Localizado na cidade do Porto, o Museu de Serralves é considerado o principal espaço dedicado à arte contemporânea de Portugal. O Museu foi construído dentro dos limites da Quinta de Serralves, uma antiga propriedade que pertencia ao Conde de Vizela antes de ser adquirida pelo governo português em 1989. A fundação de Serralves conta ainda com uma série de jardins e uma casa em estilo art déco construída nos anos 1940. Projetado por Álvaro Siza, o edifício do Museu foi construído na cabeceira norte do parque, próximo à avenida Gomes da Costa, em uma clareira que abrigava a horta e o jardim das espécies vegetais (1).
A construção do Museu (1991-1999) é contemporânea de outras importantes iniciativas culturais que ocorreram na Europa no final do século 20, como o Museu Guggenheim de Bilbao (1993-1997) e o Museu Judaico de Berlim (1989-1999). Esse período ficou marcado pelas políticas urbanas, que apostavam na espetacularização do espaço público, mediante a revitalização de áreas esquecidas ou da promoção de novas centralidades, tendo como principais instrumentos os equipamentos de lazer e cultura (2). Por conta disso, grande parte dessas obras ficou conhecida como arquitetura do espetáculo: projetos impactantes, assinados por arquitetos renomados e sem grandes preocupações orçamentárias. Em 2001, a cidade do Porto em conjunto com Roterdã foi promovida ao título de Capital Europeia da Cultura. A iniciativa culminou na revitalização de diversos espaços públicos da cidade portuguesa, bem como na construção de edifícios icônicos, como o projeto da Casa da Música do arquiteto Rem Koolhaas, finalizado quatro anos mais tarde.
Em contrapartida, a arquitetura essencial do Museu de Serralves destoa da produção vigente no período, demonstrando que nem sempre são necessários grandes investimentos e complexidade projetual para transformar positivamente o contexto da cidade ou do lugar. Nesse sentido, pretendeu-se realizar um estudo crítico-interpretativo do Museu, para melhor compreender a sua condição essencial e capacidade de síntese, bem como a experiência arquitetônica singular que a obra proporciona.
É difícil encontrar qualquer referência à obra de Álvaro Siza que não faça menção à sua dimensão poética. Prova disso é o grande número de comparações que associam o trabalho do arquiteto com a poesia do seu conterrâneo Fernando Pessoa. Do mesmo modo, é igualmente difícil encontrar categorias satisfatórias no campo da arquitetura para classificar sua produção. Rafael Moneo acredita que sua obra esteja tão próxima da poesia que a sua sensação experiencial seja semelhante à leitura de um poema. Mas como analisar o projeto de um arquiteto que concebe como um poeta e aparenta transitar por um campo tão subjetivo como a emoção? O autor fornece uma pista ao afirmar que Siza possui a capacidade de criar uma espécie de “experiência fenomenológica da arquitetura” (3) ao dispor os elementos no espaço.
A fenomenologia sugere uma visão metafisica dos fatos, a qual reconsidera a intuição do indivíduo como fonte de conhecimento primário, procedente do que Edmund Husserl chamou de O Fenômeno Puro (4). Na metade do século passado, o estudo da percepção dos fenômenos serviu como base para várias análises de obras artísticas, tendo destaque o texto Le doute de Cézzane, de Merleau-Ponty (5), sobre o pintor Paul Cézzane e os estudos literários desenvolvidos por Gaston Bachelard. Em arquitetura, a fenomenologia passou a fazer parte do debate crítico e teórico a partir da década de 1960, quando o arquiteto Michel Moore decidiu explorar a relação entre fenomenologia e arquitetura por meio do conceito de Imagens Poéticas proposto por Bachelard (6).
Em seu livro A poética do espaço, Bachelard (7) define as Imagens Poéticas como as evocações emocionais provocadas por poemas de alto apelo psicológico e espacial. Um dos primeiros pontos levantados pelo autor no livro é a importância do momento imagético, ou momento da imagem, de forma que:
É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da imagem, ela deve nascer e renascer por ocasião de um verso dominante [...] muito precisamente no próprio êxtase da novidade da imagem (8).
Do mesmo modo, Siza manifesta que, na arquitetura, é igualmente necessário saber “capturar o momento preciso da imagem flutuando com todas as suas nuanças” (9). Em suas obras, essa preocupação com o Tempo Preciso pode ser identificada na materialidade que adquirem os jogos de luz e sombra. Segundo Moneo, “ele se sente atraído em ser testemunha de como uma estrutura é capaz de capturar o tempo fugaz e deseja demonstrar-nos a sua continuidade” (10).
Outro ponto de conexão que pode ser estabelecido entre o pensamento fenomenológico e a arquitetura de Siza é a consciência do lugar. Ao analisar as imagens poéticas, Bachelard propõe o conceito de Espaço Feliz: um lugar afetivo que não pode ser delimitado no plano físico ou geométrico e que gera uma relação definida pelo autor como Topofilia (11). A Topofilia é explicada pelo geógrafo YiFu Tuan como sendo “o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vívido e concreto como experiência pessoal” (12). Assim, o sentido que as pessoas atribuem a determinado espaço por conta desse elo afetivo seria o que confere ao lugar o status de paisagem.
Para Siza, a relação entre a construção e a natureza é decisiva para a arquitetura. Segundo o arquiteto: “Essa relação, fonte permanente de qualquer projeto, representa para mim como que uma obsessão” (13). No caso do Museu de Serralves, a implantação se adapta ao lugar e ressignifica a paisagem, promovendo uma nova experiência perceptiva que se dá por meio dos percursos externos e dos novos lugares gerados pela sua implantação. Essa relação pode ser comparada com o que Nuno Grande define por museu-paisagem: uma tipologia de museu onde o espaço construído desenvolve uma relação intrínseca com o entorno e a paisagem (14). Em contrapartida, por conta das exigências programáticas, o interior do Museu foi resolvido com certa autonomia do espaço circundante.
Nos espaços interiores, predominam as paredes de exposição e as aberturas pontuais. Essa contraparte introspectiva é definida por Montaner como “o museu que se volta para si mesmo” (15). Conforme o autor, desse modo, é possível resolver as complexidades interiores do programa sem ficar indiferente às especificidades do entorno: “uma posição que se funde nos dados preexistentes: para o interior, coleção e critérios museológicos, e, para o exterior, espaço urbano, jardins e paisagem” (16). Além disso, o controle visual é uma característica bastante recorrente nas obras do arquiteto. De acordo com Siza, por mais atrativa que seja a vista, chega um momento em que ela cansa e acaba se tornando uma imposição (17). Uma das explicações dessa postura seria uma passagem de infância, quando, por conta de uma enfermidade, o arquiteto teve que repousar em uma casa de campo:
Não podendo deslocar-me para além da varanda, comecei a odiar a paisagem, que a partir daí tornou-se obsessiva. Senti assim, e cada vez mais, a necessidade de uma ligação entre o interior e o exterior não imediata e total, como o fora nas origens, nas ambições e na prática do movimento moderno (18).
Em entrevista cedida a Omar Paris, Siza revelou que considera o programa cultural um dos mais interessantes para se trabalhar, já que é possível chegar a um resultado estético satisfatório ao mesmo tempo em que o edifício desempenha um papel relevante no contexto da cidade (19). Concebido na sequência do projeto do Centro Galego de Arte Contemporânea (1988), o Museu de Serralves (1991) foi o maior edifício cultural projetado pelo arquiteto até aquele momento. Nele, é possível identificar uma série de detalhes arquitetônicos e soluções espaciais que revelam uma visão bastante peculiar do arquiteto a respeito do programa.
Na visão de Siza, o museu deve atender a dois requisitos básicos: organização espacial e iluminação controlada. O arquiteto não descarta as inúmeras formas de configuração que um museu pode ter. Entretanto, diz que prefere o modelo clássico de salas com formato regular para facilitar a exposição das obras. A predominância dos planos de parede também serve para controlar a entrada de luz natural, pois a fonte de iluminação principal vem das claraboias. O arquiteto manifesta sua preferência pela luz natural, dado que seria a condição mais próxima do atelier do artista: “Quando Picasso pintava um quadro, não utilizava refletores. Pintava de dia ou de noite com a iluminação normal. Então para mim, é ilegítimo isto de criar efeitos” (20).
A espacialidade passiva somada à austeridade no emprego dos materiais como mármore, madeira e os planos pintados de branco, bem como a uniformização dos detalhes técnicos permitem concluir que Siza é um adepto da neutralidade museológica, “isto é, da criação de espaços discretos e bem controlados tecnicamente, que oferecem às obras de arte sem desejar competir com elas, evitando roubar-lhes a atenção ou o protagonismo” (21).
A percepção urbana do Museu de Serralves também é bastante discreta, quase nula. Inserido dentro dos muros do parque, o Museu se adapta à topografia do terreno de modo que a única evidência da sua presença no exterior é a cobertura da marquise de acesso. A entrada da edificação está localizada na rua Dom João de Castro, próxima à avenida Gomes da Costa, que compartilha o mesmo nome do bairro. O plano da marquise tem o propósito de servir de mediador entre a cidade e o museu, conduzindo o visitante até o pátio semiaberto, de onde se pode ter um vislumbre rápido dos jardins de Serralves. Na sequência, o volume oblíquo do auditório comprime a passagem e prepara a entrada no segundo pátio, este totalmente hermético. Nesse local, a marquise se transforma em alpendre, que pode levar diretamente ao Museu ou rodear o pátio e conduzir até o auditório e o restaurante externo. A sequência gradativa dos pátios – do semiaberto para o fechado – tem, conforme o arquiteto, a função de atenuar a luz externa e suavizar a continuidade entre a paisagem natural e a edificação.
Ao adentrar no interior do Museu, o percurso linear que se estabelece desde o acesso é quebrado por um volume de circulação vertical, forçando um movimento em ziguezague. Essa mudança de direção no eixo de acesso pode ser considerada outra constante na obra do arquiteto, que auxilia na transição entre exterior e interior. Nesse momento, uma abertura localizada no lado direito sugere um olhar em diagonal e uma primeira contemplação do jardim posterior. Na parte central do edifício, encontra-se o átrio de distribuição, um espaço de proporções cúbicas com iluminação zenital, que, segundo Siza, guarda uma relação de desenho com o átrio da antiga casa déco (22). O convite para os espaços expositivos é realizado por um pórtico assimétrico, que coincide com o principal eixo longitudinal da planta e conduz a vista até a abertura da sala central. O ato de alinhar os eixos visuais e compositivos pode ser interpretado como uma influência de Palladio, no qual “todas as salas comunicam por meio de aberturas dispostas ao longo de um mesmo eixo que tem depois seu prolongamento no tratamento do jardim ou dos campos, perdendo-se na distância” (23).
O espaço expositivo pode ser dividido em três alas que configuram um “U” ou uma sala central e dois braços laterais. O primeiro espaço em destaque é a sala central, outro ambiente de proporções cúbicas que conta com um nível inferior acessado por uma rampa transversal. Na parede frontal da janela, os cantos são arrematados por dois chanfros e fazem outra possível referência à casa déco. A ala direita conta com duas salas amplas ladeadas por uma circulação que conduz até uma área de serviços. No final da circulação, encontra-se um eixo visual perpendicular, que é formado por uma série de aberturas transpassando todo o edifício até avistar os jardins do parque. Do lado oposto, na sala de exposição, uma janela se projeta em diagonal e cria um espaço mediador entre a área expositiva e a paisagem, lembrando a reflexão de Bachelard sobre o papel dos espaços intermediários: “Nesses ângulos, nesses cantos, parece que o sonhador conhece o repouso intermediário entre o ser e o não ser” (24).
A ala esquerda possuí duas grandes salas, um espaço expositivo mais reservado localizado logo na entrada e uma área de exposição no subsolo. Assim como na ala direita, as duas salas são divididas por um volume de serviço, com a diferença de se tratar de espaços mais amplos e com diferença de níveis. Na sala posterior, uma passagem localizada em um dos cantos leva até a escada que dá acesso à área expositiva inferior, de onde é possível novamente observar o jardim no nível do solo através de grandes aberturas. Nesse mesmo nível, sem ligação com a área expositiva, encontram-se ainda a biblioteca, o café, as áreas de acervo e serviço e o estacionamento. O regresso até o átrio revela outra perspectiva do eixo central e sugere a saída do edifício passando pela livraria.
Quando se retorna do trajeto do Museu em direção à rua, é possível visualizar, no lado oposto da marquise, um caminho alternativo: uma pavimentação de pedriscos que conduz aos jardins de Serralves, o qual Siza idealizou inicialmente como acesso principal do Museu. Logo no início do jardim, é possível ter a primeira impressão do exterior do Museu como uma massa horizontal branca que acompanha o desnível do terreno. Durante o percurso, também é possível notar a presença de esculturas e instalações, que são parte integrante do acervo do Museu, criando uma espécie de galeria externa. O caminho termina em uma cota inferior do terreno, de onde se pode ter uma compreensão melhor do tamanho real da edificação e de como o desnível foi aproveitado para acomodar todo o programa.
Visto do exterior, o edifício possui uma volumetria irregular, que, em alguns momentos, aparenta ser mais o resultado das operações espaciais internas do que de uma composição formal, tal como ocorre “no reino das imagens [onde] o jogo entre o exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado” (25). Nos jardins e no Museu de Serralves, nada se revela de imediato. A leitura dos elementos – espaço, museu e paisagem – é sempre fragmentada de modo que as “imagens poéticas” parecem ser transmitidas por uma espécie de conta-gotas em doses precisamente controladas.
notas
1
SIZA, Álvaro. Fundación Serralves. Revista El Croquis, n. 68/69, p. 282-315. Madrid, Croquis Editorial, 2000.
2
TEOBALDO, Izabela Naves Coelho. A cidade espetáculo. Sociologia: Revista do Departamento de Sociologia da FLUP, v. 20, p. 137-148, 2010.
3
MONEO, Rafael. Inquietação teórica e estratégia projetual na obra de oito arquitetos contemporâneos. São Paulo, Cosac Naify, 2008.
4
HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Lisboa, Edições 70, 1986.
5
MERLEAU-PONTY, Maurice. Le Doute de Cézanne. In MERLEAU-PONTY, Maurice. Sens et Non-Seus. Paris, Nagel, 1966, p. 15-36.
6
OTERO-PAILOS, Jorge. A fenomenologia e a emergência do arquiteto-historiador. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 125.01, Vitruvius, out. 2010 <http://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.125/3628>.
7
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 7ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 242.
8
Idem, ibidem, p. 1.
9
SIZA, Álvaro. Imaginar a evidência. São Paulo, Estação Liberdade, 2012, p.160.
10
MONEO, Rafael. Op. cit., p. 189.
11
BACHELARD, Gaston. Op. cit.
12
TUAN, Yifu. Apud LIMA, Renata Ribeiro. “Todo estado de alma é uma paisagem”: uma leitura de Fernando Pessoa à luz da teoria da percepção do espaço. Littera online, n. 04, 2011, p. 195 <http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/littera/article/view/767/2910>.
13
SIZA, Álvaro. Op. cit., p. 21.
14
GRANDE, Nuno Alberto Leite Rodrigues. Apud COSTA, Robson Xavier da. Percepção ambiental em museu paisagens de arte contemporânea: a legibilidade dos museus Inhotim/Brasil e Serralves/Portugal avaliada pelo público visitante. Tese de doutorado. Natal, PPGAU UFRN, 2004.
15
MONTANER, Josep Maria. Museus para o século XXI. Barcelona, Gustavo Gili, 2003.
16
Idem, ibidem, p. 76.
17
SIZA, Álvaro. Apud PARIS, Omar. Entrevista à Álvaro Siza. 30-60 cuaderno latinoamericano de arquitectura online. Porto, Apuntes web <https://bit.ly/2AdzLzv>.
18
SIZA, Álvaro. Op. cit., p. 47.
19
SIZA, Álvaro. Apud PARIS, Omar. Op. cit.
20
Idem, ibidem.
21
WISNIK, Guilherme. Hipóteses acerca da relação entre a obra de Álvaro Siza e o Brasil. In FIGUEIRA, Jorge (Org.). Álvaro Siza: Modern Redeux. São Paulo, Cosac Naify, 2008, p. 208.
22
SIZA, Álvaro. Op. cit.
23
SIZA, Álvaro. Op. cit., p. 47-48.
24
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p.153.
25
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 19.
sobre os autores
Gabriel Cesar e Santos: formado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado no Master Universitário – Territorio e Architettura Sostenibili – Politecnico di Milano, Itália (2010-2011), mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (2015-2017) e sócio proprietário do escritório COA Associados.
Matheus Franco da Rosa Lopes é mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (2015-2017).
Ney Zillmer Neto é arquiteto e urbanista, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (2015-2017) e sócio titular do escritório Meza arquitetura.