Um panorama da modernidade
As modificações urbanas ocorridas a partir da segunda metade do século 19 na cidade de Vitoria, capital do Espírito Santo, evidenciam – guardadas as proporções locais – a amplitude dos reflexos lançados pelas transformações urbanas protagonizadas pelas cidades capitais latino-americanas que, a partir de 1880, começaram a sofrer modificações não somente em sua estrutura social, mas também em sua fisionomia (1). “Os dogmas da modernidade eram extraídos das experiências urbanas europeias, voltando-se especialmente para a nova Paris operada por Haussmann: retificada, urbanizada, extirpada de suas feições medievais” (2).
O crescimento vertiginoso do contingente populacional foi uma constante nas capitais latino-americanas e, muito embora estas cidades tenham atingido níveis diversos de desenvolvimento, quase todas duplicaram ou triplicaram a população nos cinquenta anos posteriores a 1880. Estas circunstâncias estiveram particularmente presentes nas cidades que estabeleceram negociações comerciais com os países industrializados da Europa, os Estados Unidos e posteriormente o Japão, países que haviam acumulado sólidos capitais e indústrias em expansão que demandavam matérias primas abundantes e novos mercados consumidores, especialmente as cidades portuárias que centralizavam os negócios de importação e exportação, as operações financeiras e as atividades subsidiárias. Foram estas cidades que acumulavam a função administrativa e portuária que prosperaram mais rapidamente (3).
A velocidade seria incorporada à vida cotidiana nas grandes metrópoles através dos modernos meios de transporte que, aliados às avenidas extensas e retificadas, permitiam rapidez nos deslocamentos modificando formas antigas de apreensão da paisagem. “Na metrópole de século 19, a rapidez dos deslocamentos associadas à extensão espacial impedia o enquadramento das paisagens que, apreendidas segundo os modelos da fotografia e do cinema, fazia as obras arquitetônicas perderem suas singularidades” (4).
A tendência à regularidade presente no traçado da avenida extrapolou também para a composição arquitetônica dos edifícios que a margeavam, já que o pedestre havia sido relegado a segundo plano e a paisagem urbana devia ser fruída por aqueles que se deslocavam com rapidez nos veículos. “Na verdade, a homogeneidade era desejável, pois quem ’navegava’ pelos veículos de roda não tinha tempo para se deter em um ornato atraente, um edifício destacado, a não ser que este organismo arquitetônico se apresentasse como um poderoso monumento emoldurado pela projeção perspéctica” (5).
Com o intuito de integrar o centro urbano ao novo cenário difundido pelas grandes cidades europeias e latino-americanas, o processo de atualização da paisagem da capital capixaba foi realizado paulatinamente, submetido às oscilações da economia cafeeira e à conformação insular de seu território. A presença do maciço central foi determinante na constituição da malha urbana e neste processo de modernização da paisagem. O núcleo original de fundação da capital capixaba teve lugar na porção insular do atual município, em uma pequena área circunscrita aos limites do bairro atualmente identificado como Centro. Na estreita faixa de terra remanescente entre o morro e a linha de água da Baía de Vitoria, a atualização da pequena vila procurou reproduzir os modelos europeus de urbanização, dispostos segundo uma lógica de inspiração barroca e pautados na inserção de uma grande avenida margeada majoritariamente por edifícios de feições ecléticas.
Apesar das limitações implícitas à reprodução de soluções de caráter monumental aplicadas a um núcleo urbano acanhado como Vitoria, restrito à faixa de terra de dimensões exíguas entre o maciço central e o mar, localizado em território insular e sujeito às variações das marés, a necessidade de modernização da paisagem e de aproximação com os modelos das metrópoles latino-americanas e europeias foi adotado e imposto ao território. A modernização ocasionou a adoção de soluções próprias e originais que passariam a constituir a paisagem urbana marcada pela presença da Avenida Capixaba (6).
Vitoria: uma nova perspectiva
No início do século 20, a modernização nos centros urbanos traduziu o espírito progressista no Brasil. Sob a influência das renovações promovidas por Haussmann, em Paris, disseminou-se a inserção de grandes avenidas nas áreas centrais de feições ainda coloniais e o Rio de Janeiro, então capital federal, operou mudanças radicais no tecido urbano. “Para um país que vivera por três séculos enfurnado nas casas–grandes, a experiência de urbanização patrocinada pelo ‘Haussmann tropical’ (Pereira Passos) foi uma novidade” (7).
Essa transformação da forma urbana era essencial para criar a imagem de uma nova capital federal que simbolizasse a importância do país como principal produtor de café do mundo, criando um espaço que fosse capaz de expressar “os valores e os modi vivendi cosmopolitas e modernos das elites econômica e política nacionais” (8). Neste sentido, o desejo de atualização do espaço urbano estava associado às modificações ocorridas na própria estrutura social, com a emergente classe burguesa e suas preferências pelo espaço monumental, com perspectivas amplas e edificações suntuosas, além da demanda por espaços públicos onde fosse possível ostentar sua nova posição social.
As vias amplas ofereciam o ambiente adequado para a fruição urbana, seja deslocando-se através dos bondes, ou caminhando entre os edifícios luxuosos, cumprindo simultaneamente a função de interligação espacial, canalizador de fluxos e palco de ostentação para o espetáculo da classe burguesa.
Por outro lado, favoreciam também a circulação de mercadorias e a intensificação das atividades comerciais, adequando a forma urbana às necessidades reais de criação, concentração e acumulação do capital (9). De fato, as mudanças verificadas nas grandes cidades mantinham relação com a transformação ocorrida naquele momento “na estrutura econômica de quase todos os países latino-americanos e que repercutiu particularmente nas capitais, nos portos, nas cidades que concentraram e orientaram a produção de alguns produtos muito solicitados no mercado mundial” (10).
Esta nova lógica na conformação do espaço urbano assemelha-se ao modelo de cidade capitalista identificado por Villaça e que marcaria o início do progressivo domínio do capitalismo e do Estado Burguês sobre os espaços urbanos. O uso de arquitetura suntuosa associada a amplas perspectivas buscava exaltar as instituições democráticas da burguesia, relegando o poder religioso a um segundo plano e evidenciando os usos “ideológico e simbólico (monumentalidade)” na intenção de exaltar apenas o poder político (11).
A dinâmica da economia portuária provocou mudanças na fisionomia das cidades, com o afluxo de pessoas para os centros urbanos e a demanda por espaços onde essa nova realidade pudesse efetivamente ser vivenciada. Daí a valorização da paisagem urbana onde espaços públicos e sistema viário teriam papel fundamental na construção da imagem de cidade modernizada.
Para a cidade de Vitoria, capital do Espirito Santo, a inserção nesta nova realidade se fazia premente. Capitania de parcas condições produtivas encontrou no café a oportunidade de crescimento e projeção no mercado externo. Deriva também daí a oportunidade de atualizar a paisagem da capital, cujas características coloniais ainda se mantinham praticamente intactas até início do século 20. As grandes cidades europeias, e mais especialmente a Paris de Haussmann, se apresentavam como símbolo de modernidade. No Brasil, o modelo mais próximo era a cidade do Rio de Janeiro e as intervenções operadas por Pereira Passos com a abertura da Avenida Central.
A valorização do café no mercado mundial ocasionou um ponto de inflexão no desenvolvimento da capital capixaba. Elevada à categoria de cidade no início do século 19, manteve o papel burocrático como principal função, dado a inexistência de ligações por vias terrestres com as regiões norte e sul do território capixaba. A falta de articulação resultava no escoamento dos produtos a partir das regiões produtoras diretamente pelo porto do Rio de Janeiro, desconsiderando o porto natural localizado em Vitoria. Campos Júnior reforça que até à última década do século 19, “Vitoria era uma cidade isolada dentro do próprio território estadual” (12).
Nestas circunstâncias, a paisagem colonial de Vitoria manteve-se praticamente inalterada até fins do século 19, quando então a expansão da lavoura cafeeira serviu como incremento à atividade comercial e a vocação portuária se estabeleceu em definitivo. Como consequência da dinâmica provocada pela comercialização do café, surgiram outras atividades que se desenvolveram em paralelo. “Assim, instalou-se na Capital um variado número de lojas comerciais, abriu-se espaço para o consumo de mercadorias importadas e incrementou-se o sistema de navegação” (13).
Multiplicaram-se as casas comerciais (inclusive estrangeiras) e armazéns, demandando melhorias no espaço urbano da capital. A cidade, até então restrita à colina de ocupação original, iniciou seu movimento de expansão em direção à parte baixa, junto ao canal da Baía de Vitoria, promovendo sucessivos aterros para compensar a estreita faixa de terra disponível entre o maciço central e a linha de água da baía.
Apesar destas mudanças, a economia capixaba permaneceu inexpressiva fora dos limites da província, e mesmo internamente, a atividade portuária atendia apenas à demanda da região central colonizada pelos imigrantes europeus. Na perspectiva de preparar Vitoria para transformar-se em um centro comercial de projeção, Muniz Freire (1892-1896) assumiu o governo e iniciou uma série de intervenções urbanas que seriam continuadas pelos governos seguintes, mais especialmente, por Jerônimo Monteiro (1908-1912) e Florentino Avidos (1924-1928), que puderam contar com os lucros advindos dos picos de valorização do café. “Assim, a inserção de Vitoria na problemática urbana nacional e internacional da época (...) ocorre, a despeito de sua incipiente economia, a partir das expectativas de futuro progresso com que acena o período republicano” (14).
A partir de então, a organização espacial da capital capixaba seria consideravelmente transformada, evidenciando a urgência de modernização da paisagem, a exemplo do processo ocorrido nas grandes capitais latino-americanas como, Buenos Aires, Montevideo, Panamá, Havana, San Juan de Puerto Rico e Rio de Janeiro. Conforme destaca Romero, foi exatamente nestas cidades que acumulavam as funções administrativas de capital e atividade portuária, onde as mudanças foram mais claramente observadas, tanto na estrutura social e seus costumes, quanto na fisionomia edilícia (15). Embora Vitoria não concorresse em importância com as cidades capitais, o fato de apresentar as mesmas características ao acumular as funções portuária e administrativa oferecia perspectiva promissora para o governo progressista que então se instaurava.
A modernização da paisagem
Em fins do século 19, a remodelação da capital era fundamental para extirpar em definitivo os fantasmas do passado colonial. As vias de traçado sinuoso, apertadas entre sobrados avessos à luz do sol, a infraestrutura precária ou inexistente, a constante ameaça de epidemias, todo esse cenário era inaceitável e a insatisfação era constante nas mensagens de Governo.
Em 1895, o relatório de Muniz Freire, então Presidente de Provincia, demonstrava a expectativa quanto a um futuro promissor e a repulsa pelo aspecto da capital. Ao referir-se à necessidade de investimentos para transformação de Vitoria em “um empório comercial vastíssimo”, completa “Nós temos a felicidade de possuir uma das bahias mais pittorescas do mundo, segundo a versão de todos os viajantes, mas, em contraposição, no fundo d’essa tela admirável da natureza, a incúria e a inépcia do homem assentaram a mais irregular e menos graciosa das cidades” (16).
Depreende-se daí a importância que a paisagem urbana apresentava para o espirito desenvolvimentista de virada do século 19, especialmente nas cidades latino-americanas. A atualização do cenário urbano era imprescindível e Romero destaca a velocidade com que estas mudanças ocorreram ao observar que muitas cidades latino-americanas sofreram mudanças não somente na estrutura social, mas também na fisionomia, “embriagadas pela vertigem daquilo que se chamava progresso”, capazes de surpreender viajantes com as transformações ocorridas em pouco espaço de tempo (17).
As mudanças no espaço urbano denotavam a prosperidade do lugar, repercutindo no aumento populacional acelerado. No Rio de Janeiro, a população praticamente dobrou em duas décadas, atingindo mais de um milhão de habitantes em 1920 (18). Em Vitoria, este incremento populacional também dobrou, porém mantendo suas proporções modestas, atingindo cerca de 20.000 almas no mesmo período. Assim, a ideia de desenvolvimento também demandava a aglomeração de pessoas, o fluxo intenso de transeuntes, a intensificação dos meios de transporte.
Antes de tudo, a “estética urbana estava comprometida com o embelezamento” e a cidade deveria ser tratada como um cenário. Assim, ”Napoleão e Haussmann transformaram Paris em um museu para exposição de uma coleção de obras arquitetônicas monumentais que celebravam o passado e, principalmente, o presente” (19). Neste ambiente, dava-se o espetáculo da urbanidade, protagonizado por edifícios imponentes e por uma classe burguesa que demandava espaços onde poderiam ostentar publicamente sua riqueza e seu poder.
A rua se revelou como elemento articulador desse novo espaço. As vias rasgadas no tecido urbano preexistente, em forma de amplas avenidas ou boulevares, contrastavam com o tecido orgânico original. Sua função seria servir como ambiente de circulação e convívio social, permitindo a passagem de um “exército em triunfo” ou o “andamento ritmado de uma procissão”, sempre buscando a pompa, ostentação, magnificência (20). Permitiria também a passagem livre dos veículos de roda, introduzindo a velocidade, o movimento, o dinamismo, elementos típicos do espaço barroco especialmente dispostos na forma de grandes avenidas.
A cidade a ser percorrida pelos novos meios de transporte implicava em uma velocidade que demandava regularidade na arquitetura à sua margem, pois a captura das imagens se daria de forma acelerada. A apreensão da paisagem impunha uma arquitetura homogênea, já que era impossível deter-se em detalhes quando em deslocamento acelerado. Assim, “a presença de edifícios idênticos ou semelhantes, alinhados gregariamente aos dois lados da via, ajudava a valorizar as linhas horizontais de fuga, bem como o ritmo da modenatura arquitetônica” (21). Por fim, o traçado urbano de inspiração barroca demandaria mais um elemento de composição cenográfica: a praça, para onde convergiam três ou mais vias a fim de destacar a presença de um monumento escultórico ou organismo arquitetônico.
Essas soluções próprias do espaço barroco foram implementadas e adaptadas a diferentes realidades locais, já que consideradas como imagem incontestável das cidades que pretendiam a ordenação e embelezamento do espaço urbano, sendo vistas como condição imprescindível para a cidade que almejasse alcançar alguma visibilidade no novo cenário econômico no século.
O espírito barroco na avenida Capixaba
O tempo foi fator determinante na organização da estrutura urbana das cidades capitais. Tornava-se necessário imprimir ao espaço urbano o ritmo acelerado da vida contemporânea. Para tanto, era imprescindível a existência de uma grande avenida, retilínea, ampla, que se impunha à espontaneidade do tecido urbano tradicional.
Em Paris, a inserção da avenida Champs-Élysées criando a perspectiva com ponto de fuga longínquo, foi replicada na cidade do Rio de Janeiro com a abertura da avenida Central, inaugurada em 1905 na administração de Pereira Passos. Rasgada sobre o tecido colonial significou a conquista da paisagem moderna, expressa na extensão de aproximadamente 2 quilômetros de via. Considerada a proximidade física e influência cultural, a então capital federal também teve ingerência nas intervenções que teriam lugar no pequeno núcleo urbano de Vitória.
Em meados da década de 1920, em Vitoria, Florentino Avidos seria responsável pela abertura da avenida Capixaba. Porém, considerada a característica insular da capital, cujo núcleo permanecia constrito à faixa de terra entre o maciço central e o braço de mar que conformava a baía, a restrição do território disponível para inserção da nova avenida condicionou o comprimento da via à metade daquele previsto para a avenida Central, apresentando apenas 1 quilômetro de extensão.
Ainda assim, a inserção da avenida Capixaba ocasionou modificações na dinâmica urbana da capital. Em sua Mensagem de Governo, Florentino Avidos destaca o aumento no número de veículos após as obras de melhoria urbana já que antes “não havia aqui sinão [sic] 4 a 6 automóveis, quando hoje excede de 200 o número destes vehiculos, tornados mais aprasiveis os passeios, mais fácil a vida comercial e o transito em geral e dando mais movimento a nossa urb” (22).
A obra de alargamento e retificação da estrutura urbana para execução da avenida Capixaba pressupôs aterramentos e desapropriações de imóveis particulares para demolições e recuos, deixando suas marcas no tecido remanescente. No entanto, as intervenções para implantação da grande avenida em Vitoria são modestas se comparadas às demolições de setecentas casas e o desmonte de morros, como o Castelo, ocorridos na capital federal (23). Ainda assim, é possível perceber alguns registros remanescentes do tecido colonial ao observar a angulação dos alinhamentos laterais de alguns lotes que foram interceptados pela nova avenida.
O movimento era propriamente uma condição das grandes avenidas. Schulz destaca que na metrópole do século 19, a rapidez dos deslocamentos associada à extensão espacial impedia o enquadramento das paisagens que, ao serem apreendidas segundo os processos da fotografia e do cinema, resultavam na perda da singularidade das obras arquitetônicas. “As fachadas dos edifícios montavam um fundo enquanto o primeiro plano era marcado pelo movimento ininterrupto de veículos e da multidão de pedestres anônimos” (24).
Considerando a velocidade como valor desejável às grandes cidades, a estratégia barroca para composição do cenário urbano estava presente na estruturação da paisagem configurada ao longo da avenida Capixaba. A partir de uma rotatória, junto ao Morro da Vigia, a avenida desenvolveu seu trajeto em direção ao ponto de fuga longínquo para onde convergiam todas as linhas, imprimindo a desejada sensação de fluidez. Baeta esclarece que “enquanto os eventos monumentais surgem para dar forma e expressão ao núcleo urbano; a arquitetura ordinária, por outro lado, promove uma ‘amarração’ entre os grandes episódios dramáticos dispersos pela cidade” (25).
O ritmo da avenida Capixaba reproduzia a cadência típica da teatralidade barroca, apropriada ao urbanismo de então. Evitando a monotonia propiciada pela arquitetura que compunha o cenário, obras públicas exemplares chamavam a atenção pontuando o olhar ao longo do percurso. Estas obras de grande porte seriam os eventos monumentais necessários para interromper a monotonia do trajeto. Neste contexto, destacava-se o Mercado da Capixaba, obra que ocupa todo um quarteirão, com planta em quadra em torno de pátio central. Na ala voltada para a avenida, e apenas nesta, a presença do mercado era realçada pela criação de um corpo em dois pavimentos, evidenciando a importância da composição da paisagem citadina em conjunto com o casario comum.
As esquinas apresentavam ao cenário a oportunidade de ampliar as perspectivas acentuando o efeito cenográfico comum aos ambientes urbanos das grandes capitais. A inclusão de dois edifícios ecléticos em lotes de formato triangular, dispostos em esquinas diametralmente opostas – ao Grupo Escolar Gomes Cardim e o Serviço de Melhoramentos de Vitoria (26), pontuavam o olhar acentuando a profundidade. Reforçavam, ainda, a presença da rua Barão de Itapemirim, via transversal cujas extremidades eram arrematadas pela paisagem da Baía de Vitoria com a formação rochosa do Morro do Penedo, por um lado, e do outro, pela Praça Costa Pereira, um dos espaços mais movimentados da capital. Dessa maneira, a “imagem pictórica da cidade como obra de arte foi substituída pela cidade como um panorama aberto e expansivo, regulado pela transformação do espaço e do tempo, mudança esta promovida pelos meios de transporte” (27).
Além de obras monumentais, as praças pontuavam o trajeto dispondo um cenário ordenado com formas geométricas regulares que “sugeriam a ideia ilusionística de estar conformando pátios internos de imensos palácios” (28). Assim a praça Costa Pereira urbanizada com canteiros cuidadosamente organizados, complementada com coreto e chafariz, destacava a fachada eclética do Teatro Carlos Gomes, compondo o cenário com os sobrados dispostos em seu entorno. Mais à frente, a praça Oito de Setembro consistia em um dos pontos mais movimentados da cidade, com a imponência da Alfândega, importantes casas comerciais e os cafés que serviam de ponto de encontro para a sociedade capixaba.
Como parte da retórica de inspiração barroca, Baeta destaca a surpresa como um importante artificio para ampliar o efeito cenográfico do espaço urbano (29). Naturalmente presente nas ruas tortuosas e irregulares da malha antiga, tal efeito era também desejado nas vias retilíneas que buscavam a fuga das linhas dos edifícios a fim de evidenciar a perspectiva. Nestas últimas, um súbito recuo interrompendo a gregariedade dos edifícios repentinamente daria lugar a praças amplas e bem organizadas, geralmente com um ou mais edifícios imponentes em destaque na paisagem, conferindo o efeito surpresa, o inesperado.
Na avenida Capixaba, as duas praças localizadas ao longo do trajeto, apenas tangenciando o traçado da avenida, atendiam a este propósito. Ambas, a praça Costa Pereira e a praça Oito de Setembro configuravam hiatos onde a perspectiva se ampliava em recintos urbanos que se integravam à avenida e cujos cenários reforçavam a teatralidade do ambiente citadino.
Arrematando a narrativa urbana, uma das extremidades da avenida era marcada por uma rotatória, ponto de parada do bonde, onde se encontrava o Monumento ao Trabalho, próximo ao Morro da Vigia. Ainda que não fosse de grandes proporções, o arranjo indicava um tratamento diferenciado pela tentativa de criar ali um evento capaz de valorizar as linhas de convergência da perspectiva da avenida, já que o Morro do forte São João era um limitador natural impedindo maior extensão para o eixo da via.
Na extremidade oposta, a avenida era arrematada por um largo onde se confrontavam a paisagem portuária da Baia de Vitoria – signo do desenvolvimento; e o Palácio Anchieta – sede do governo e símbolo do poder. Este último era devidamente destacado pela imponência da Escadaria Bárbara Lindemberg, cujo desenho cenográfico e ornamentação escultórica ofereciam ao transeunte a oportunidade de uma experiência urbana, dinâmica, com suntuosidade à altura do que requeria uma grande avenida.
É desta maneira que o panorama ao longo da avenida Capixaba se desenvolve em consonância com o discurso implícito nas avenidas das cidades capitais da virada do século, postura que Baeta destaca ao evidenciar que a paisagem urbana revelava seu caráter artístico pelo cenário que era oferecido ao transeunte. Este espetáculo seria absorvido através da interação entre todos os fatores que compunham os panoramas emanados na imagem da cidade: “a paisagem natural, o sistema viário e, principalmente, o intercâmbio destes elementos com a arquitetura” (30).
Considerações finais
A teatralidade característica das soluções barrocas se mostrou apropriada à composição do espaço urbano nas cidades que se propunham modernas na passagem do século 19. Tal intenção se realizou principalmente nas capitais que desenvolviam atividade portuária e experimentaram um incremento significativo na população. Para a cidade de Vitória, o acesso à modernidade era uma possibilidade recente garantida pelo bom desempenho do café no mercado internacional, fato que propiciou a concretização de uma serie de intervenções na malha urbana buscando o aformoseamento da paisagem e a eficiência na circulação de mercadorias, a fim de atender às demandas comuns aos grandes centros comerciais.
Nas longas avenidas, a perspectiva acentuada pela distância reforçava a dramaticidade, propiciando a inserção de elementos que, isolados ou em conjunto, ofereciam suporte ao espetáculo urbano a ser desfrutado pelo cidadão comum. Importava a manifestação de uma ambiência capaz de impressionar aos visitantes, onde o tecido urbano retificado seria capaz de imprimir a sensação de velocidade comum às perspectivas longilíneas das cidades europeias e das grandes capitais latino-americanas. Ser moderno significava compartilhar da ambiência urbana, deslocar-se naturalmente por entre a multidão e os meios de transporte, vivenciar o espetáculo oferecido pela paisagem urbanizada. A modernidade implicava uma atitude do indivíduo, pressupondo uma nova maneira de relacionar-se com o ambiente urbano.
De certa forma, a inserção da cidade de Vitoria neste cenário ocorreu tardiamente, limitada tanto no que diz respeito aos recursos financeiros de uma economia escassa quanto às restrições impostas pelo próprio território onde a mancha urbana se mantinha encravada entre o maciço central e a linha d’água da Baía de Vitoria. Somente a partir de fins do século 19 o incremento da economia cafeeira e os preços elevados do produto propiciaram momentos de relativa fartura. Acompanhando os picos da valorização do café no mercado internacional, as intervenções urbanísticas propiciaram nova configuração ao espaço urbano da capital.
A execução de sucessivos aterros e alargamentos foram imprescindíveis à abertura de uma grande avenida capaz de propiciar o bom desenvolvimento do organismo urbano, comportando o fluxo de pessoas e mercadorias e compondo, finalmente, uma ambiência compatível com o espirito das capitais modernizadas da virada de século.
Ainda que de dimensões modestas, a avenida Capixaba reproduziu o modelo implícito do barroco apropriando a confluência de linhas em perspectiva que imprimia a sensação de velocidade, a cenografia do casario eclético em contiguidade pontuada por obras públicas monumentais estrategicamente distribuídas evitando a monotonia ao longo do percurso e a presença de praças com desenho ordenado conformavam recintos urbanos onde edifícios imponentes acentuavam o efeito surpresa, um artifício cenográfico comum à retórica barroca.
notas
N.A.
A autora agradece à CAPES o apoio recebido para desenvolvimento deste trabalho através da concessão de bolsa de estudos.
1
ROMERO, José Luis. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004, p. 283.
2
PIMENTEL, Viviane Lima. O Novo Arrabalde da Praia Comprida: a arquitetura residencial na Praia do Canto em Vitoria- ES (1910-1939). Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2006, p. 40.
3
ROMERO, José Luis. Op. cit., p. 286.
4
SCHULZ, Sonia Hilf. Estéticas Urbanas: da pólis grega à metrópole contemporânea. Rio de Janeiro, LTC, 2008, p. 148.
5
BAETA, Rodrigo Espinha O barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII. Salvador, EDUFBA, 2010, p. 224.
6
A avenida Capixaba, cuja abertura foi finalizada em meados da década de 1920, teve posteriormente seu nome modificado para avenida Jerônimo Monteiro, mantendo esta denominação até os dias atuais.
7
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002, p. 393.
8
ABREU, Mauricio de Almeida. Evolução urbana no Rio de Janeiro. 4ª edição. Rio de Janeiro, IPP, 2013, p. 60.
9
Idem, ibidem, p. 59.
10
ROMERO, José Luis. Op. cit., p.283.
11
VILLAÇA, Flavio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo, Studio Nobel, 2012, p. 107.
12
CAMPOS JUNIOR, Carlos. Teixeira de. O Novo Arrabalde. Vitoria, PMV/Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996, p. 122.
13
Idem, ibidem, p. 132.
14
MENDONÇA, Eneida Maria Souza. et al. Cidade prospectiva: o projeto de Saturnino de Brito para Vitoria. Vitoria, Edufes, 2010, p. 33.
15
ROMERO, José Luis. Op. cit., p. 286.
16
FREIRE, José de Mello Carvalho Moniz (1894). Mensagem lida pelo Exmo. Sr. Presidente do Estado do Espirito Santo na installação do Congresso Legislativo. Typographia do Estado do Espírito Santo, Vitória, jan. 2018 <https://bit.ly/2xM9Jko>.
17
ROMERO, José Luis. Op. cit., p. 283.
18
Idem, ibidem, p. 287.
19
SCHULZ, Sonia Hilf. Op. cit., p. 142.
20
BAETA, Rodrigo Espinha. Op. cit. p. 220.
21
Idem, ibidem, p. 224.
22
AVIDOS, Florentino (1926). Mensagem apresentada pelo Exmo. Sr. Dr. Florentino Avidos, Presidente do Estado Espírito Santo, ao Congresso Legislativo, na 2ª Sessão Ordinária da 12ª Legislatura, em 15 de abril de 1926. Typographia do Estado do Espírito Santo, Vitória, set. 2016, p. 72 <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1415/000001.html>.
23
ROMERO, José Luis. Op. cit., p. 311.
24
SCHULZ, Sonia Hilf. Op. cit., p. 148.
25
BAETA, Rodrigo Espinha. Op. cit. p. 237.
26
Atualmente abrigam a Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música – FAF e o Museu de Arte do Espírito Santo – Maes.
27
BAETA, Rodrigo Espinha. Op. cit. p. 145.
28
Idem, ibidem, p. 226.
29
Idem, ibidem, p. 257.
30
Idem, ibidem, p. 236.
sobre a autora
Viviane Lima Pimentel é doutoranda do Proarq-FAU-UFRJ (Bolsista Capes) e Mestre em Arquitetura pela mesma instituição (2006). Arquiteta e urbanista graduada pela UFES (1990), atua como docente no curso de Arquitetura e Urbanismo da Faesa/ES. Atualmente, tem como foco de pesquisa o Centro de Vitoria, capital capixaba.