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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo apresenta os estudos para a conservação de Bento Rodrigues, que com o rompimento de uma barragem de resíduos minerários em 2015, transformou-se no símbolo do maior desastre socioambiental brasileiro.

english
This article presents the studies carried out for the conservation of Bento Rodrigues, which, with its destruction by the rupture of a waste dam in 2015, became the symbol of the greatest Brazilian socio-environmental disaster.

español
Este artículo presenta los estudios realizados para la conservación de Bento Rodrigues que, con su destrucción por la ruptura de una presa de desechos de minería en 2015, se convirtió en el símbolo del mayor desastre socioambiental de Brasil.


how to quote

CASTRIOTA, Leonardo. Lidando com um patrimônio sensível. O caso de Bento Rodrigues, Mariana MG. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 230.00, Vitruvius, jul. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.23/7423>.

Em 5 de novembro de 2015 teve início o pior desastre socioambiental da história brasileira, com o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana MG, que provocou a devastação da bacia do Rio Doce, um dos rios mais importantes do país, destruindo parte importante do seu ecossistema e afetando profundamente dezenas de cidades, aldeias e assentamentos humanos ao longo do rio. Com a ruptura dessa barragem, cerca de 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos, compostos principalmente por óxido de ferro e sílica, fluíram para o Rio Doce e deslizaram em direção ao Oceano Atlântico, onde chegaram dezessete dias depois, deixando em seu caminho um rastro de desabrigados, mortes, envenenamento e destruição. A lama, que percorreu 663 km até o oceano, afetou profundamente a paisagem e a vida das regiões impactadas por ela, tendo a gravidade do desastre sido reconhecida pelo governo brasileiro, com a então presidente Dilma Rousseff comparando a devastação provocada pelo rompimento da Barragem de Fundão ao derramamento de óleo provocado pela British Petrol no Golfo do México em 2010 (1).

Bento Rodrigues, um antigo povoado originado no século 17 em função da extração aurífera, cercado por montanhas e localizado ao norte do município de Mariana, foi a primeira localidade a ser atingida, sendo devastada pelos rejeitos minerários provenientes da Barragem de Fundão da empresa Samarco Mineração S.A., que se localizava a montante. Antes do rompimento, Bento Rodrigues apresentava uma paisagem característica de dezenas de povoados daquela região, trazendo resquícios dos diferentes ciclos da mineração no Estado, desde catas de talho a céu aberto do período colonial até a mineração atual em bancadas, com barragens de alteamento. Suas aproximadamente 180 casas se localizavam organicamente ao longo de ruas, vielas e becos, numa morfologia característica dos arraiais setecentistas mineiros, destacando-se do casario as Capelas de São Bento e das Mercês, que ficavam nas extremidades do caminho tronco, principal rua do povoado. Esse caminho, que era antigamente utilizado por tropeiros, era parte da conhecida Estrada Real, importante rota do período colonial que ligava essa região de exploração mineral ao litoral fluminense. Ali vivia uma comunidade de aproximadamente seiscentas pessoas, que mantinham antigos e profundos laços sociais e de parentesco, e tiravam sua subsistência da agricultura e do turismo em pequena escala, levando uma vida pacata, característica de uma localidade rural.

Igreja de São Bento, Bento Rodrigues, Mariana MG Brasil
Foto Morgana Trevys

 

As imagens do rompimento da barragem e da onda de rejeitos atingindo – sem aviso – Bento Rodrigues, destruindo casas, arrastando árvores e animais e ceifando vidas, se espalharam pelo Brasil e pelo mundo, e vieram a representar para o público em geral o grande desastre socioambiental que destruiu o Rio Doce, o sexto maior rio brasileiro. Os rejeitos provenientes da Barragem do Fundão arrasaram quase completamente o antigo povoado de Bento Rodrigues, que foi transformado em ruína: das 180 casas ali existentes ficaram em pé apenas 22 após o desastre. A população que vinha ocupando aquele território há trezentos anos, após conseguir fugir, de forma improvisada, do local durante o rompimento, foi transferida para a sede do município de Mariana, e está abrigada, até hoje, de forma dispersa em hotéis e casas alugadas, rompendo-se os laços familiares e de convivência longamente cultivados (2).

Bento Rodrigues devastada pelos rejeitos
Foto divulgação, nov. 2015 [Ministério Público Estadual]

Assim, se Bento Rodrigues, com seu traçado orgânico, casas coloniais, caráter rural e comunidade com fortes laços era apenas mais um povoado de caráter rural no meio das montanhas de Minas Gerais, com aquele evento do dia 5 de novembro de 2015 ele se transformou no símbolo do terrível desastre socioambiental representado pelo rompimento da Barragem e todas as consequências que ele trouxe para nosso país. Da mesma forma que o nome Verdun remete não apenas a uma pequena cidade no nordeste da França, mas à longa batalha que aí se travou e aos horrores da 1ª Guerra Mundial, da mesma forma que Hiroshima nos remete à destruição nuclear, Bento Rodrigues passou a representar, associativamente, algo que transcende o próprio lugar.

A perspectiva do patrimônio: a conservação-baseada-em-valores

Frente ao desastre e, principalmente, à ameaça de que essa tragédia de proporções nacionais fosse esquecida, o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana – Compat, um órgão local com trajetória de ativa atuação em defesa do patrimônio, resolveu proteger pelo instituto do tombamento os remanescentes de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, outro vilarejo fortemente atingido. Não obstante, tratava-se de uma proteção apenas temporária e provisória, que visava impedir, naquele momento, uma destruição ainda maior, não se estabelecendo, na rapidez do ato protetivo, o objeto exato da proteção nem as diretrizes para sua preservação. Como sabia que para a preservação efetiva dos sítios protegidos ainda havia muito a ser feito, o Compat procurou, então, o Ministério Público Estadual, que, por sua vez, acionou o Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos Brasil, que iniciou sua participação direta nesse processo.

Ao aceitar tal desafio, que nos colocava frente a um caso inédito no país, o Icomos Brasil respondia a seu mandato e agia de acordo com a sua Declaração de Compromisso Ético, defendendo a conservação de monumentos, sítios e lugares para que sua significância cultural seja mantida como evidência fidedigna do passado para as gerações futuras, numa necessária perspectiva de solidariedade intergeracional, que é apresentada como um “imperativo moral” (3). Esta perspectiva vai requer, como se sabe, uma abordagem abrangente e holística do patrimônio cultural, que só pode ser atingida por uma visão interdisciplinar, que reconheça o papel histórico, social e econômico da conservação do patrimônio no desenvolvimento local, nacional e mesmo mundial. Para atingir esse objetivo, o Icomos Brasil organizou, então, um grupo composto por profissionais de diversas disciplinas, ligado ao Programa de Pós-graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Universidade Federal de Minas Gerais, que iria se debruçar sobre o caso nos próximos três anos, auxiliado por um grupo de quinze especialistas dos quadros do Icomos Brasil.

O primeiro ponto a se destacar aqui refere-se ao fato de que, para se abordar um caso como o de Bento Rodrigues, não era parecia possível se adotar a perspectiva tradicional ainda dominante no campo do patrimônio, aquele da conservação-baseada-na-matéria (4): afinal, mais importante que os próprios resquícios materiais do antigo vilarejo de Bento Rodrigues – que se mostravam extremamente frágeis frente à magnitude da tragédia – seria o próprio processo de transformação daquele sítio em referência cultural para a sociedade brasileira, através do qual ele passava a simbolizar um evento significativo na história brasileira. Neste caso, cabia, a nosso ver, ao lado da identificação dos atributos contidos no sítio a ser objeto da conservação, atentar-se para o próprio processo de atribuição de valor ao bem cultural: o seu valor não seria apenas intrínseco a ele, não estaria apenas em sua materialidade, neste caso muito reduzida pela tragédia, mas residiria, em última instância, no próprio processo de sua patrimonialização através do qual ele se transforma, por associação, numa referência para o país.

Parafraseando o professor Ulpiano Bezerra de Meneses, em seu memorável parecer sobre a proteção da Casa de Chico Mendes para o Conselho Consultivo do Iphan, interessaria no caso de Bento Rodrigues identificar como os diversos agentes envolvidos com o sítio e os grupos formadores da sociedade brasileira se apropriaram dele (5). Neste sentido, aparecia como inescapável naquele trabalho a perspectiva da referência cultural, já enunciada na constituição Brasileira de 1988, ideia inovadora a partir da qual pode se superar a dicotomia aparentemente intransponível entre objetividade e subjetividade: a referência vai ser, por um lado, construção e subjetividade, que, no entanto, só poderá ser construída por diversos indivíduos, grupos e intérpretes, porque esses encontram no objeto ou sítio em questão um índice, um sinal. Assim, parecia-nos absolutamente necessário incorporar na avaliação acerca do sítio a ser objeto de proteção essa dupla perspectiva: ao lado da sua dimensão física, em sua materialidade e existência fenomênica, caberia se examinar também a perspectiva dos olhares – que vão construindo coletivamente leituras possíveis do objeto, ensejando o seu reconhecimento social como referência.

Neste sentido, adotamos no trabalho com Bento Rodrigues um outro paradigma que, desenvolvido a partir dos anos 1980, procura ultrapassar a perspectiva tradicional da conservação-baseada-na-matéria: a conservação-baseada-em-valores. Neste novo paradigma, mais que a materialidade, vai ser central a própria questão da atribuição de valor e os diversos agentes nela envolvidos (6). Na perspectiva da conservação-baseada-em-valores, o foco vai estar, como o próprio nome indica, nos valores atribuídos pela sociedade, que é compreendida como sendo constituída sempre por vários grupos de agentes e de interesse, compreendendo-se “valor”, neste caso, como “uma série de características ou qualidades” atribuída a um objeto ou sítio e “grupo de agentes e de interesse” como “qualquer grupo com um interesse legítimo naquele bem” (7). Considerada hoje, como mostra Ioannis Poulio (8), como a abordagem preferencial no campo da conservação do patrimônio, esta perspectiva se baseia amplamente na Carta de Burra, documento doutrinário produzido pelo Icomos australiano em 1999 (9), em sua primeira versão, tendo sido desenvolvida e defendida principalmente através de uma série de publicações do Getty Conservation Institute desde o final dos anos 1990 (10).

Bento Rodrigues devastada pelos rejeitos
Foto divulgação, nov. 2015 [Ministério Público Estadual]

Resumidamente, podemos dizer que uma perspectiva baseada-em-valores pode ser definida como “uma operação coordenada e estruturada sobre um objeto ou sítio cultural/patrimonial com o objetivo primário de proteger a significância do lugar”, que é “determinada através da análise da totalidade dos valores” que a sociedade atribui ao objeto ou sítio” (11). O relatório da pesquisa do Getty Conservation Institute, “Values and Heritage Conservation”, resume em algumas fórmulas simples traços importantes desse paradigma da conservação-baseada-em-valores, que vem se impondo no campo do patrimônio: os valores são atribuídos e não intrínsecos; um lugar de patrimônio tem múltiplos valores; os valores do patrimônio são mutáveis; os valores culturais são incomensuráveis e, finalmente, os valores de um lugar estão frequentemente em conflito (12). Assim, em nosso trabalho, no qual adotamos a perspectiva da conservação-baseada-em-valores para o caso de Bento Rodrigues, procuramos ter esses pontos sempre em consideração, identificando os múltiplos – e muitas vezes conflitantes – valores atribuídos ao sítio e percebendo-os como temporalmente circunscritos e mutáveis.

O percurso do trabalho: Declaração de Significância e contribuições para um Dossiê de Tombamento

Coerentemente com a perspectiva da conservação-baseada-em-valores, decidiu-se adotar no caso de Bento Rodrigues uma abordagem pautada prioritariamente pelos preceitos da Carta de Burra, que estabelece um processo específico para a preservação do patrimônio cultural, desde a caracterização dos bens culturais até a definição das ações de intervenção e valorização dos mesmos, baseada na identificação dos valores contidos nessa operação. Um dos conceitos centrais desta Carta vai ser a ideia de “significância cultural”, que indica a “importância” de um objeto ou lugar como um “todo” e que pode ser determinada através da análise dos valores atribuídos a ele. Neste sentido, a Carta de Burra vai definir a significância cultural como o conjunto dos “valores estético, histórico, científico, social ou espiritual para as gerações passadas, presentes ou futuras” acrescentando ainda que a significância está “incorporada no próprio sítio, sua estrutura, ambiente, usos, associações, significados, registros e diz respeito a lugares e objetos” (13), ou seja, entendendo que esse conceito engloba os valores do patrimônio cultural em um determinado contexto espacial e temporal.

Para se determinar a “significância cultural” de Bento Rodrigues era necessário, então, compreender e registrar a distribuição de todas as camadas dos atributos tangíveis e intangíveis do sítio em questão, o que é normalmente realizado através da produção de um tipo de documento conhecido como “Declaração de Significância”, que se colocou como o primeiro passo do nosso trabalho. A Declaração de Significância pode ser definida como “uma declaração de valor que explica brevemente o que é um lugar histórico e porque ele é importante”, identificando aspectos característicos do lugar que devem ser protegidos para que o sítio histórico mantenha a sua importância e significado. A Declaração de Significância vai ser normalmente composta de três seções: uma descrição do sítio histórico, a explicitação dos valores do patrimônio lá existentes e uma descrição dos atributos que definem suas principais características e que devem, portanto, ser conservados. Neste sentido, este documento pode ser considerado uma espécie de síntese que contém todas as categorias de valor identificadas, usadas como um meio de se interpretar o território e propor estratégias de conservação e gestão do mesmo. Este foi o objeto, então, da atuação do grupo durante o ano de 2016, identificando-se, de acordo com a perspectiva da conservação baseada-em-valores, os diversos atores envolvidos e os valores atribuídos ao sítio de Bento Rodrigues. O trabalho foi desenvolvido em estreito contato com os atingidos pelo desastre, que participaram de diversos grupos focais, tendo sido apresentado, numa versão preliminar, no 1º Simpósio Científico do Icomos Brasil, realizado em abril de 2017 em Belo Horizonte, bem como, alguns dias depois, aos atingidos, em Mariana, para validação e aperfeiçoamento.

Grupo focal com os atingidos
Foto Samantha Néri

É importante perceber ainda que com a produção da Declaração de Significância estava apenas se dando início àquele processo recomendado pela Carta de Burra para a conservação de um bem / sítio de interesse patrimonial, que se divide em três estágios: compreender sua significância, desenvolver políticas e administrar o bem cultural de acordo com essa política. Sílvio Zancheti, líder de um grupo de pesquisa brasileiro que tem explorado essa metodologia, nos chama a atenção de que esses estágios prescritos pela Carta de Burra não devem ser “realizados isoladamente um do outro”, mas devem “muito mais interagir: alguns procedimentos devem ser conduzidos de forma repetida, enquanto as consultas com os agentes envolvidos e mais investigação também são necessárias” (14). No caso de Bento Rodrigues, a partir da realização da Declaração de Significância ficou evidente a importância do sítio, que passou a se constituir numa referência nacional que remete ao desastre socioambiental que atingiu o Rio Doce com o rompimento da Barragem de Fundão. Com isso, ficou claro também a importância de se desenvolverem políticas efetivas para a conservação do sítio que, a nosso ver, deveria ser preservado através do instrumento legal do tombamento, que poderá, como mostraremos a seguir, garantir a manutenção da base material desse sítio de memória.

Com o estabelecimento da significância do sítio, que tornou patente a sua constituição como referência cultural para a sociedade brasileira, iniciou-se, então, a segunda etapa do trabalho, desenvolvida a partir do segundo semestre de 2017: construir os subsídios para um tombamento não só municipal, mas estadual e nacional do sítio de Bento Rodrigues. No caso dessa pesquisa, teve-se que responder a um desafio teórico-metodológico suplementar: como compatibilizar os modelos de proteção tradicionalmente usados no país para a instrução dos processos de tombamento com a perspectiva da conservação-baseada-em-valores, que incorpora novas abordagens? Para isso a equipe envolvida buscou, em primeiro lugar, identificar os modelos de dossiês de tombamentos efetivamente utilizados pelos órgãos brasileiros para a preservação do patrimônio, discriminando as principais informações e análises que os mesmos costumam trazer. A partir dessa análise, estabeleceu-se a estrutura do documento a se produzir, que procura, numa tentativa de compatibilização das metodologias, trazer os subsídios usualmente utilizados para a análise do sítio, incorporando, ao mesmo tempo, a nova perspectiva dos valores.

Assim, o documento produzido, que busca fornecer subsídios para a proteção de Bento Rodrigues, traz, em primeiro lugar, seguindo a tradição de preservação em nosso país, as necessárias informações geográficas, históricas, socioeconômicas e culturais sobre o sítio a ser protegido, bem como aspectos sobre o seu patrimônio material e imaterial e seus valores associativos presentes antes do evento. A proposta de tombamento, no entanto, vai ter como elemento central não simplesmente os valores evocados imediatamente pela base material remanescente, mas aqueles trazido também pelo “evento” (15) ocorrido no dia 05 de novembro de 2015, que transforma Bento Rodrigues num marco da tragédia que atingiu o Rio Doce, a partir da qual ele passa a representar, associativamente, o maior desastre socioambiental da história do Brasil. Neste sentido, e coerentemente com a perspectiva adotada, interessava-nos estabelecer como o antigo povoado, devastado pelo rompimento da Barragem do Fundão, vai se transformar numa “referência cultural”, sendo para isso particularmente importante a descrição do desastre tecnológico (16) que ali acontece e o “pós-evento”, ou seja, suas repercussões frente à opinião pública nacional e internacional. Neste ponto é necessário sublinhar, mais uma vez que, ao adotar esta perspectiva, estamos dando consequência lógica ao enunciado da própria Constituição Brasileira de 1988, que estabelece que vai se constituir patrimônio cultural brasileiro aquilo que é “referência cultural”, ou como ali se registram “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (17). Com a incorporação da ideia da “referência cultural” está se reconhecendo, portanto, a crescente importância da dimensão intangível do patrimônio, que vai ser central tanto para os bens imateriais quanto para os próprios bens materiais, que são portadores dessas referências, sendo o seu valor – sempre atribuído e não intrínseco – objeto privilegiado nas políticas de patrimônio.

Pousada da Sandra ao lado da Igreja de São Bento
Foto José de Sá / Elson Poloni

Lidando com um patrimônio sensível: de “sítio de memória” a “sítio de consciência”

Desde o início do trabalho, com a preparação da Declaração de Significância para Bento Rodrigues, saltava aos olhos que se tratava de um caso especial em que se estava lidando com um lugar social que não existia mais e no qual cabia se preservar basicamente seus remanescentes e as memórias da comunidade. Ao lidar com este caso parecia-nos útil, também desde o início, recorrer-se à distinção proposta pelo historiador francês Pierre Nora entre o que denomina “milieu de mémoire (meio de memória)” e “lieu de mémoire (lugar de memória)”. Segundo seu ponto de vista, um “milieu de mémoire” seria um lugar onde os modos de vida tradicionais existiriam de forma estável, numa continuidade garantida pela existência da própria espacialidade. Assim, um “milieu de mémoire” seria um ponto onde espaço e tempo encontrariam a memória, um lugar de memória viva e constantemente reafirmada. Ao contrário, um “lieux de mémoire” seria outro tipo de sítio, que apresenta apenas traços de circunstâncias interrompidas ou vidas arruinadas. É como Nora coloca:

“Nosso interesse no lugar de memória onde a memória se cristaliza e se secreta ocorre em um momento histórico particular, um ponto de inflexão em que a consciência de uma ruptura com o passado está ligada ao sentimento de que a memória foi rompida – mas rompida de tal maneira que coloca o problema da incorporação da memória em certos locais onde persiste um sentido de continuidade histórica. Há lugares de memória, sítios de memória, porque não há mais meios de memória, ambientes reais de memória” (18).

O antigo Bento Rodrigues era, sem dúvida, um “meio de memória”, um lugar onde a comunidade vivia em relativo isolamento e mantinha seu ritmo tradicional, preservando seu estilo de vida, hábitos e costumes. Com o desastre, a paisagem foi radicalmente alterada, o povoado quase completamente destruído e o modo de vida de seus habitantes colocado de ponta cabeça. Tudo o que restou fisicamente no local são ruínas e uma terra devastada emoldurada por uma paisagem natural exuberante. Porém, como aponta Nora, quando deixa de existir um “ambiente de memória” esse pode dar lugar a um “lugar de memória”, que, a seu ver, deve ser criado por uma “narrativa coerente”, que atribua novos significados aos traços materiais e imateriais que podem ser encontrados no local. Esta foi, portanto, a nossa abordagem neste caso: para se pensar em estratégias de preservação para Bento Rodrigues, este deve ser visado como um “lugar de memória”, um lugar que, a despeito da interrupção da vida cotidiana, preserva seus significados mais importantes e ganha novos significados trazidos pelo “próprio evento” de sua destruição e a narrativa que se cria sobre ele.

Remanescentes da Igreja de São Bento
Foto Samantha Néri, 2017

Como apontam vários autores, o conceito desenvolvido por Pierre Nora é muito amplo, centrando-se na identidade de uma comunidade e cobrindo não apenas remanescentes dela, mas também manifestações as mais diversas como bandeiras, canções e mesmo expressões culturais intangíveis (19). Sabendo que Nora desenvolveu sua ideia de “sítios de memória” num contexto nacional específico (20) e considerando também as potencialidades dessa ideia, adotamos neste trabalho aquela definição proposta pelo documento preparado para a International Coalition of Sites of Conscience, por uma equipe de especialistas contratada pelo World Heritage Center, que define um “sítio de memória” como “uma localidade específica com evidência arquitetônica ou arqueológica, ou mesmo com específicas características de paisagem, que podem ser relacionadas aos aspectos memoriais do lugar” (21). E como aquele mesmo relatório coloca num trecho mais adiante: “Sítios de memória para os propósitos deste relatório são lugares que estão revestidos com significado histórico, social ou cultural por causa do que aconteceu ali no passado. Tais lugares podem ser de significado particular, dado o seu papel na formação da identidade de uma comunidade ou nação”. Num sítio de memória os valores associativos vão ter maior importância que os valores materiais; no entanto, “os remanescentes materiais podem ser vitais para a compreensão dos valores associativos” (22), conclui-se.

Este é, sem dúvida, o caso de Bento Rodrigues: o espaço físico (material), os remanescentes do antigo povoado são elementos essenciais, suporte para a formação e transmissão de uma memória coletiva (imaterial) (23), cabendo se pensar em estratégias para sua preservação. É como coloca Xavier Roigé:

“A memória é um processo que provém do passado, porém que se vive a partir do presente e que se concretiza com frequência em ‘lieux de mémoire’ (lugares de memória), simbólicos ou materiais, espaços onde coabitam a memória e a história oficial. Para se converter em um lugar de memória não só é necessário que dito espaço escape ao esquecimento, mas também que seja reconhecido como tal por uma coletividade e que, ademais, seja musealizado” (24).

Festa de Nossa Senhora das Mercês em Bento Rodrigues
Foto divulgação, 25 set. 2016 [Arquidiocese de Mariana]

Durante muito tempo a preservação do patrimônio esteve relacionada à comemoração de uma memória nacional grandiloquente e engendrada pelos governantes e órgãos públicos, destacando-se os objetos e locais relacionados às narrativas oficiais sobre o passado. Não havia nesse campo lugar para aquilo que se relacionasse à tragédia, a opressão, à dor e à vergonha, também presentes na constituição da história. No entanto, essa perspectiva tem mudado recentemente, com a ampliação do conceito de patrimônio e os significativos deslocamentos sofridos pelo campo nas últimas décadas. Com isso, multiplicam-se pelo mundo a proteção de sítios de memória ligados a esses aspectos da história, que são crescentemente classificados como lugares patrimoniais, “muito longe daquela visão de patrimônio que prevaleceu uma geração atrás, quando estávamos quase inteiramente preocupados em proteger as grandes e belas criações, reflexos do gênio criativo da humanidade, e não o contrário – o lado destrutivo e cruel da história” (25).

Nota-se um interesse crescente em nível internacional e nacional naquilo que ficou conhecido como “patrimônio da dor” ou “patrimônio difícil”: a Ilha de Gorée, no Senegal é listada já em 1978 pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, status que também é conferido à Catedral da Bomba Atômica de Hiroshima (Atomic Bomb Dome) e a Auschwitz-Birkenau em 1997; em 1999 vai ser a vez de Robben Island, o sítio da prisão de Nelson Mandela. Em 2017, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, se torna o 21º sítio brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, tendo se considerado nessa inscrição o seu grande significado para as gerações passadas, presentes e futuras no que se refere à história do tráfico atlântico e à escravização de africanos. A página da Unesco descreve assim o sítio:

“Por sua magnitude, o Cais do Valongo pode ser considerado o lugar mais importante de memória da diáspora africana fora da África. Ele é o maior porto de entrada de negros escravizados na América Latina. As estimativas apontam que entre 500 mil e um milhão de negros chegaram ao continente desembarcando neste Cais. Desde sua construção, em 1811, ele sofreu sucessivas transformações até ser aterrado em 1911. O local foi revelado, em 2011, durante escavações das obras do Porto Maravilha, e se tornou o maior vestígio material das raízes africanas nas Américas. A cidade transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública” (26).

O Cais do Valongo se encaixaria no critério 6 do Guia Operacional para a Implementação da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natura Convenção do Patrimônio Mundial (27) – “Estar diretamente ou materialmente associado a acontecimentos e tradições vivas, ideias ou crenças, obras artísticas e literárias de significação universal excepcional” – sendo descrito no dossiê como um exemplo de “sítio histórico sensível”, que desperta a memória de eventos traumáticos e dolorosos e que lida com a história de violação dos direitos humanos. Neste sentido, a importância do Cais do Valongo não se encontra em seus resquícios materiais, mas, associativamente, em seu significado como “resumo da prática que representou quase quatro séculos de opressão e exploração do trabalho de milhões de pessoas”. O dossiê da candidatura resume essa ideia:

“Por todas suas características, o Sítio Arqueológico Cais do Valongo não se impõe pelo valor histórico como patrimônio material, apesar dos seus degraus de pedra, preservados ao longo do tempo. Reside no valor simbólico que sintetiza toda a tragédia do tráfico de africanos cativos para as Américas a sua principal dimensão como patrimônio da humanidade” (28).

Da mesma forma, os remanescentes de Bento Rodrigues não se impõem pela sua importância como patrimônio material, mas como contenedores dos significados que passaram a ter pelo desastre tecnológico que afetou profundamente o Rio Doce. Bento Rodrigues, assim como o Cais do Valongo, é certamente um “sítio de memória sensível”, que desperta a memória de um evento traumático e doloroso, e que guarda em sua materialidade a dor e o sofrimento provocados pelo rompimento da Barragem de Fundão e a destruição de toda a bacia do Rio Doce.

Finalmente, parece-nos importante ressaltar que, desde os anos 1990, tem sido desenvolvido um novo conceito, particularmente útil para se pensar em estratégias de preservação desse tipo de sítio, que envolve os temas do patrimônio e dos direitos humanos: a ideia dos “sítios de consciência”. Os “sítios de consciência” podem ser definidos como lugares que interpretam a história através de um sítio, engajam o público em programas que estimulam o diálogo sobre questões sociais imperiosas, fornecem oportunidades para envolvimento público e ação positiva em relação às questões levantadas no sítio e promovem a justiça e a cultura dos direitos humanos (29). Como podemos notar, trata-se aqui também de “sítios de memória”, na medida em que estamos lidando com lugares de grande relevância memorial, que remetem a eventos que ali aconteceram; no entanto é importante perceber que nem todo “sítio de memória” vai ser um “sítio de consciência”. Um “sítio de memória” só se torna um “sítio de consciência” se ele “confronta ativamente a história do que aconteceu naquele sítio e estimula os visitantes a refletir e agir sobre as implicações contemporâneas da história”. Assim, os sítios de consciência, ao mesmo tempo que são um dispositivo importante para a memorialização dos lugares podem servir também para se lidar com catástrofes recentes, servindo para se refletir sobre possíveis casos semelhantes e desdobramentos futuros: “Enquanto os sítios de consciência e os sítios de memória estão ambos intimamente conectados com o passado, os sítios de consciência são distintos em seu firme compromisso com o futuro”, anota o relatório preparado para o Centro do Patrimônio Mundial (30).

No site da International Coalition of Sites of Conscience – ICSC, uma organização não-governamental internacional que constitui uma rede global de sítios históricos, museus e iniciativas de memória que conectam lugares do passado aos movimentos atuais pelos direitos humanos, explicita-se essa perspectiva ativa e prospectiva dos sítios de consciência: “Nós somos pessoas, sítios e iniciativas que ativam o poder dos lugares de memória para engajar o público na conexão do passado e do presente, a fim de prever e moldar um futuro mais justo e humano” (31). A página continua descrevendo a missão dos “sítios de consciência” e de sua Coalizão Internacional:

“A necessidade de lembrar muitas vezes entra em conflito com a forte pressão para esquecer. Mesmo com as melhores intenções – como promover a reconciliação após eventos de extrema discórdia ao “virar a página” – apagar o passado pode impedir que as novas gerações aprendam lições importantes, além de comprometer para sempre as oportunidades de construir um futuro pacífico.

Sem espaços seguros para lembrar e preservar essas memórias, as histórias dos mais velhos, sobreviventes de atrocidades, podem desaparecer depois que eles falecerem, as sociedades que superaram os conflitos podem deixar de buscar a justiça por medo de reabrir velhas feridas, e as famílias dos desaparecidos não poderão jamais achar as respostas.

Mas essas memórias pertencem a todos nós. Suas histórias são as nossas histórias e sua História é a nossa História. É por isso que a Coalizão Internacional dos Sítios de Consciência existe” (32).

Bento Rodrigues
Foto Leonardo Castriota, 2019

Neste sentido, o documento preparado fecha com as diretrizes pós-tombamento, levantadas com a comunidade dos atingidos, entre as quais se destaca a proposta prévia da instalação de um Museu de Território em Bento Rodrigues, após sua proteção pelo tombamento, estratégia que, a nosso ver, possibilitaria que aquele “sítio de memória sensível” se transformasse num “sítio de consciência”, que confrontasse ativamente o que ali se passou, ajudando a se superar o trauma e estimulando simultaneamente uma reflexão ativa sobre as questões suscitadas pelo evento. Território, comunidade e patrimônio, as bases inescapáveis que sempre definem a proposta de um Museu de Território, parecem-nos os operadores adequados para se pensar na gestão de um sítio como Bento Rodrigues, na medida em que conseguem articular os dois níveis de atores ali envolvidos: os moradores, atingidos pela tragédia, e a sociedade brasileira, para a qual aquela localidade passou a representar uma referência cultural inescapável.

notas

1
Mais informações sobre o desastre provocado pelo rompimento da Barragem de Fundão podem ser encontradas na página do Ibama, na qual podem ser acessados também inúmeros documentos sobre o evento: GOVERNO DO BRASIL. Rompimento da Barragem de Fundão: Documentos relacionados ao desastre da Samarco em Mariana MG. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Brasília, 23 out. 2018 <https://www.ibama.gov.br/cites-e-comercio-exterior/cites?id=117>.

2
Um bom trabalho investigativo sobre o que aconteceu em Bento Rodrigues e o destino das inúmeras vítimas, pode ser encontrado em: SERRA, Cristina. Tragédia em Mariana. A história do maior desastre ambiental do Brasil. Rio de Janeiro, Record, 2018.

3
DE LA TORRE, Marta. Values and Heritage Conservation. Heritage & Society, v. 60, n. 2, nov. 2013, p. 162.

4
Como observa Ioannis Poulios, a significância do patrimônio neste paradigma, normalmente definido em termos arqueológico-históricos ou estéticos, é vista como intrínseca e inerente à matéria. O uso do patrimônio (pelas comunidades) é consideravelmente limitado para se assegurar a sua proteção (pelos profissionais da conservação) e é conduzido estritamente com referência aos princípios e práticas da conservação moderna de base científica. A preservação da matéria permite apenas intervenções mínimas no patrimônio, no que se refere à sua estrutura física, material, sendo a matéria, então, vista como um “recurso não renovável”. POULIOS, Ioannis. Past in the present: A living heritage approach. Meteora, Greece. Londres, Ubiquity Press, 2014, p. 19.

5
O parecer de Ulpiano Meneses pode ser consultado em REIS FILHO, Nestor Goulart; FINGER, Anna Elisa (Orgs.). Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Monumentos, Arquitetura, Paisagismo, Sítios Arqueológicos, Área de Terreiros e Antigos Quilombos. Brasília, Iphan, 2017, p. 29-35.

6
A questão da atribuição de valor, que hoje nos aparece em toda sua complexidade, não parecia ser, no entanto, até algumas décadas, uma questão controversa, nem digna de maior investigação: como já mostramos em outros trabalhos, a conservação constituiu durante muito tempo um campo relativamente fechado, sendo a atribuição de valor feita, via de regra, por experts, que decidiam o que era (ou não era) patrimônio. A maior parte dos conceitos que norteavam, então, as escolhas e opções na constituição do corpus patrimonial derivava do campo das artes, usando-se noções como as de “obra-prima”, “valor intrínseco” e “autenticidade”, que eram incorporadas sem maiores discussões ou aprofundamento. Nesse caso, mesmo que pudessem ser detectadas variações significativas nas diversas trajetórias nacionais das políticas do patrimônio, o conceito dominante era sempre o da “excepcionalidade”, que terminava por diluir num conceito genérico a complexa matriz de valores envolvida em cada caso.

7
MASON, Randon; AVRAMI, Erica. Heritage Values and Challenges of Conservation Planning. In: TEUTONICO, Jeanne Marie; PALUMBO, Gaetano. Management Planning for Archaeological Sites. Los Angeles, Getty Conservation Institute, 2002, p. 15.

8
POULIOS, Ioannis. Op. cit.

9
AUSTRALIA ICOMOS. The Burra Charter. Victoria, Deakin University, 1999 <https://australia.icomos.org/wp-content/uploads/BURRA_CHARTER.pdf>.

10
Uma abordagem pioneira nesta perspectiva pode ser encontrada em SULLIVAN, Sharon; PEARSON, Michael. Looking After Heritage Places. Melbourne, Melbourne University Press, 1995. Das publicações do Getty Conservation Institute, destacaríamos, entre outras: AVRAMI, Erica; MASON, Randall; DE LA TORRE, Marta (op. cit.). Values and Heritage Conservation. Research Report. The Getty Conservation Institute, Los Angeles, 2000; DEMAS, Martha. Planning for Conservation and Management of Archaeological Sites: A values-based approach. In: TEUTONICO, Jeanne Marie; PALUMBO, Gaetano (op. cit.), p. 27-54, e DE LA TORRE, Marta (Org.). Heritage Values in Site Management: Four Case Studies. Los Angeles: Getty Conservation Institute. Uma interessante reflexão recente sobre essa perspectiva pode ser encontrada em DE LA TORRE, Marta. Values and Heritage Conservation (op. cit.).

11
POULIOS, Ioannis (op. cit.). Moving beyond a values-based approach to heritage conservation. Conservation and Mgmt Of Arch. Sites, v. 12, n. 2, mai. 2010, p. 172.

12
AVRAMI, Erica; MASON, Randall; DE LA TORRE, Marta. Values and Heritage Conservation. Research Report (op. cit.).

13
AUSTRALIA ICOMOS. The Burra Charter. Victoria, Deakin University, 1999 art. 1 <https://australia.icomos.org/wp-content/uploads/BURRA_CHARTER.pdf>.

14
ZANCHETI, Silvio Mendes; HIDAKA, Lúcia Tone; RIBEIRO, Cecilia; AGUIAR Bárbara Aguiar. Judgement and validation in the Burra Charter Process: Introducing feedback in assessing the cultural significance of heritage sites. City & Time 4:2, 2009, p. 49 <http://www.ct.ceci-br.org>. Neste artigo propõe-se ainda uma nova definição de “significância cultural”, que é redefinida como uma “série de todos os valores identificáveis que resultam de um julgamento contínuo (passado e presente) e a validação social dos significados dos objetos”. A partir dessa definição, observa-se que a significância “inclui valores do presente e do passado”, “aqueles que estão em disputa entre os agentes envolvidos, e aqueles que não têm mais significado no presente, mas que ainda estão na memória coletiva, ou documentados em instrumentos de memória”. Assim, o processo de avaliar a significância é sempre muito complexo, e envolve julgamento e contínua validação.

15
No nosso trabalho utilizamos a noção de Paul Ricoeur, de acordo com o qual um evento seria “tudo aquilo que produz algum tipo de mudança no interior de uma narrativa: pode assinalar o início de um processo, demarcar o seu fim, produzir uma mudança de curso, agregar mais movimento a um processo em andamento, estancar este processo, ou acrescentar ao relato um novo elemento informativo”. RICOUER, Paul. Apud BARROS, 2017)

16
A Instrução Normativa n. 1, de 24 de agosto de 2012, define como desastres tecnológicos “aqueles originados de condições tecnológicas ou industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou atividades humanas específicas, que podem implicar em perdas humanas ou outros impactos à saúde, danos ao meio ambiente, à propriedade, interrupção dos serviços e distúrbios sociais e econômicos”. GOVERNO DO BRASIL. Instrução normativa n. 1, de 24 de agosto de 2012. Estabelece procedimentos e critérios para a decretação de situação de emergência ou estado de calamidade pública pelos Municípios, Estados e pelo Distrito Federal, e para o reconhecimento federal das situações de anormalidade decretadas pelos entes federativos e dá outras providências. Brasília, Ministério da Integração Nacional, 24 ago. 2012 <http://www.mi.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=822a4d42-970b-4e80-93f8-daee395a52d1&groupId=301094>.

17
GOVERNO DO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, Presidência da República, 1988. Grifos do autor.

18
NORA, Pierre. Between Memory and History: Les Lieux de Mémoire. Representations, Special issue: Memory and Counter-Memory, n. 26, University of California Press, Spring 1989, p. 7.

19
Neste sentido, como chama a atenção o relatório da International Coalition of Sites of Conscience, os sítios de memória podem ter, em Nora, tanto um aspecto positivo, através de uma perspectiva antropológica e consideração do contexto (passado e presente), quanto um aspecto negativo, na forma de uma perspectiva nacionalista e particularista, fechada para pontos de vista externos ou divergentes. INTERNATIONAL COALITION OF SITES OF CONSCIENCE. Interpretation of sites of memory. Study commissioned by the World Heritage Centre of Unesco and funded by the Permanent Delegation of the Republic of Korea, 2018, p. 11 <http://whc.unesco.org/document/165700>.

20
O “lugar de memória” foi uma abordagem eminentemente francesa, criado por Pierre Nora e tem sido objeto de muitos debates e reflexões, tendo sido assumido ao redor do mundo por uma série de outros profissionais (historiadores, antropólogos, sociólogos, arquitetos etc.). A este respeito, confira: ALLIER MONTAÑO, Eugenia. Los lieux de mémoire: una propuesta historiográfica para el análisis de la memoria. Historia y Grafia, n. 31, p. 165-192, 2008 <http://www.redalyc.org/pdf/589/58922941007.pdf>.

21
INTERNATIONAL COALITION OF SITES OF CONSCIENCE. Op. cit.

22
Idem, ibidem.

23
A esse respeito, confira ARÉVALO, Marcia Conceição da Massena. Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto. I Encontro Memorial do Instituto de Ciências humanas e Sociais. Mariana, ICHS UFOP, 9-12 nov. 2004 <www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=62>.

24
ROIGÉ, Xavier. De monumentos de piedra a patrimonio inmaterial. Estrategias políticas, museológicas y museográficas de presentación de la memoria. In: URTIZBEREA, Iñaki Arrieta (Org.) Lugares de Memoria Traumática. Bilbao, Universidad del País Vasco, 2016, p. 23.

25
LOGAN, William; REEVES, Keir. Remembering places of pain and shame. In: LOGAN, William; REEVES, Keir (Org.). Places of Pain and Shame: Dealing with 'Difficult' Heritage. New York, Routledge, 2009, p. 1.

26
UNESCO. Cais do Valongo é o novo sítio brasileiro inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Unesco, Brasilia, 09 jul. 2017 <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/>.

27
O Guia Operacional pode ser acessado em: UNESCO. Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention. Paris, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Intergovernmental Committee for the Protection of the World Cultural and Natural Heritage, 26 out. 2016 <http://whc.unesco.org/document/156250>; e a Convenção do Patrimônio Mundial em: UNESCO. Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Paris, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, 17 out. a 21 nov. 1972 <https://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf>.

28
GOVERNO DO BRASIL. Sítio arqueológico Cais do Valongo Proposta de inscrição na lista do Patrimônio Mundial. Brasília, Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, jan. 2016.

29
INTERNATIONAL COALITION OF SITES OF CONSCIENCE. Op. cit., p. 14-15.

30
Idem, ibidem, p. 25.

31
ICSC. Sobre Nós. International Coalition of Sites of Conscience, Nova York, 2017 <https://www.sitesofconscience.org/pt/sobre-nos/>.

32
ICSC. Sobre Nós. International Coalition of Sites of Conscience (op. cit.).

sobre o autor

Leonardo Castriota é arquiteto-urbanista e doutor em Filosofia. Professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador 1 do CNPq. Presidente do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos Brasil e Vice-Presidente do Icomos Internacional. Autor de Patrimônio Cultural: conceitos, políticas e instrumentos (Annablume, 2009).

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