exclusão social e enormes déficits em infraestrutura e suportes urbanos. O Estatuto da Cidade deixa à disposição dos gestores públicos uma ferramenta fundamental para aqueles que querem fazer a diferença na gestão das cidades.
Esses esforços incluem a implementação de instrumentos de financiamento direto, como a OODC, mas também de gestão da valorização imobiliária que, de forma articulada, podem melhorar as condições de desenvolvimento urbano e ampliam os benefícios para todos no uso do território. Vale lembrar que muitos dos problemas que nos afetam atualmente não consideram nossa condição econômica ou de privilégios urbanos, mas recaem aos menos favorecidos socialmente, pois eles possuem menos opções. Isso é resultado de políticas excludentes que não focalizaram o financiamento urbano. Vivemos diariamente os problemas do uso desequilibrado do território em diversos sintomas do metabolismo urbano desequilibrado: poluição, custo de vida e de moradia, ausência de áreas verdes e de lazer próximas, redes de equipamentos e serviços insuficientes, congestionamento, falta de mobilidade etc.
Assim como o ônus desse modelo de cidade ultrapassa seus efeitos às pessoas pobres, os benefícios de uma política fundiária orientada ao acesso à terra com infraestrutura e qualificada e ao uso coletivo do território trazem benefícios gerais para toda a população. Políticas e medidas adequadas para corrigir os desequilíbrios e incentivar os comportamentos favoráveis a um outro modelo de urbanismo devem centralizar esforços na política fundiária.
Um problema clássico é: áreas infraestruturadas são subutilizadas e se encontram em ociosidade enquanto áreas pouco servidas, com baixos valores ambientais e certamente menos bem localizadas, são objeto de pressão fundiária constante. O que fazer? Não adianta simplesmente “inflacionar” as possibilidades normativas das áreas infraestruturadas. Menos ainda, isentar o pagamento por tais benefícios normativos – ou seja, não cobrar OODC quando a OODC é neutra em relação ao preço final do produto imobiliário; isso só beneficiria o proprietário da terra, o qual terá um incentivo a mais para retê-la.
Medidas conjuntas e integradas devem ser tomadas, incluindo financiamento e uso coletivo do território. Por exemplo, pode-se orientar normativamente a edificação e o adensamento nas áreas com melhor infraestrutura e capacidade de suporte ociosas, promovendo usos mistos e em articulação com a oferta de transporte público. Em paralelo, procura-se estabelecer pressões para que proprietários de terra ou imóveis aptos para entrar ao mercado, que a retém, modifiquem seu comportamento e a disponibilizem no mercado, seja por si, seja por um outro particular com interesse.
Os mecanismos de financiamento e gestão da valorização de base fundiária (land base tools), respondem, por sua natureza, à premissa histórica do economista inglês Henry George (12) pois são os instrumentos mais justos e igualitários do ponto de vista econômico e social. Todo e qualquer incremento de valor da terra é alheio à ação proprietária individualmente considerada (proprietários não conseguem, sozinhos, gerar valorização imobiliária). As fontes clássicas geradoras de valorização fundiária são obras públicas, decisões e ações do governo. Em síntese, há mobilização da valorização fundiária quando se promove a cobrança de imposto territorial urbano, ao se recuperar os custos de obras públicas (taxas por contribuição de melhoria), ao se exigir contrapartidas pela outorga de benefícios urbanísticos ou ao se exigir contrapartidas pelas alterações no uso do solo.
Evidências de avanços na questão da terra como elemento promotor do urbanismo social em São Paulo
A gestão Haddad aproveitou uma oportunidade histórica ao efetivar a difícil missão de influir na questão do uso da terra urbana, efetivando assim o desenvolvimento do novo marco regulatório da cidade. Decidiu-se incorporar uma série de políticas, ações e ferramentas no PDE a fim de induzir uma progressiva transformação da cidade direcionada ao urbanismo social.
Através da implementação de diversos instrumentos urbanos indutores da transformação urbana, orientam-se os comportamentos do mercado imobiliário e demais atores urbanos visando o bem comum, coletivo e, sobretudo, a promoção do uso do território de modo mais equilibrado socialmente.
Ao regular o uso do solo promovendo o adensamento urbano junto à rede de transportes públicos, aproximando pessoas e transporte, moradia e trabalho, e ao induzir uma cidade mais compacta e de uso misto, priorizando o crescimento urbano em áreas com infraestrutura de suporte, e também ao enfatizar o uso dos instrumentos urbanísticos que promovem a função social da cidade, aponta-se para um novo paradigma de desenvolvimento urbano. A implementação dos instrumentos urbanos indutores da transformação planejada é a condição para que o plano se concretize. Por exemplo: o coeficiente de aproveitamento básico único em toda a cidade e os fatores de planejamento induzem o crescimento nas áreas planejadas, orientando o mercado imobiliário para onde atuar com maior ênfase e para onde atuar com maiores limitações de altura ou adensamento, preservando assim o meio ambiente existente e a qualidade de vida dos moradores.
Tais ações se inserem na premissa central da redução das desigualdades sociais através de novos paradigmas de uso da terra urbana, o que ocorre graças a:
- aproximação entre moradia e trabalho, reduzindo a necessidade de deslocamentos;
- uso intensificado dos espaços públicos qualificados e valorizados;
- melhoria da mobilidade urbana voltada ao transporte público de grande capacidade e da mobilidade ativa (ciclovias e caminhabilidade);
- implementação concreta de uma nova política fundiária e de uso e ocupação do solo;
- promoção de instrumentos de acesso à habitação social em toda a cidade, principalmente nas áreas centrais e melhor infraestruturadas.
A mobilidade urbana foi enfrentada como de acesso à terra pública, priorizando o interesse coletivo. Considerando-se que mais de 20% da terra urbana é pública e destinada ao sistema viário, a opção pelo seu uso através da construção de diversos corredores de ônibus em faixa exclusiva e de uma rede de ciclovias também em faixas exclusivas, em detrimento do estacionamento de carros, revela um política pública fundiária redistributiva. O transporte público não deve ficar parado em meio ao trânsito dos automóveis particulares; trata-se de seu despedágio. Nos lembra Paulo Saldiva que “o pedágio urbano na imobilidade não afeta igualmente todos os habitantes urbanos, e, como sempre, o maior ônus recai sobre os que menos têm” conforme o conceito de velocidade efetiva (ou velocidade social), como proposto pelo geógrafo Paul Tranter, onde “pessoas com menor salário gastam uma fração maior de seus dias para pagar pelo seu deslocamento” (13). Trata-se não apenas de mobilidade urbana, mas também de promover maior equidade social.
O resgate dos espaços públicos em toda a cidade foi elemento fundamental, seja no resgate de uso de espaços públicos latentes (programa Centro Aberto), seja na promoção de novos usos (programa Ruas Abertas), ou mesmo na elaboração de políticas públicas integradas de atuação em rede nas áreas periféricas (programa Territórios CEU – Centro de Educação Unificado).
O programa Centro Aberto, a partir de metodologia contemporânea de urbanismo tático, promovendo oficinas participativas e projetos pilotos que rapidamente geram aderência da população, resgatou e revitalizou diversos territórios públicos latentes no centro da cidade, conferindo-lhes atividades e usos dinâmicos, muitos deles voltados às crianças e ao ensejo da cidade educadora (14).
O programa Ruas Abertas ampliou a oferta de territórios de lazer e uso público da cidade. A Avenida Paulista aberta a pedestres e ciclistas exclusivamente aos domingos é o símbolo de diversas outras por toda a cidade – muitas delas nas periferias.
O programa Territórios CEU, a partir da tese de que o uso coletivo do território promove a inclusão social particularmente nas áreas periféricas da cidade, ampliou o conceito dos Centros de Educação Unificados – CEUs, transformando-os em equipamentos públicos âncora de um território integrado de equipamentos e serviços públicos. Formou-se, assim, uma rede de conexões e estruturação entre os CEUs e a fruição de pedestres.
O programa Bordas Urbanas levou aos territórios historicamente negligenciados das franjas da cidade e suas conexões metropolitanas ações conectadas de contenção do espraiamento urbano, do incentivo à agricultura familiar, da alimentação nas escolas municipais infantis baseada em produtos orgânicos, bem como uma política de reciclagem de resíduos sólidos.
O Programa de Incentivos Fiscais na Zona Leste e extremo Sul trabalha novamente a questão da terra como ativo estratégico ao isentar de tributos – Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, Transmissão de Bens Imóveis – ITBI, Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS da construção civil e redução do ISS ao mínimo legal de 2% – empresas que levem emprego às regiões periféricas populosas onde, a princípio, apenas se mora.
Os instrumentos urbanos mais consistentes na transformação da cidade e alteração dos padrões de uso da terra urbana – e por essa razão praticamente não aplicados em sua real grandeza e potência nas cidades brasileiras (15) – foram aplicados nos novos marcos regulatórios da cidade. Destaque-se:
- adoção do Coeficiente Básico unitário (CA básico = 1) na cidade toda: edifícios em toda a cidade que construam mais do que uma vez a área de terreno deverão destinar contrapartida, OODC, ao Fundo de Desenvolvimento Urbano – Fundurb;
- Novas Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis: 107% de aumento da área da cidade destinada à produção de moradia social;
- 60% de Habitação de Interesse Social – HIS 1: criação da categoria HIS 1 para famílias de 0 a 3 salários mínimos com destinação mínima de 60%;
- Fundurb: 30% de destinação mínima obrigatória dos recursos para mobilidade urbana e outros 30% para promoção de habitação social;
- criação da Cota de Solidariedade: imóveis de grande porte, maiores que 20.000 m2, devem doar o equivalente a 10% da área construída para promoção de habitação social;
- implementação da função social da propriedade através da aplicação dos instrumentos indutores para combater imóveis ociosos: foi criado o Departamento de Controle da Função Social da Propriedade – DCFSP, para estruturar e coordenar a aplicação dos instrumentos de Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios – Peuc, e seus sucedâneos (IPTU Progressivo no Tempo, Desapropriação, Sanção). No período foram notificados 1.000 imóveis, representando o equivalente à 2,3 milhões de m2de terra, sendo 82% localizados em Zeis.
- efetivação de ações de regularização fundiária em grande escala: 230 mil famílias beneficiadas por ações de regularização, 69 mil famílias com ações de regularização concluídos e 161 mil regularizações em processo.
Deve-se lembrar que a combinação de diversos desses instrumentos atua diretamente na promoção de habitação social em terras qualificadas, estratégia fundamental no imenso desafio da superação do déficit habitacional da cidade, estimado em mais de 500 mil unidades.
A estratégia geral do PDE, ao colocar o desenvolvimento urbano orientado em direção aos territórios com maior oferta de infraestruturas e acesso ao transporte público, se complementa com o combate à ociosidade de centenas de imóveis em localizações privilegiadas e prioritárias. A pressão aos imóveis em ociosidade leva ao incremento de oferta de terras e melhora significativamente as condições de acesso à terra com infraestrutura e qualificada e, adicionalmente, prioriza os usos socialmente justos e necessários da cidade, como moradia social, que são diretamente prejudicados pela retenção especulativa de terras à espera de melhores usos futuros.
O instrumento da OODC é aplicado de forma vigorosa – com uma nova fórmula, adotando base de referência de valores de mercado e fatores de planejamento e social balanceados – e coloca a cidade como referência no país e na América Latina a respeito do uso do principal instrumento de captura da valorização fundiária. A arrecadação ocorrida em 2013 e o investimento realizado em 2014 através do Fundurb mostram a capacidade redistributiva desse instrumento e atestam que apenas ações vigorosas e sistêmicas como essa são capazes de reestruturar o espaço urbano a longo prazo. A arrecadação da outorga é mais intensa na área das subprefeituras mais privilegiadas da cidade, mas esse montante é gasto em áreas de maior vulnerabilidade social.
Trata-se de encaminhar o processo do ciclo virtuoso do desafio do uso mais equilibrado do território. Isso envolve a distribuição de infraestrutura de suporte onde é mais demandado; assim como a localização do adensamento onde há maior capacidade de suporte (infraestruturas, sistemas de transporte público, equipamentos sociais) e reserva de terras para os mais necessitados.
Administrar as cidades e planejá-las a longo prazo é, antes de mais nada, uma discussão de acesso à terra. Se não partirmos da premissa de que o acesso à terra é um fator chave para compreender as cidades, teremos muitas dificuldades em corrigir o desequilíbrio que o mercado produz nelas.
O mercado produz cidades. A especulação civil e a especulação imobiliária produzem cidades. O desafio do planejamento urbano é corrigir distorções que o livre mercado geraria, se não fosse pelo contraponto de leis urbanísticas que regulam o acesso e o uso do solo. A renda da terra é uma variável fundamental e a regulação do acesso é a chave para permitir que a cidade funcione bem. Podemos dizer que uma cidade funciona bem se ela consegue acolher a totalidade de seus cidadãos, independentemente da renda. E aquilo depende disto: o acesso à terra depende do valor da terra, e a renda das pessoas é a chave que abre ou não oportunidades para aqueles que escolhem morar nas cidades (16).
A política pública fundiária com objetivo de promoção do urbanismo social determina alguns comportamentos disruptivos para a construção de novos paradigmas de cultura urbana nas cidades latino-americanas. O fundamental é a implementação de uma nova estratégia urbana, que envolva um conjunto de ações sistêmicas e estruturadoras capazes de atuar na essência do problema, promovendo assim o acesso social à terra urbana qualificada, para que se possa, assim, morar e viver dignamente.
notas
1
"It is undoubtedly one of the worst evils of our present system of land that instead of reaping the benefit of the common Endeavour of its citizens a community has always to pay a heavy penalty to its ground landlords for putting up the value of their land".ALTERMAN, Rachelle. Land-use regulations and property values: the “windfalls capture” idea revisited. In BROOKS, Nancy; DONANGHY, Kieran; KNAPP, Gerrit-Jan (Org.). The Oxford handbook on urban economics and planning. Oxford, Oxford University Press, 2012, p. 755-786.
2
Evento ocorrido na Universidade Presbiteriana Mackenzie em 5/3/2018. Ver: 3º Seminário Instrumentos Urbanos Inovadores. Intervenções urbanas: instrumentos de viabilização. Eventos, São Paulo, Vitruvius, 18 dez. 2017 <http://www.vitruvius.com.br/jornal/events/read/1850>; 3º Seminário Instrumentos Urbanos Inovadores. Esquina: Conversas sobre cidades. Disponível in: <https://bit.ly/2CrWBqk>.
3
O PDE recebeu prêmio da ONU–Habitat em 2017 por "tornar a cidade mais humana, moderna e equilibrada, através do emprego e da moradia, para enfrentar as desigualdades socioterritoriais”. Plano Diretor da cidade de São Paulo vence prêmio de agência da ONU. Nações Unidas no Brasil, Brasília, 09 jan. 2017 <https://nacoesunidas.org/plano-diretor-da-cidade-de-sao-paulo-vence-premio-de-agencia-da-onu/>.
4
HADDAD, Fernando. Um desenho para São Paulo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 jul. 2014 <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/07/1486491-fernando-haddad-um-desenho-para-sao-paulo.shtml>.
5
FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Rio de Janeiro, Globo, 1989; HOLLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio, 1984.
6
BRASIL. Estatuto da Cidade – Lei 10257/01. Disponível in: <https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/101340/estatuto-da-cidade-lei-10257-01>.
7
FLORIDA, Richard. The new urban crisis. How our cities are increasing inequality, deepening segregation, and failing the middle class and what we can do about it. Nova York, Basic Books, 2017.
8
KHAN, Sadiq; COLAU, Ada. City properties should be homes for people first – not investments. The Guardian, Londres, 03 jul. 2018 <www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/03/city-properties-homes-people-first-london-barcelona>. No mesmo ensejo, a importante International Federation for Housing and Planning – IFHP, lançou recentemente seu novo programa Social Cities, com o desafio de construção de indicadores de aferição da sustentabilidade social, conceito intangível recorrentemente negligenciado em políticas públicas internacionais. Introducing Social Cities. International Federation for Housing and Planning, Copenhagen <https://www.ifhp.org/ifhp-blog/introducing-social-cities>.
9
TULLER, David. Housing and health: the role of inclusionary zoning. Health Affairs Health Policy Brief. Berkeley, University of California, 2018; SALDIVA, Paulo. Vida urbana e saúde. São Paulo, Contexto, 2017, p. 53.
10
A este respeito, Leonardo Benévolo realiza uma aproximação histórica ao surgimento da regulação e das obrigações urbanísticas na Inglaterra e França durante o século 19. Em seu relato, em especial no caso inglês, o autor expõe o processo de oposição dos landlords às recomendações do comitê de higiene; recomendações que em essência retiravam a liberdade construtiva impunham a internalização de custos da urbanização e reduziam ou colocavam limites ao lucro imobiliário. Exemplos do fenômeno são as exigências de janelas e pátios interiores de ventilação, a introdução de infraestruturas de redes de água e esgoto e a proibição de aluguel de porões, que antes serviam de habitação a grupos de dez ou até mais pessoas. BENÉVOLO, Leonardo. Orígenes del urbanismo moderno. Madrid, Celeste Edições, 1992.
11
BRASIL. Estatuto da Cidade – Lei 10257/01. Op. cit.
12
“O tributo sobre os valores da terra é, portanto, o mais justo e igual de todas os tributos. Recai somente sobre aqueles que recebem da sociedade um benefício peculiar e valioso, e sobre eles na proporção do benefício que recebem. É a tomada pela comunidade, pelo uso da comunidade, desse valor que é criação da comunidade. É a aplicação da propriedade comum para usos comuns”. GEORGE, Henry (1879). Progress and Poverty. Nova York, Robert Schalkenbach Foundation, 2011.
13
SALDIVA, Paulo. Op. cit., p.75.
14
Ver especialmente o caso paradigmático do Largo Paissandú.
15
No país das leis qualificadas e inovadoras, mas não aplicadas, a questão dos instrumentos de indução da função social da cidade é particularmente sintomática, infelizmente. A Pesquisa de Informações Básicas Municipais – Munic, mais recente (dados de 2015) revela, com relação aos dois instrumentos de captura da valorização da terra existentes no país – Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC, Operações Urbanas Consorciadas – OUCs e Certificados de Potencial Adicional Construtivo – CEPACs que 1.946 municípios no Brasil prevêem OODC e 1.401 OUCs em leis do Plano Diretor ou específicas, mas sabe-se que (i) pouquíssimos municípios as aplicam de fato e (ii) mesmo nesses, a aplicação está sendo realizada muitíssimo aquém de seu real potencial, arrecadando-se valores muito baixos quando comparados aos parâmetros desejáveis. Pesquisa de informações básicas municipais. Perfil dos Municípios Brasileiros 2015. Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2006. Disponível in: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95942.pdf>
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HADDAD, Fernando. A cidade é o produto de uma ação coletiva. The City Fix Brasil, Porto Alegre, 24 nov. 2015 <http://thecityfixbrasil.com/2015/11/24/fernando-haddad-a-cidade-e-o-produto-de-uma-acao-coletiva/>.
sobre os autores
Carlos Leite é arquiteto e urbanista com mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo (1997 e 2002) e pós-doutorado pela Universidade Politécnica da California (CalPoly, 2004), onde foi professor visitante. É professor adjunto na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador convidado no Instituto de Estudos Avançados da USP.
Claudia Acosta é advogada (2001), com mestrado em Estudios Urbanos (El Colégio de México, 2005) e em Direito e Desenvolvimento (FGV, 2015) e especialista em políticas fundiárias para América Latina pelo Lincoln Institute of Land Policy (2007) onde é professora; professora da Universidad del Rosario (Colômbia) e pesquisadora no Centro de Política e Economia do Setor Público da FGV, onde desenvolve seu doutorado.
Fernando Haddad é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1985), com mestrado em Economia (USP, 1990) e doutorado em Filosofia (USP, 1996). É Professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de FFLCH-USP; professor do Insper e pesquisador convidado do Instituto de Estudos Avançados da USP. Foi subsecretário de Finanças de São Paulo (2001-2003), assessor especial do Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão (2003 -2004), Secretário Executivo do Ministério da Educação (2004 -2005) e Ministro da Educação (2005-2012). Foi Prefeito de São Paulo (2013-2016).
Weber Sutti é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela USP (2005) onde é pesquisador e desenvolve seu mestrado; especialista em Gestão Pública pela UPIS (2008), trabalhou como chefe de gabinete na Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2006-2007), no Iphan (2007-2012) e na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo (2013-2015), foi secretário adjunto de Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo (2015-2016). É membro do Conselho Superior do IAB-SP.