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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Análise de imagens que constituem a memória coletiva da cidade de Belém, a partir de perspectivas do plano diretor de 1975, discutindo também como o Estado desempenha papel de destaque na construção da imagem urbana nostálgica e faustosa.

english
Analysis of images that constitute the collective memory of the city of Belém, from perspectives of the master plan of 1975, also discussing how the State plays a prominent role in the construction of the nostalgic and opulent urban image.

español
Análisis de imágenes que constituyen la memoria colectiva de la ciudad de Belém, a partir de perspectivas del plan de 1975, discutiendo también cómo el Estado desempeña un papel destacado en la construcción de la imagen urbana nostálgica y opulenta.


how to quote

LIMA, José Júlio Ferreira; NUNES, Mateus Carvalho; EIRÓ, Jorge. Cidade, imagem, embelezamento. Desenhos em perspectiva dos planos urbanísticos para Belém. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 221.02, Vitruvius, out. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.221/7147>.

Palácios Lauro Sodré (Sede do Governo do Estado) e Antônio Lemos (Sede da Prefeitura), no Álbum de Belém de 1902
Foto Felipe Augusto Fidanza, 1902

"Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins" (1).

No antológico texto As cidades invisíveis, de Italo Calvino, Marco Polo, o viajante veneziano, descreve ao imperador Kublai Khan as inúmeras cidades de seu vasto império. A narrativa oral é a única forma de Khan ter alguma ideia da dimensão de seus domínios. O relato do explorador, dessa forma, acaba por assumir um caráter documental que representa uma espécie de prestação de contas ao imperador, mesmo que apenas por meio da oralidade. No entanto, o genial artifício empregado por Calvino em suas imagens literárias acaba por se converter em um texto pleno de imagens visuais, carregadas de plasticidade, revelando a cidade em todas as suas nuances, como uma potente carga simbólica da experiência humana. Marco Polo desenha em sua fala as mais diversas perspectivas das Cidades invisíveis. Esse desenho tão fino, a que se refere Calvino, guarda, metaforicamente, o conceito de documento.

Planos propostos para a Região Metropolitana de Belém – RMB a partir da década de 1970, objeto de estudo do projeto de pesquisa ao qual este artigo faz parte, contêm propostas de intervenção urbana mostradas na forma de perspectivas que representam espaços urbanos após a implantação de intervenções de diversas naturezas. Do conjunto de imagens em análise na pesquisa a qual este trabalho vincula-se, optou-se por analisar as imagens de propostas para o Centro Histórico de Belém, contidas no plano diretor de 1975 (2). As proposições adequam-se ao viés de pensamento urbanístico culturalista, de embelezamento urbano, postura analítica proposta por Françoise Choay (3). Para tal, a metodologia utilizada parte do registro das perspectivas veiculadas nos planos, quando são observados seus aspectos plásticos, autoria, técnicas de representação gráfica, publicização, carga conceitual e de movimentação imagética. Realiza-se ainda pesquisa bibliográfica para o entendimento das bases conceituais contidas no plano e o papel das propostas como componentes do processo político.

Assim, este trabalho é dividido em duas sessões, além desta introdução e das conclusões finais. Na primeira, são discutidas as bases conceituais das reverberações destas perspectivas, a partir da discussão da imagem e de sua potência, percebendo como os significados que possibilitam a leitura da cidade de Belém a partir da narrativa visual já constituída se movimentam no tempo e nas imagens. Além disso, ainda na primeira parte, analisa-se como estas imagens podem ser utilizadas como objetos documentais na pesquisa e na historiografia da arquitetura e do urbanismo, cerne desta investigação. Na segunda sessão, a partir da análise das imagens contidas no Plano Diretor da Grande Belém – PDGB (4) de 1975, aborda-se como estes projetos urbanísticos para o Centro Histórico agem como peças movimentadoras do cenário político, espacial e social da cidade, e como esta visão de planejamento urbano corrobora com a construção nostálgica e faustosa de Belém a partir de sua direta ligação com a criação de imagens. Ou seja, sugere-se, por fim, como o Estado desempenha papel de destaque na construção da imagem da cidade.

Desenhos de perspectiva: imagem, deslocamento, documento

A discussão sobre as reverberações da imagem neste contexto é extremamente relevante por diversos fatores, sejam eles históricos, sociológicos, urbanísticos, arquitetônicos, políticos ou propriamente imagéticos, podendo adotar inclusive uma postura de crítica à historiografia convencional de análise destas imagens. Georges Didi-Huberman, em A imagem sobrevivente (5), ao abordar o pensamento do historiador de arte alemão Aby Warburg (1866-1929), frisa que há, no pensamento warburguiano, uma prática de constante deslocamento: "deslocamento no pensar, nos pontos de vista filosóficos, nos campos de saber, nos períodos históricos, nas hierarquias culturais, nos lugares geográficos" (6).

Havemos de entender, portanto, que as imagens analisadas neste trabalho, assim como as imagens em geral, deslocam-se: em tempo, ao simbolizarem uma época marcante na história da cidade, que perpetua símbolos e nostalgia, e mantém-se presente como recordação imagética ou como crítica sociopolítica e de gestão atual; em áreas do conhecimento, ao analisar as consequências sociais e fenomenológicas, através da história, destas proposições arquitetônicas e urbanísticas, vinculadas essencialmente a um caráter político, pela análise da imagem; e em outras esferas.

Embora as imagens sejam extremamente poderosas como um veículo de expressão de conceitos e ideias, não apenas o são, mas têm seu próprio poder e expressão em si próprias. Só se tem, entretanto, a compreensão total da complexidade das imagens com esta integração de outras áreas do conhecimento, como buscamos atingir neste trabalho. Warburg é um defensor deste pensamento, ao convocar para uma Kunstwissenschaft, uma "ciência da arte" específica, também conhecida por "ciência sem nome", na discussão dos símbolos e se suas reverberações, combatendo a história da arte estetizante que buscava analisar as obras apenas em seu caráter figurativo de beleza (7). Desta forma, as imagens também se tornam objetos de estudo, neste caso, da história da arquitetura e do urbanismo, adquirindo caráter documental historiográfico:

"Há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira" (8).

As perspectivas sob análise neste trabalho distinguem-se por seu caráter documental na medida em que se configurarem capazes de transmitir conceitos, intenções e também de criar novas ações a partir do que é contido nelas. Neste caso, converge-se à ideia de que as soluções espaciais seriam capazes de alterar, em alguma medida, a própria sociedade, principalmente pela forma como se mostram componentes dotados de consenso pelos próprios usuários do espaço urbano. A potência da imagem (9) é atrelada, pela população, a soluções sócio-espaciais para a área em que esta vive, fortalecendo o projeto arquitetônico de diversas maneiras, inclusive na reiteração da ideia de eficácia política e que se efetiva como mídia estatal.

Segundo Marina Waisman (10), documento é tudo aquilo que pode contribuir para elucidar os aspectos históricos de um objeto de estudo, constituindo o monumento, conceito usual na historiografia arquitetônica e urbanística. Os desenhos de perspectivas, assim como os desenhos bidimensionais e os textos dos planos diretores e dos projetos urbanísticos, são fundamentais para o estudo da influência dos agentes privados e do poder público no espaço urbano e suas reverberações na discussão política e social. Analisa-se aqui também a contribuição das perspectivas para a cidade, sua população e sua história, não apenas na condição de uma peça gráfica isolada de um processo de construção historiográfica. As imagens criadas para Belém ao longo do tempo vêm se constituindo em referência para ações estatais, seja por meio da criação de um consenso coletivo do que se constitui em projeto de cidade, bem como de uma referência para a mídia governamental.

Por meio destes desenhos-documentos, revela-se um artifício que contribui para a construção da memória coletiva da cidade – através também de sua forma científica, a história –, sintonizados com o conceito dos documentos e monumentos explorados por Jacques Le Goff (11), também abordado por Waisman. Começa a se constituir, então, uma história analítica a partir das imagens. A despeito do fato de que algumas das propostas urbanas contidas nos projetos não tenham sido executadas, o que sobrevive (e deve ser realçado como documento histórico) não é apenas o conjunto do que existiu no passado, mas um feixe de ressonâncias que operam no desenvolvimento espacial e temporal da humanidade através da construção de uma narrativa visual da cidade.

Fábio Fonseca de Castro (12) batizou esta sedimentação de significados referentes à modernidade presente nas imagens de Belém de semiotical blues. Assim, este caráter se faz presente na contemporaneidade a partir da constituição de uma memória coletiva a partir destas imagens, neste caso aqui frutos de projetos urbanísticos produzidos pelo poder público, percebendo a discussão social deste discurso "ao nível de uma análise social da reverberação discursiva" (13).

Os ideais concernentes à discussão do planejamento urbano e dos posicionamentos teóricos e ideológicos do urbanismo adotados para a elaboração destas propostas permeiam os significados da imagem sobrevivente da cidade naquela época. Aqui, são muito mais importantes os significados que as imagens contêm e geram, do que a própria fidelidade técnica aos projetos urbanísticos que elas propõem. Estes significados são intrinsecamente relacionados ao caráter culturalista das propostas apresentadas para o Centro Histórico no Plano de Desenvolvimento para a Grande Belém. O ideal de embelezamento urbano está ligado, em sua essência, com a criação direta de imagens ("belas") que geram a gênese desta memória coletiva da cidade, que em Belém sempre está relacionada com a cidade de outrora.

Embelezamento e funcionalidade na construção da modernidade em Belém

Assim como Paris serviu, na Europa do século 19, como um espaço privilegiado para a experimentação do espírito moderno (14), Belém serviu como experiência de introdução deste pensamento na Amazônia. O vasto material iconográfico e simbólico do cenário histórico-político de Belém naquele período chega à atualidade através dos Relatórios de Antônio Lemos, Intendente municipal entre 1897 e 1911. O conjunto bem organizado na forma de relatório de obras, administração de serviços e até legislação urbanística e edilícia, embora não fossem, serviram essencialmente como veículo de propaganda política dos projetos, das obras e do cotidiano do governante. A estratégia de proposição e execução de obras no espaço urbano como perpetuação política no regime democrático se repete na história: para Lemos, a Secção de Obras era considerada como "uma das úteis e operosas repartições da Intendência", e suas atividades ocupavam centenas de páginas dos seus Relatórios Anuais (15). O governo de Lemos, por tais estratégias e ações, constituiu uma narrativa visual do período histórico da cidade marcante na construção da identidade urbana de um período de grande pujança econômica devido aos preços da goma extraída da Amazônia e escoadas pelo Porto de Belém, e tais imagens criadas neste período movimentam-se na memória coletiva da cidade.

No governo Lemos, obras públicas eram utilizadas como veículo ideológico: a modernidade trazida pelos diversos aterros na área da Campina – a água não é mais um limite, agora constrói-se sobre ela –, o ar parisiense pela implementação do Boulevard da República – com outra compreensão da perspectiva e da monumentalidade da cidade – e o código de polícia que ditava como as construções da cidade deveriam ser, sob ideias higienistas e elitistas – o novo momento da República. Assim, constitui-se uma narrativa de efetiva ação do governante, de execução de obras que modificaram o espaço urbano e trouxeram melhorias para a cidade e para a população. As imagens tornam-se, então, método de propaganda do próprio governante e de seu mandato, visando a continuação do mandato ou a perpetuação política do nome na história. As imagens para o Centro Urbano analisadas neste trabalho são duplamente representativas, por um lado pela continuidade histórica que se constrói já na administração lemista, e por outro, já na contemporaneidade, seguem a mesma estratégia midiática política.

Perspectivas para a Área no entorno dos Palácio Antônio Lemos (Sede da Prefeitura) e Palácio Lauro Sodré (Sede do Governo do Estado) (situações atual e proposta)
Imagem divulgação [Plano de Desenvolvimento para a Grande Belém (PDGB). Volume II – Anteprojeto de Remanejame]

A proposta de criação de um enorme lago artificial, circundando ambos os Palácios, o do Governo e o Azul – hoje Lauro Sodré e Antônio Lemos, respectivamente possui caráter icônico. Reúne, em sua essência, todos os pontos de movimentação e geração de imagem e significado, constituindo um cenário que beira a utopia, a supremacia do monumento, a exaltação da arquitetura e o fetichismo da integração com a água que busca transportar e elevar, narrativamente, as edificações monumentais do espaço urbano presente, como proposto no plano:

"Maximização da proximidade do rio e integração do elemento água no conjunto através da ampliação das docas do Ver-o-Peso até a Praça do Relógio e às fachadas de sobrados na Marquês de Pombal, lembrando o antigo Igarapé do Piri [...]; criação de um lago artificial (comportando uma reprodução da flora dos igarapés) enfatizando o eixo monumental [...] e destacando o conjunto arquitetônico formado pelo Palácio do Governo e o Palacete Azul" (16).

Há o enlace com a supremacia histórica de Belém e o resgate da imagem de cidade moderna e abastada. Esta é a chave para a compreensão dos processos de embelezamento do espaço urbano: a criação de uma narrativa visual, de um espaço deslumbrante e majestoso, que carrega diversos valores e serve, neste caso, como forte estratégia de veiculação de ideais políticos.

A representação em perspectiva, aqui, apresenta um forte distanciamento do espaço real constituído na cidade. Porém, é esta distância paradoxal que fornece a potência da imagem, onde Didi-Huberman utiliza Maurice Blanchot para ilustrar:

"Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não estar em contato e de evitar o contato a confusão. Ver significa que essa separação tornou-se, porém, encontro. Mas o que acontece quando o que se vê, ainda que à distância, parece tocar-nos por um contato comovente, quando a maneira de ver é uma espécie de toque, quando ver é um contato à distância? [...] [Então] o olhar é arrastado, absorvido num movimento imóvel e para um fundo sem profundidade. O que nos é dado por um contato à distância é a imagem, e o fascínio é a paixão da imagem" (17).

É este distanciamento paradoxal e potencial que permite a complexidade presente na memória coletiva da cidade. É este movimento que absorve que maneja estes significados e imagens da formação do que compreendemos como a cidade. O ponto em que a representação e a cidade se encontram é justamente esta memória coletiva, permeada pela névoa do semiotical blues (18). Este ponto de inflexão (19) da imagem com o real é de alta complexidade, por operar objetos de meios tão distantes e por vezes aparentemente irrelacionáveis. Segundo Didi-Huberman, "a imagem arde em seu contato com o real" (20), fazendo com que a compreensão de memória da cidade esteja sempre em movimento, ardendo, reacendendo em chama sempre acesa as memórias constituídas através do tempo.

Perspectivas para o entorno da Catedral de Belém (situação existente e proposta)
Imagem divulgação [Plano de Desenvolvimento para a Grande Belém (PDGB). Volume II – Anteprojeto de Remanejame]

As propostas para o Largo da Sé, formado pelo conjunto da Catedral Metropolitana de Belém, local de fundamental importância por ladear o forte do Presépio e a Igreja de este conjunto reforçam categoricamente o ideal de embelezamento da cidade: desapropria-se, demole-se e remaneja-se o que compromete de maneira negativa a paisagem urbana, realçando os aspectos estéticos do cenário, enquanto recupera-se e reintegra-se o que a fortalece. Para o subconjunto das fachadas da Catedral e quadras adjacentes, há a proposição de demolição de diversos "prédios prejudiciais ao conjunto" (21), como galpões de maneira encostados à Igreja de Santo Alexandre e outros prédios e barracões comerciais situados no entorno. Na praça Frei Caetano Brandão, há a curiosa proposição de transferência da estátua do centro da praça e a reimplantação das mangueiras como vegetação periférica e das duas centenárias cicadácias no centro da praça, possibilitando que o espaço seja usado também para atender ao público das igrejas em suas festividades. Evidencia-se uma forte preocupação com as intervenções paisagísticas nos espaços dos conjuntos já que, segundo o próprio plano, "a área central [...] é o repositório ambiental da ‘memória urbana’ de Belém" (22). A manutenção, complementação e revitalização de espécies vegetais em diversas partes, principalmente nas rotas para pedestres, contribuem para o caráter ornamental e contemplativo previsto para a área.

O remanejamento de ocupações do local da intervenção, segundo o próprio plano, era entendido como um ato de ordenamento e organização urbana e fora aplicado visando o resgate e a preservação da "área que mais identifica Belém como metrópole da Amazônia" (23), aspecto que revela uma busca de afirmação de uma identidade cultural local com seus matizes estéticos e ideológicos. Além da indenização e remoção das habitações irregulares da área, o projeto para aquela porção visava a reconstituição dos barracões comerciais adjacentes ao Mercado e ao Porto do Sal, o que estimularia e dinamizaria o comércio varejista existente (24). Curiosamente, os desenhos para a área do Conjunto do Carmo e Rua Siqueira Mendes, que sintetizam graficamente estes ideais, foram desenvolvidos a partir de fotografias da década de 1973 de autoria de Roberto Serra Freire.

Conjunto do Carmo e Rua Siqueira Mendes, Belém
Foto Roberto Serra Freire, 1973

Perspectivas para a Área do conjunto do Carmo e Rua Siqueira Mendes (situações atual e proposta, respectivamente)
Imagem divulgação [Plano de Desenvolvimento para a Grande Belém (PDGB). Volume II – Anteprojeto de Remanejame]

Os princípios de limpeza e organização, frequentemente adotados como princípios pelos projetos urbanísticos com caráter higienista, fizeram com que as proposições do plano, de maneira geral, visassem a manutenção das condições de higiene, saúde pública e funcionamento comunitário nos espaços públicos do Centro (25). O caráter organizacional explícito no plano não trata apenas da organização espacial e urbana, mas de organização logística e de atividades executada nas áreas de intervenção. Tal organização se dava de diversas maneiras: por controle e restrição sobre os estabelecimentos de serviço, como bares, restaurantes e feiras; restrições e proibições quanto a devidos usos do espaço da via pública, como estacionamentos; e reorganização e regulamentação das atividades na área, como atividades comerciais, serviço de limpeza pública e policiamento.

As representações paisagísticas em perspectivas compõem uma narrativa visual relacionada a uma determinada época, seja por seu caráter idílico e utópico, ou pragmático e técnico e, em razão disso, constituem-se como um importante documento histórico. Tais propostas são apresentadas por meio de perspectivas, o que faz com que os desenhos sejam simultaneamente expressões de um conjunto de intenções de variados agentes sociais interessados no espaço urbano, além de funcionarem como veículos de propaganda estatal (26), ou seja,

"suas propriedades produtivas, sua capacidade de engendrar ideias, correntes, tendências, de abrir perspectivas inéditas ou de consolidar em uma realização concreta um conjunto de ideias dispersas, podem fazer com que transcenda amplamente o momento de seu aparecimento" (27).

Sobre as proposições e seus desenhos constantes de planos com o caráter de embelezamento e suas imagens em perspectiva, relacionamos a Waisman:

"Pois uma obra de intervenção em uma cidade, embora sejam em si mesmos fatos que podem ser considerados de curta duração, 'acontecimentos', podem gerar uma média duração ao ver generalizada sua proposta estilística ou tipológica" (28).

Ao analisar as perspectivas existentes nos planos e projetos para Belém, agora com o distanciamento temporal necessário, propõe-se articular ideias veiculadas nas proposições espaciais a suas viabilidades à matriz de Choay. A representação de projetos e obras públicas desempenha, assim, papel relevante na articulação entre o Estado e a modernidade na cidade de Belém, especialmente devido a seu caráter desenvolvimentista e de importação de ideais europeus para as cidades (29). Segundo Castro (30), no final do século 19 houve o que se caracterizou como um período de grande visibilidade do moderno, ganhando uma projeção mundial marcada pela expansão colonial e industrial das potências europeias. Esta concepção moderna foi impulsionada também, ideologicamente, pela adaptação ou implantação de certos modelos e pensamentos europeus na realidade colonizada – e pela celebração do progresso técnico-industrial (31) – que servia como propagação das modernidades advindas com o pensamento republicano, suas eficiências econômicas, repercussões sociais e o espírito de um novo ideário estético. Destacamos como se deram os desdobramentos da modernização arregimentada em Belém após o surto da economia da borracha no embelezamento urbano e depois na construção de uma imagem de eficiência funcional por meio de melhorias viárias.

Considerações finais

Historicamente, os desenhos em perspectiva da cidade de Belém, para além de sua dimensão artística, cumprem o papel de registro documental da paisagem urbana em um determinado contexto, e servem de suporte para propostas paisagísticas para o Centro Histórico. As perspectivas existentes no Plano Diretor de 1975 eram desenvolvidas pelos próprios arquitetos autores dos projetos ou artistas dotados de pendores artísticos e que, por conta de talento, davam conta de ilustrar plasticamente a proposta. Invariavelmente, utilizavam-se de fotografias para executarem as perspectivas.

Ao ilustrarem o Plano Diretor, as perspectivas se constituem em documentos de intenções para modificações na paisagem numa narrativa visual documental do Estado, em parte meramente como discurso de anúncio preliminar de projetos futuros que, em casos, não foram executados, mas tornaram-se construção de uma imagem voltada a um consenso público por conta de sua expressão plástica, assim como pelas especulações formais em meio à discussão do viés político.

Dentre as diversas modalidades de documento, destaca-se nos objetos analisados no presente estudo a representação gráfica de projetos urbanísticos em perspectiva. O desenho em perspectiva é mais usual no campo dos projetos arquitetônicos, embora a integração entre a arquitetura e o urbanismo seja intrínseca e indissociável, inclusive na esfera projetual. Além da função de traduzir e interpretar conceitos tridimensionais e espaciais em uma superfície bidimensional (32) – o próprio plano –, essencialmente gráfica, desenhos-documentos são apontamentos de caráter político e ideológico, além de se serem representativos de uma linguagem de expressão plástica, considerada secundária na produção de arquitetura e urbanismo. A partir da leitura de Georges Didi-Huberman (33), atesta-se a sobrevivências destas imagens a partir da integração de diversos campos do conhecimento na constituição de narrativa visual da cidade. Os desenhos são assim associados à potência das imagens e ao deslocamento de significados e componentes nelas presentes, inserindo-as como análise das reverberações fenomenológicas através da História.

notas

1
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 10.

2
Prefeitura Municipal de Belém. Plano de desenvolvimento para a Grande Belém – PDGB. Volume II – Anteprojeto de Remanejamento da Área Central. Belém, Codem, 1975.

3
CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 1979.

4
Prefeitura Municipal de Belém. Op. cit.

5
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro, Contraponto, 2013.

6
Idem, ibidem, p. 31.

7
Idem, ibidem.

8
SAMARAN, Charles. L’histoire et sés methods. Encyclopédie de la Plêiade, XI. Paris, Gallimard, 1962.

9
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit.

10
WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo, Perspectiva, 2013.

11
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4ª edição. Campinas, Unicamp, 1996.

12
CASTRO, Fábio Fonseca de. A Cidade Sebastiana. Era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade. Belém, Edições do Autor, 2010, p. 30.

13
Idem, ibidem, p. 31

14
Idem, ibidem, p. 69.

15
MATOS, Ana Léa Nassar. Um projetista para a cidade lemista: José Sidrim. In SARGES, Maria de Nazaré; LACERDA, Franciane Gama (Org.). Belém do Pará: História, cultura e cidade para além dos 400 anos. 2ª edição. Belém, Açaí, 2016, p. 33.

16
Idem, ibidem, p. 139.

17
BLANCHOT, Maurice. “Parler, ce n’est pas voir” (1960). L’Entretien infini. Paris, Gallimard, 1971, p. 39-41. Apud DIDI-HUBERMAN, Georges. De semelhança a semelhança. Alea, v. 13, n. 1, Rio de Janeiro, jan./jun. 2011, p. 29.

18
CASTRO, Fábio Fonseca de. Op. cit., p. 30.

19
DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 2012, p. 33.

20
DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. Pós, v. 2, n. 4, Belo Horizonte, nov. 2012, p. 207.

21
Idem, ibidem, p. 138.

22
Idem, ibidem, p. 95.

23
Prefeitura Municipal de Belém. Op. cit., p. 6.

24
Idem, ibidem, p. 137.

25
Idem, ibidem, p. 125.

26
RUBIM, Antonio Albino Canelas; AZEVEDO, Fernando Antonio. Mídia e Política no Brasil: textos e agenda de pesquisa. Lua Nova, n. 43, São Paulo, 1998, p. 189-216 < https://bit.ly/2PuC5uf>.

27
WAISMAN, Marina. Op. cit., p. 73. Grifo dos autores.

28
Idem, ibidem, p. 72.

29
NUNES, Márcia Cristina Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade imperial e a metrópole republicana. Tese de Doutorado Belém, PPHIST/IFCH UFPA, 2017.

30
CASTRO, Fábio Fonseca de. Op. cit.

31
Idem, ibidem, p. 70.

32
DOMINGUEZ, Fernando. Croquis e perspectivas. Porto Alegre, Masquatro, 2011, p. 4.

33
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (op. cit.).

sobre os autores

José Júlio Lima é PhD em Arquitetura (Oxford Brookes University, 2000), MA Urban Design (Oxford Brookes University, 1994), ME (Universidade de Fukui, 1991), e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará.

Mateus Carvalho Nunes é graduando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Bolsista de Iniciação Científica da Universidade Federal do Pará no Laboratório Cidades na Amazônia (Labcam/FAU UFPA).

Jorge Eiró é doutor em Educação (Universidade Federal do Pará, 2014), mestre em Educação (Universidade Federal do Pará, 2009), arquiteto e urbanista (Universidade Federal do Pará, 1983) e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará.

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