Sobre o croqui
Este ensaio para fundamentar os croquis que apresento – propõe uma revisitação e resgate do croqui enquanto instrumento de aproximação e conhecimento cultural, portanto, de aprendizagem. Não é revisão bibliográfica, mas um ensaio de opinião, temperado com diálogos com alguns autores, para ampliar o desfrute dos desenhos.
Numa época em que os instrumentos tecnológicos dominam a cena, torna-se necessário revalorizar os processos tradicionais de aquisição de conhecimento, especialmente para a arquitetura e urbanismo. Nos meios formativos da arquitetura existe uma divisão de opiniões, que vai desde a nostalgia pelos antigos procedimentos perdidos, até a idolatria acrítica dos novos instrumentos tecnológicos. Sem esgotar essa discussão, apenas a contextualizo, registrando um ponto de vista fundamentado numa prática realizada, pressupondo que “a inclusão é sempre mais rica que a exclusão”: aceito o papel qualificador dos meios tecnológicos, ao mesmo tempo em que tento compreender seus limites e processos de exclusão que empobrecem os resultados. Em minhas ações de ensino, tenho resgatado instrumentos conceituais e metodológicos que valorizem os atributos, habilidades e sensações humanas. O desenho e o croqui são para os arquitetos elementos integrantes da “língua” que utilizam, constituindo um fator de sua identidade profissional, marca de sua especificidade cultural, além de ajudar a constituir linguagens para a arquitetura. O croqui, como elemento de nossa língua, faz parte de nossa herança ancestral definindo maneiras de ver, sentir, pensar e fazer:
“A língua formada pelas unidades mínimas de enunciado e expressões usadas por determinados conjuntos humanos, definidora de linguagens específicas, forma-se por continuidade e sucessivas transformações temporais e histórico-culturais. Ela é fator seminal de identidade das comunidades, constituindo matriz cultural e de agregação. Carrega sua ancestralidade e suas sementes ativas de transformação pela constante germinação da vida” (1).
Essa ancestralidade do croqui é como semente ativa que constantemente se transforma em novas germinações. Assim, desenhar por croqui não constitui somente procedimento de criação. Para os arquitetos, desenhar, ou ‘croquizar’, pode ser também um meio de aproximação e mediação com o mundo e cultura, mas não só. O croqui é um instrumento de conhecimento e aprendizagem que desenvolve habilidades e percepções, alterando sentidos e comportamentos: é uma forma de pensamento, conquanto seja signo. Em nossa era de proliferação de imagens e ícones, o croqui, é maneira de pensar que valoriza nosso cérebro, mãos e sentimentos, nossa humanidade, com sua dimensão holística, como enuncia Paolo Belardi:
“O fato é que não devemos nunca reduzir o desenho a mero veículo da proliferação icônica, porque ele é pensamento em si mesmo, e não devemos nunca nos sentirmos à mercê do consumismo tecnológico, porque, no ato do conhecimento, os únicos instrumentos realmente irrenunciáveis são a nossa cabeça, as nossas mãos e o nosso coração” (2).
Fazer croqui constitui também um treinamento do olhar, qualificando os modos de ver: quem desenha treina e experimenta raciocínios e sensações específicos e insubstituíveis. Nessa época em que a imagem se tornou preponderante na cultura humana, e que a novidade e a velocidade de substituição se acentuaram de forma exponencial, revisitar as capacidades e habilidades de concentração, aprofundamento, sistematização, paciência, precisão do olhar, visão não fragmentada, quietude, crítica, síntese, dentre outras, torna-se forma de resistência cultural pelos nossos procedimentos. É fato que hoje podem ser notados movimentos de revisitação e revalorização desse instrumento expressivo, além da área da arquitetura, como testemunha a atividade dos urban sketchers.
Em minha prática de ensino de projeto, procuro sempre dar ao croqui papel de destaque, reintegrando-o ao momento da concepção, utilizando-o como protagonista da criação. Como estratégia para tanto, enfatizo seu uso enquanto notação, procuro propiciar maior familiaridade e domínio incentivando sua aplicação como instrumento de expressão e de reconhecimento e análise, enfim como facilitador (3).
Na criação, no ato de registrar a antecipação de algo que ainda não existe, mas que está sendo proposto como possibilidade, o croqui é insubstituível e não somente na arquitetura. Ele é um instrumento aplicável em qualquer processo de criação humana, mesmo nas expressões verbais escritas. Para criar é indispensável o treinamento e desenvolvimento de habilidades essenciais para a fixação de imagens. Isso se justifica por uma característica predominante do cérebro humano de proceder muito mais por analogias do que por sequências e linearidades, recolhendo todas as informações disponíveis, mesmo as ocasionais, visualizando-as sinteticamente. Nesse ato, a extensão do pensar para a mão, intermediária do registro por croqui finaliza a ação, imprimindo-lhe materialidade, substância física concreta. No processo criativo o croqui é um formidável instrumento notacional que antecipa o futuro. Sua utilização é potencializada pela velocidade de execução, além de ser realizável em qualquer situação e lugar. Ele presta-se bem para o registro de viagens, bem como para o treinamento e meio de aquisição de habilidades, conforme Belardi:
“[...] o desenho por croqui é um sistema notacional rápido, disponível, denso, auto generativo, e sobretudo extraordinariamente comunicativo. [...] a prática do desenho por croqui é irrenunciável para a arquitetura, na medida em que envolve dois âmbitos de ação ao mesmo tempo distintos e complementares: um na trajetória do conhecimento, que diz respeito à aproximação de alguma coisa que já existe, e o outro na trajetória da idealização, que diz respeito ao quanto se tem em mente por realizar. Na primeira categoria, à qual pertencem os apontamento e relevos efetuados sobre a arquitetura do passado (mas frequentemente também sobre obras dos contemporâneos), resultam os esboços de viagem, capazes de capturar com pouco tratamento as qualidades ambientais mais íntimas e subjetivas” (4).
Muitos outros autores, como Gregotti, também consideram o croqui essencial e insubstituível para os arquitetos:
“E em arquitetura, para que uma ideia não permaneça no estádio de mera vontade, se necessita do desenho; sobretudo se realizado impulsivamente como transcrição em tempo real da energia acumulada inconscientemente. O desenho por croqui, exatamente pela sua inerente qualidade sintética, é assim um sistema notacional creditado à rapidez” (5).
“[...] mas o exercício do desenho, do instrumento de representação da coisa, é a única relação corpórea remanescente que o arquiteto efetua com a fisicidade da matéria que deve formar: é sua última ‘manualidade’ e ele deve defende-la obstinadamente” (6).
O croqui é também instrumento de formação de memória cultural e patrimonial, pelo registro de algo que não pretendemos esquecer, que valorizamos e com o que queremos nos relacionar afetivamente. Recordar, então, daquilo que julgamos importante, significa escolher e optar. A escolha, além do registro gráfico, é atitude necessária na realização do croqui, tal qual no ato de memorizar. O registro é por si só um meio de salvaguarda, mas talvez sejam as habilidades necessárias ao croqui que tornem frequente e comum sua aplicação com qualidade pelos profissionais dedicados à área da preservação patrimonial.
O ato de ‘croquizar’, está muito além da reprodução fidedigna da coisa representada. As imagens são construídas num processo dialético que procura equilibrar a ênfase e a exclusão. Análoga à formação pela mente de memória é a decisão, ainda que inconsciente, sobre o que deve ser guardado ou descartado. Representar uma cena urbana num croqui envolve escolha e seleção que se inicia com o que representar, em como fazê-lo, com que suporte e meios disponíveis e, assim, daquilo que se quer evidenciar ou esconder, como ensina Massironi:
“O processo representativo gráfico fica caracterizado pela dialética entre ‘enfatismo’ e exclusão. Efetivamente, em qualquer imagem, são evidenciados alguns traços, elementos e características, de maneira a resultarem bem legíveis, enquanto outros, pelo contrário, são completamente descurados, voluntariamente ignorados, omitidos, como se não existissem” (7).
O croqui de viagem nunca será um substituto ou uma cópia servil da realidade. As operações de destaque e exclusão daquilo que se representa passam a caracterizar uma nova realidade criada por quem observa e decide. Na imagem as ausências não são, normalmente, notadas pelo observador: ela é percebida como uma realidade em si mesma, coerente e completa. A ela são acrescidos significados adicionais que, por assim dizer, preenchem os vazios e reequilibram-na. Por mais concreta que venha a ser essa imagem, ela carregará um alto grau de subjetividade contraposta à objetividade racional e centrada na ação do sujeito que desenha. Embora não constitua o espaço real, representado de maneira fac-similar, o croqui funciona como seu substituto, evocando-o para o leitor. Ele é ainda uma inegável habilidade artesanal, cabendo a advertência de Richard Sennett sobre seu o papel e sobre o valor do incompleto:
“O táctil, o relacional e o incompleto são experiências físicas que ocorrem no ato de desenhar. O desenho representa aqui um leque mais amplo de experiências, como, por exemplo, a maneira de escrever característica da edição e da revisão, ou a maneira de tocar música que explora repetidas vezes as qualidades intrigantes de determinado acorde. O difícil e o incompleto deveriam ser fatores positivos em nosso entendimento; deveriam estimular-nos de uma forma de que não são capazes a simulação e a manipulação fácil de objetos completos” (8).
Passando agora à viagem e estudo, constituíram-se vivências espaciais ímpares e intencionais, oferecidas como cenários e ambientes para os croquis, percebidas pelo conjunto dos nossos corpos, por observação e vivência, pois a consciência se estrutura em torno de um centro corpóreo sensorial. Estamos conectados com o mundo por intermédio de nossos sentidos, que não são receptores passivos de estímulos. Nossos conhecimentos existenciais resultam da ação do conjunto de nosso corpo, conforme Pallasmaa:
“O corpo humano é uma entidade sábia. Todo o nosso ser nesse mundo é um modo sensorial e corporificado de ser, e é exatamente esse senso de ser que constitui a base do conhecimento existencial” (9).
Da experiência concreta no processo a ação das mãos como mediadoras da ação do olhar e do pensar, enfim do cérebro, imprimem num suporte uma imagem desejada. Cabe destacar que falar não é ensinar, nem ouvir é aprender, especialmente quando se trata de uma habilidade operativa como o croqui: para aprender a desenhar é preciso fazê-lo. O papel fundamental das mãos no fazer constitui um vínculo com os saberes artesanais ancestrais, ora em extinção. Mas não são só as mãos que agem, pois, o traço do desenho sempre resulta de um gesto corporal, no qual todo o corpo comparece.
Portanto, o aprendizado do croqui como uma habilidade prática, não se baseia no ensino verbal. Esse aprendizado está geralmente estruturado, como nos ensina Pallasmaa, “na transferência de uma habilidade dos músculos do professor diretamente aos músculos do aprendiz, por meio do ato de percepção e mimese corporal” (10). A neurociência atribui essa capacidade de mimese aos ‘neurônios-espelho’ do cérebro humano. A teoria da psicanálise explica o fenômeno como o ato de corporificar, de introjetar, razão pela qual conhecimento e habilidade práticas permanecem como núcleo do aprendizado artístico. O arquiteto, quando projeta, transforma em imagens suas decisões e anseios espaciais, emocionais e estéticos, que são corporificados e vivenciados. Não se trata de um ato meramente racional de compreensão, mas de uma tarefa realizada com toda a personalidade e todo o corpo do projetista a partir de conhecimentos existenciais vividos e das tradições do ofício, segundo Pallasmaa:
“Ideias ou respostas de arquitetura profundas também não são invenções individuais ‘ex nihilo’; elas estão inseridas na realidade vivenciada da própria tarefa e nas antiquíssimas tradições do ofício [...] O papel desse entendimento essencial, inconsciente, situacional e tácito do corpo na produção da arquitetura é extremamente subestimado na cultura atual da falsa racionalidade e da autoconsciência arrogante” (11).
Quem faz croqui desenvolve, na vivência compartilhada entre mente e corpo, habilidades manuais. Nesse sentido a arquitetura é também produto das mãos, ou no dizer de Pallasmaa, “das mãos sábias”, que produzem a dimensão física e concreta do pensamento. Na materialização do pensamento abstrato realizada pelas mãos, são utilizadas extensões especiais que potencializam ações: ferramentas como o lápis, ou a lapiseira, a caneta e o pincel. Muitos, como eu, puderam vivenciar a sucessão temporal dessas ferramentas de representação, do lápis para a lapiseira, do tira-linhas para a caneta rapidograph, até as atuais canetas e pinceis sintéticos, que convivem com os meios informatizados de representação. Sabemos o quanto essas substituições mudaram os meios de expressão. Porém, permaneceu uma forte dimensão artesanal pela perfeita correspondência e afinidade entre a personalidade do artesão, suas mãos e ambiente de trabalho. É para o trabalho que as mãos são treinadas em habilidades especializadas. O croqui constitui um “treinamento das mãos”, que também são imaginativas, segundo Pallasmaa:
“Além da ferramenta, a habilidade prática de um ofício artesanal envolve a imaginação com as mãos: todo o exercício artesanal magistral projeta determinada intencionalidade e uma versão imaginada da tarefa completada ou do objeto em questão” (12).
Pressupõe-se que o croqui corresponda ao panorama cultural da contemporaneidade. Como referência, o escritor Ítalo Calvino em Lições americanas, obra dos anos 1980, identifica os principais valores culturais a serem conservados para este milênio: leveza, rapidez, exatidão, visualidade e multiplicidade, que marcariam a cultura do novo século. Dois desses valores, a rapidez e a visualidade, são inerentes ao croqui e justificam sua atualidade e oportunidade.
Sobre a rapidez Calvino afirma que está interessando não na velocidade física, mas na mental (13). Referindo-se a Leopardi e seu pensamento sobre o estilo, afirma:
“A rapidez e a concisão do estilo agradam porque apresenta à alma uma multidão de ideias simultâneas, conseguidas tão rapidamente, que parecem simultâneas [...]” (14).
“O século da motorização impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos ‘records’ assinalam o progresso da máquina e dos homens. Mas a velocidade mental não pode ser medida e não permite confrontos competitivos, nem pode dispor os próprios resultados em uma perspectiva histórica. A velocidade mental vale por si, pelo prazer que provoca em quem é sensível a este prazer, não pela utilidade prática que se possa obter. Um raciocínio veloz não é necessariamente melhor que um raciocínio ponderado; longe disso; mas comunica alguma coisa de especial que está na sua rapidez” (15).
O fator de simultaneidade – obtido pela forma de relação com um espaço concreto na realização do croqui, apreendido e representado de forma veloz – constitui forte sintonia com o atual panorama da cultura.
Quanto à visualidade, Calvino afirma que na origem do discurso verbal escrito sempre há uma imagem que, em sua experiência de escritor, ele desenvolvia tão logo ela se tornava suficientemente nítida, imprimindo-lhe sentido e ordem (16). Para ele, a imagem pode ser abordada por duas vias: ou como instrumento de conhecimento ou como identificação, definindo a imaginação como “repertório do potencial, do hipotético, daquilo que não é nem está, que talvez será, mas que poderia ter sido” (17). Para o desenvolvimento da hipótese, velozmente transportada com as mãos para a realidade – e acompanhando a mente simultaneamente -, o croqui torna-se insubstituível. A adoção do croqui como estratégia formativa foi, ainda, minha maneira de responder ao desafio proposto por Calvino aqui enunciado de salvaguardar os instrumentos de visualidade:
“Penso em uma possível pedagogia da imaginação que habitue a controlar a própria visão interior, sem sufocá-la e sem por outra parte deixá-la cair em uma confusa e fugaz fantasia, mas permitindo que a imagem se cristalize em uma forma bem definida, memorável, autossuficiente, ‘icástica’ (18). Naturalmente trata-se de uma pedagogia que só pode ser exercitada sobre ela mesma, com métodos inventados a cada vez e resultados imprevisíveis” (19).
Adotar o croqui como mediador de uma experiência espacial teve esse propósito pedagógico: a intenção de propiciar uma experiência que resgatasse, aprofundasse e intensificasse sua prática. Então, elaborei a experiência internacional de ensino e aprendizagem em arquitetura e urbanismo, realizado em Portugal em julho de 2014. Esse programa nasceu da parceria acadêmica entre as universidades Unicamp e Lusófona. Seu recorte foi amplo, envolvendo vivências culturais e espaciais em diversas cidades, sítios e monumentos portugueses (20).
No programa, o croqui foi aplicado como instrumento de aproximação, compreensão e aprendizagem, enquanto registro da vivência e percepção. As notações e registros em croquis constituíram, então, um olhar estrangeiro para a identidade portuguesa, mas que interessa aos dois países irmãos. Esses registros me permitiram formar um caderno de viagem, cujos croquis ora apresento.
O houve um conteúdo específico ministrado de forma tradicional por aulas e exercícios aplicativos com o título de “Desenho Urbano Sustentável em Portugal: Teoria e Prática”. Sediado em Lisboa, na verdade, o programa foi muito mais amplo, envolvendo vivências espaciais ao longo do país, cumprindo um roteiro organizado de forma temática, geográfica e conceitual, propiciando um contato com Portugal que valorizasse a dimensão plural e diversa de sua constituição. Esse viés de aproximação com a cultura portuguesa, oferecido como complementação de formação aos estudantes brasileiros, teve como escopo tanto as similaridades culturais – que no caso brasileiro foi, de todo, seminal para sua constituição –, quanto as diferenças entre culturas de uma nação jovem com a mais antiga das nações europeias. Os interesses estiveram centrados tanto no legado histórico quanto nas realizações contemporâneas.
Produziram-se, então, por um pequeno coletivo, “Cadernos de croqui de viagem”. Além de expor os croquis de minha experiência pessoal nesse processo, procuro também explicitar alguns fundamentos que, acredito, tenham estruturado o processo, podendo ser identificados nas peças gráficas.
Sobre o contexto da experiência
A experiência didática internacional ganha cada vez mais espaço e relevância no processo formativo dos profissionais de nível superior, frente ao atual quadro de relações globalizadas. Na área da arquitetura e do urbanismo, o contato direto e vivencial com os espaços organizados, edifícios e cidades, sempre foram imprescindíveis na formação profissional. O mestre Lúcio Costa já ensinava que “arquitetura é coisa para ser vivida”. Nenhuma forma de abordagem é tão completa a ponto de substituir a experiência direta e vivencial do ser humano com o espaço.
Então, no tempo disponível das férias de meio de ano letivo brasileiro, propus esta experiência internacional para estudantes de graduação, gerindo um protocolo de cooperação técnico-científica, entre Unicamp do Brasil e Lusófona de Portugal, compartilhado entre professores e estudantes brasileiros e portugueses e estendido a participantes de diversas outras instituições. Sob minha coordenação, contou com a participação dos professores portugueses Mário Moutinho, Filipa Antunes e Diogo Mateus, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Lusófona, que sediou o curso.
A proximidade cultural dos dois países torna mais densa essa aproximação, haja vista nossas raízes históricas comuns. De partida compartilhamos o mesmo idioma, o português, língua de raiz latina que nós brasileiros herdamos pela colonização. Essa matriz linguística foi fortemente responsável pela unidade nacional brasileira, somando-se ao caráter do colonizador e à nossa peculiar história, garantindo unidades de território e nação. Este fato é notável quando comparado com as demais ocorrências latino-americanas dos países de matriz linguística hispânica, de flagrante fragmentação.
Certa vez, em visita a Portugal, perguntei ao saudoso professor e urbanista português Costa Lobo sobre a origem daquilo que eu identificava como “predisposição do povo português à inclusão” em sua relação com o mundo, que convenhamos não foi pouca coisa se considerarmos que Portugal foi uma das nações que iniciaram a chamada globalização, expandindo os horizontes e as fronteiras do velho mundo com as navegações e os descobrimentos. Os portugueses tiveram que se relacionar histórica e socialmente com povos e etnias bastante diversos daqueles europeus. O professor então me respondeu mais ou menos o seguinte: – “Nosso território português era pequeno e cobiçado, além de estarmos espremidos entre a terra e o mar. Necessitávamos de defesa e expansão ao mesmo tempo, mas éramos poucos e fracos, se comparados com os vizinhos espanhóis de maiores posses, maior número e maior território. Não nos foi possível a imposição, como fizeram os espanhóis. Tivemos que nos associar e compartilhar com os outros!” Acredito que essa conduta portuguesa de inclusão está por trás da natureza acolhedora, plural e diversa que hoje caracteriza o povo brasileiro. Para cá afluíram etnias e povos oriundos de toda a terra, formando essa grande nação, e aqui convivendo pacificamente. Se a insegurança social é hoje uma realidade, sua origem é outra.
Saltam aos olhos de quem visita Portugal as semelhanças de seus espaços urbanos e de sua arquitetura com as das cidades brasileiras vinculadas ao passado colonial, especialmente as litorâneas. É impossível, assim, não perceber um pouco de Lisboa como matriz de Salvador, onde o genius loci daquela aqui se manifestou peculiarmente e subsistiu.
Devemos a maior parte das características do traçado da rede colonial urbana brasileiras à ação dos engenheiros militares portugueses. Temos matrizes portuguesas de técnica construtiva na ocupação e expansão do território, como na versão erudita da taipa de pilão, uma transposição portuguesa da cultura árabe. Da mesma forma a matriz dos assentamentos jesuíticos, a aplicação das normas da Companhia das Índias Orientais, juntamente com a riqueza e beleza da azulejaria que herdamos. O barroco litorâneo tem no Brasil a marca da tipologia portuguesa, contraposto pelo barroco mineiro, de expressão libertária. Afinal, convém encerrar essa aproximação com a lembrança de que fomos sede do reino de Portugal e Algarve, fato inusitado na América Latina, como também, graças à origem portuguesa, tivemos um imperador.
Ao mesmo tempo que se constata tanta coisa em comum, nos espanta as diferenças culturais, a ponto de às vezes não nos entendermos usando o mesmo idioma. Além do que o acento da pronúncia ou a variação de significado de algumas palavras, trata-se de outras estruturas de pensamento, com valores diversos, o que também significa diversas formas de sentir. Assim, paradoxalmente, somos próximos enquanto nações irmãs, mas também diferentes em cultura e sentimentos, a ponto de não nos confundirmos e de guardarmos nossas singularidades.
Ilustrando o que assumimos como fundamentos, não é demais realizar alguma incursão pontual pela história de Portugal por exemplos cujos traços se rebatem na identidade brasileira (21). Pinçarei, então, alguns aspectos que permitam perceber o sabor e o tempero comuns às duas culturas. Historicamente as duas nações são marcadas pela constituição e tendência a pluralidade e diversidade em amplo espectro. A homogeneidade linguística e o fundamento religioso cristão, especialmente a sua versão católica, denotam lá e cá uma comunhão, lastros de homogeneidade que contrastam com outros singulares, confluindo em uma realidade complexa. Algumas dessas heranças culturais são bastante profundas, como aquelas derivadas da organização administrativa governamental e da estrutura de nossas leis, que remontam ao passado medieval português. O Brasil tem uma grande profusão de leis extremamente detalhadas, muitas vezes com a intenção de criar o fato social ao invés de regulá-lo. Comparado com o quadro legal da cultura anglo-saxônica, nossos dispositivos legais são extensivos, mas com uma aplicação frouxa.
Remonta ao século 11 a origem de Portugal, embora a ocupação do território seja muito anterior. Ela partiu da formação de uma comunidade política de príncipes e aristocratas. Já na sua etapa de fundação, a unidade política só foi possível pela união de membros de duas distintas comunidades que, durante um longo período histórico, formaram uma identidade da qual faz parte o aprimoramento de uma língua neolatina, nos seus primórdios não separável do galaico. Foi o Rei D. Dinis que adotou o português como língua de chancelaria régia, incorporando-o na fundação da Universidade portuguesa, autorizada pelo Papa entre 1280-90.
A língua foi integrando à sua origem latina vocábulos árabes e enraizando identidade e tradição cultural própria: em sua construção, como nas demais expressões culturais portuguesas, as influências externas sempre estiveram presentes. Portugal desde sempre recebeu e adaptou matrizes culturais que não só conformaram suas características, mas também consolidaram sua independência. A identidade portuguesa nunca esteve fechada sobre si mesma, ao contrário, esteve continuamente aberta ao exterior. Sempre pela ação inclusiva.
A configuração do território português é pouco marcada por acidentes naturais, continuando no território ibérico. Ele foi muito mais fruto da ação histórica medieval do que de fatos geográficos. Suas regiões apresentam diferenças incisivas: foram desde sempre diversos o uso da língua, a técnica agrícola, a estrutura familiar, a prática religiosa e a opção política. Embora premido entre a terra e os mares Mediterrâneo e Atlântico, esse território teve três matrizes culturais: os romanos, os cristãos e os islâmicos, além da forte presença judaica. Na região meridional, que sempre funcionou como porta de entrada do território português, se encontram as maiores marcas da presença cultural não ibérica.
A retomada de territórios e riquezas foi a maior fonte de renda do jovem reino desde as guerras de reconquista da ocupação árabe. Cessadas as reconquistas, cessam também a possibilidade de expansão do reino e sua fonte de renda. Premido entre o extremo das terras europeias e seus fortes vizinhos ibéricos, para Portugal a expansão ultramarina teve grande importância orçamentária. O país nunca chegou a bastar-se em termos de produção agrícola e de matérias primas e sua industrialização não teve nos séculos 19 e 20 o mesmo impacto que em outros países europeus. A imigração foi a melhor alternativa de ascensão para a população, além da saída de gente para as grandes descobertas e conquistas. A política de navegação atlântica e de conquista do norte da África marcou fortemente o reino português, e a familiaridade dos portugueses com o mar. A grande extensão em costas do país fez desde cedo com que a população se dedicasse a atividades marinhas, como a navegação, a pesca e a extração de sal, colocando o mar de seu cotidiano e em suas representações mentais. A imagem medieval europeia do mar, misteriosa e tenebrosa, assim se decompôs no ideário português.
Nas realizações recentes de Portugal, pelo esforço de integração na comunidade econômica europeia, encontram-se produções de ponta para a arquitetura e urbanismo, com a presença de mestres nacionais e internacionais de destaque, incluindo alguns brasileiros. Quando viajam, os portugueses costumam afirmar “vamos à Europa”, como se nela não estivessem! É que, à parte todo o processo histórico-social de isolamentos e aproximações, mesmo eles sendo profundamente europeus, são fortemente portugueses.
Se há muito para descobrir, explorar e apreender com a experiência portuguesa por um estudante brasileiro de arquitetura e urbanismo, e considerando que a arquitetura e o urbanismo são decodificações culturais do mundo em que vivemos, o croqui pode ser um instrumento facilitador nessa aproximação. Esses apontamentos, sem intenção de sistematicidade, apenas destacam alguns fatores que justificam a busca da unidade na diversidade, conquanto as aproximações e distanciamentos constituem nossa identidade e formam nossos laços de afetividade.
Sobre as visitas técnicas
Paralelamente ao curso formal, ocorreram visitas a cidades, monumentos e sítios históricos, objetivando fomentar uma visão de conjunto da cultura portuguesa. As experiências proporcionadas em cada um desses lugares tiveram profundidade e intensidade variadas com sua complexidade e extensão. Assim, um primeiro bloco de visitas envolveu três monumentos nacionais portugueses e mais duas cidades históricas para a compreensão da formação e do caráter da nação. Localizados na região da Estremadura e Ribatejo, com os monumentos de Alcobaça, Batalha e Tomar, convento/fortaleza e cidade, além da cidade medieval de Óbidos. O segundo bloco envolveu o centro do país e as chamadas Beiras, tendo por objeto as cidades de Coimbra, Viseu e Aveiro e o sítio arqueológico de Conimbriga. O terceiro bloco foi constituído pelas cidades mais ao norte, nas regiões do Douro e do Minho, com centro atrativo em O Porto, Guimarães, Braga e Bom Jesus do Monte. Por Lisboa ter sediado o curso, as visitas técnicas nela realizadas envolveram Belém, Sintra e Cascais, e foram também estendidas ao sul em Évora e Monsaraz.
Conclusão
Essa experiência foi rica e intensa como vivência e estudo internacional, sem necessidade de exigência de proficiência em língua estrangeira como facilitador, com atividades que superaram as 200 horas, caracterizando um importante instrumento complementar à formação de estudantes brasileiros de arquitetura e urbanismo, e uma oportunidade ímpar para revisitar e enfatizar o croqui como instrumento de mediação com o mundo e o saber.
notas
1
GALLO, Haroldo. Tempo, suporte tangível e preservação na língua que habitamos. In A língua que habitamos. Diversidades urbanas e arquitetônicas na Lusofonia: traços identitários. Vol. 7. Lisboa, AEAULP/ Amazon, 2017, p. 349-360.
2
BELARDI, Paolo. Nulla dies sine linea: una lezione sul disegno cognoscitivo. Melfi, Casa Editrice Librìa, 2012, p. 14 Tradução do autor.
3
GALLO, Haroldo. Forma & espaço: um resgate no universo da arte como introdução ao projeto de arquitetura. Revista InSitu – Revista científica do Programa de Mestrado Profissional em Projeto, Produção e Gestão do Espaço Urbano, n. 2, v. 3, 2017, s/p.
4
BELARDI, Paolo. Brouillons d’Architects: uma lesione sul disegno inventivo. Melfi, Casa Editrice Librìa, 2004, p. 52-53 Tradução do autor.
5
Idem, ibidem, p. 46. Tradução do autor.
6
GREGOTTI, Vittorio. Território da arquitetura. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1975, p. 25.
7
MASSIRONI, Manfredo. Ver pelo desenho: aspectos técnicos, cognitivos, comunicativos. São Paulo, Martins Fontes, 1982, p. 70-71.
8
SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro, Record, 2013, p. 55.
9
PALLASMAA, Juhani. As mãos inteligentes. A sabedoria existencial e corporificada na Arquitetura. Porto Alegre, Bookman, 2013, p. 14.
10
Idem, ibidem, p. 16.
11
Idem, ibidem, p. 15-16.
12
Idem, ibidem, p. 55.
13
CALVINO, Italo. Lezioni americane: sei proposte per il prossimo millennio. Milano, Mondadori, 1993, p. 44. Tradução do autor.
14
Idem, ibidem, p. 44. Tradução do autor.
15
Idem, ibidem, p. 47. Tradução do autor.
16
Idem, ibidem, p. 90. Tradução do autor.
17
Idem, ibidem, p. 92. Tradução do autor.
18
Icástica no sentido da arte que representa o real com imagens.
19
CALVINO, Italo. Op. cit., p. 94. Tradução do autor.
20
Um relato mais abrangente dessa experiência pode ser encontrado no livro que dela resultou, a seguir referido: GALLO, Haroldo; MOUTINHO, Mário; ANTUNES, Filipa. Uma experiência internacional em arquitetura e urbanismo: Desenho Urbano em Portugal. Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2017.
21
As referências históricas mais específicas foram obtidas no livro a seguir referenciado: RAMOS, Rui (Org.). História de Portugal. Lisboa, A esfera dos livros, 2009.
sobre o autor Haroldo Gallo é arquiteto, doutor e livre docente. Professor e pesquisador, com artigos e livros publicados e duas premiações internacionais em exposições Bienais. Atua nas áreas de Projeto e Restauro e integrou órgãos de Preservação e Patrimônio (Condephaat e Superintendência do Iphan SP). Atualmente é Professor Associado na Unicamp/ IA, em Arquitetura e Urbanismo e em Artes Visuais.