Tanto a crítica – Crit como a Avaliação Pós-Ocupação – APO tiveram suas origens mais persistentes no Pós-Guerra, associadas a forte demanda de reconstrução das cidades europeias. O movimento moderno, anti classicismo ou anti-neoclassicismo também impulsionou as pesquisas sobre a Crit na arquitetura em uso.
Nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, tanto a Crit como o APO se valeram de conhecimentos interdisciplinares. No caso da Crit não só dos conhecimentos específicos da histórica e da estética da arquitetura, mas também da antropologia, da arqueologia e da geografia urbanas e do próprio jornalismo especializado em arquitetura e em cidades, entre outros, fundamentaram teoricamente esse campo.
Já no caso da APO, esta se fundamentou teoricamente a partir de um amplo espectro de conhecimentos, desde a própria arquitetura, a tecnologia da arquitetura, a engenharia civil, a psicologia ambiental, a antropologia, o design, o marketing, dente outras (1). Ainda, no Brasil, as normas de desempenho atuam como referências técnicos importantes (2).
Na Crit procura-se realizar a análise e a reflexão sobre o objeto arquitetônico em uso, análise e reflexão estas, relevantes e didáticas para os alunos e pesquisadores e até mesmo para os leigos, mas sem buscar, necessariamente, resultados e soluções na eventualidade de se observar espacialidades ou aspectos técnico-construtivos possivelmente inadequadas para aquele edifício, naquele contexto urbano e momento temporal.
No caso da APO podem existir análises e reflexões, porém os resultados devem ser, na medida do possível, conclusivos e dirigidos a diagnósticos e a recomendações, se observados aspectos inadequados ou destacados como boas práticas aqueles aspectos positivos observados.
Pode-se dizer que na Crit é a visão do especialista estudioso que prevalece. No caso da APO, inúmeras pesquisas em curso do Brasil buscam um equilíbrio entre as visões dos especialistas / avaliadores e aquela dos usuários finais (3) (4) (5).
Tais posturas teórico-metodológicas não são antagônicas entre si. Ao contrário, são complementares. Na verdade a APO necessita dos conhecimentos relativos a teoria, a estética e a história da arquitetura, particularmente quando o objeto arquitetônico forem edifícios antigos, por exemplo museus abrigados em antigas residências e que devem ser modernizados e adequados, preservadas as suas características físicas originais, para terem uso continuado e contemporâneo, mas também outros edifícios de alta complexidade e atuais como por exemplo, os museus recém concebidos e construídos, a seguir e os hospitais (dentre outros), em constantes transformações requerem adaptações tecnológicas a partir da história de sua arquitetura.
Por outro lado, tanto a Crit como a APO praticadas nas Universidade brasileiras ou por profissionais com formação acadêmica nestes campos, são propositivas. Ou seja, ambas miram a boa prática da arquitetura. Seriam, então, Crit E APO faces da mesma moeda? E seria possível aplicar a APO sem a fundamentação crítica?
Jack Nasar, Wolfgang Preiser e Thomas Fischer (6) ao refletirem criticamente mas com forte embasamento na APO sobre os edifícios concebidos por arquitetos renomados para abrigarem escolas de arquitetura e Paulo Afonso Rheingantz, Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro e Ana Maria Szapiro (7) ao colocarem em discussão de modo interdisciplinar e antropológico as qualidade do lugar, sugerem, ainda que não explicitamente, que Crit E APO tem muito a contribuir para a arquitetura (e o urbanismo – ver nota ao final desse artigo) se caminharem de forma conjunta e integrada.
Caminhos metodológicos
O Caminho da Crit
A Crit é fundamentada e elaborada por críticos profissionais e acadêmicos. Dentre estes últimos encontram-se os pesquisadores, docentes e estudantes e se baseiam, quase que necessariamente, na teoria e na história da arquitetura, na memória do estudo de caso em uso, objeto da crítica, na memória sobre o objeto de estudo e outros do seu tempo e no repertório da prática da crítica.
A base é preponderantemente, bibliográfica, mas também pode se valer de levantamentos de campo e os temas abordados focam, em especial na estética, nas funcionalidades e nas espacialidades (8) (9).
Particularmente André Cordeiro Costa (10) ao mesmo tempo em que sugere a importância da Crit para a prática da boa arquitetura, aponta também as dificuldades deste campo não só no Brasil, mas em toda a América Latina, realiza, por esta razão, uma meta crítica e por fim, oferece algumas contribuições para o seu melhor aproveitamento, pelos profissionais de arquitetura Crit.
A abordagem metodológica é multi-métodos, exploratória, analítica, qualitativa e, via de regra, pretende discorrer sobre estudos de caso.
Os estudos decorrentes da Crit tem impactado o ensino e a pesquisa em história da arquitetura e nos estudos sobre arquitetura em geral. Estudos de autoria de Bruno Zevi (11), ou de Kenneth Frampton (12), dentre outros, são bons exemplos disso. E podem sugerir mudanças de paradigmas na forma de pensar ou, até mesmo, de praticar a arquitetura contemporânea, a partir de uma visão substantiva no campo crítico-historiográfico.
As críticas também podem ser apreciadas em textos autorais e auto-críticos dos próprios arquitetos e ou efetuadas pelos pares (13) (14) (15).
Já os concursos e as premiações de projetos de arquitetura podem (e devem) apresentar premissas técnicas mas os integrantes do júri final é impactado por seus conhecimentos sobre arquitetura e sobre as críticas a arquitetura integrantes de seu repertório pessoal (16).
A crítica sobre a arquitetura em uso, em que pese a relativa pouca consideração dos pontos de vista dos usuários finais, tem apresentado aos leigos, numa linguagem adequada, os significados da boa arquitetura para a qualidade de vida urbana. Nesta direção, informa aos leitores da grande mídia, a relevância da preservação dos edifícios de valor histórico, ou mesmo de suas transformações, sobretudo no caso de obras complexas, de caráter institucional e público, tais como museus e parques, embora no nosso país a crítica na arquitetura em uso não seja observada no cotidiano da mídia não especializada, exceto em casos de catástrofes ou colapsos (incêndios de grandes proporções, rupturas estruturais e ou desastres ambientais com impacto em edifícios patrimoniados, por exemplo).
De toda a sorte, os resultados desses tipos de estudos de características acadêmicas, são sempre reflexivos e impactam nos próprios meios acadêmicos e profissionais (17).
O Caminho da APO (NA)
No caso da APO, conforme mostra a Fig. 4 a seguir, esta é praticada por avaliadores / consultores, docentes, estudantes, pesquisadores e pode envolver outros agentes da construção civil. (18).
A APO é um conjunto de multi-métodos e técnicas aplicados em edifícios a partir de doze meses de uso que pretende comparar a avaliação de desempenho físico (o ponto de vista dos avaliadores) com os níveis de percepção e de satisfação de seus usuários finais com vistas a obtenção de diagnósticos consistentes que por sua vez irão embasar recomendações para o próprio edifício estudo de caso (com vistas a operação e a manutenção) ou para futuros projetos semelhantes, num processo realimentador. A APO se aproxima, sob alguns aspectos e na sua vertente de avaliação de desempenho físico, dos laudos, vistorias e ou inspeções técnicas, mas se trata efetivamente de um procedimento metodológico que se utiliza de instrumentos e ferramentas não invasivas para auxiliar nas tomadas de decisão para a manutenção do edifício objeto de estudo nos patamares mínimos de desempenho preconizados pela NBR 15575 (19).
Além da avaliação do desempenho físico, realizada pelos especialistas ou avaliadores, leva obrigatoriamente em consideração os níveis de percepção e de satisfação dos usuários finais de determinada edificação e seus ambientes em uso (NA) (20) (21) (22).
Aqui, o referencial é o arcabouço normativo e os benckmarks e os temas envolvidos são aqueles de características, talvez, mais óbvias e pragmáticas (mas não menos importantes) como a funcionalidade, a acessibilidade, o conforto ambiental, a segurança, a infraestrutura, as instalações e outros.
Uma vez que a intenção é o confronto entre a visão do especialista com aquela do usuário final, utiliza-se a abordagem multi-métodos, interdisciplinar e quali-quantitativa nos estudos de caso (pois envolve com muita frequência, coleta de dados in situ como medições e respostas a questionários, dentre outros).
Seus resultados são objetivos, num contexto “custos versus benefícios” e dirigidos aos gestores de facilidades ou aos tomadores de decisões sobre o edifício e seus ambientes, buscando ênfase nos insumos / diagnósticos para dar embasamento às recomendações resultantes para o estudo de caso ou para diretrizes de futuros projetos semelhantes.
O ensino e a pesquisa em APO podem se valer de seus resultados para enriquecer a visão crítica e a auto-crítica dos estudantes, de profissionais ou mesmo podem alimentar os termos técnicos de referências que compõem os editais de concursos. Também podem alimentar com dados consistentes e que já estão disponíveis em inúmeras dissertações e teses realizadas em Universidades no país, os textos jornalísticos sobre os ambientes construídos e em uso no país.
Discussão e considerações finais
Crit e APO propósitos, impactos e resultados distintos. A primeira, mais analítica, gera conhecimento reflexivo sobre o presente e o futuro da arquitetura em uso. Já a APO, avaliativa, busca soluções técnico-funcionais – nem sempre possíveis de serem materializadas nos estudos de edifícios em uso, considerando os documentos disponíveis sobre a referida arquitetura em uso, oriundos da Crit, o presente e como melhorar futuros projetos semelhantes num processo realimentador, com ênfase na qualidade da gestão de projetos (22) (23).
Reitera-se então a pergunta: seria então Crit e APO faces da mesma moeda? Tratando-se de dois campos consolidados do conhecimento, para aqueles que respondem afirmativamente a essa indagação, abre-se, então um amplo leque de estudos e pesquisas a serem desenvolvidas, no qual a objetividade e a subjetividade se equilibram, com enorme potencial para a colaboração acadêmica e profissional mútuas – e com a devida teorização, historicidade e aplicabilidade – com vistas à qualidade efetiva dos ambientes urbanos, construídos e em uso, especialmente no caso das cidades brasileiras.
notas
NA – No caso dos caminhos metodológicos da APO, este artigo concentra-se principalmente na arquitetura do edifício. Porém a APO pode ser aplicada em espaços externos e ou públicos, sendo que para tanto, ser pertinente a consulta, dentre outras, às seguintes referências específicas: BRANDÃO, Pedro (Org.). O Chão da cidade. Guia de avaliação do design de espaço público. Lisboa, Centro Português De Design, 2002; PROJECT FOR PUBLIC SPACES. Como avaliar a qualidade de um espaço público. Archdaily, 16 abr. 2019 <https://www.archdaily.com.br/br/915132/como-avaliar-a-qualidade-de-um-espaco-publico>.
1
JONG, T.M. de; VAN DER VOORDT, Theo J.M. (Orgs.). Ways to study and research urban, architectural and technical design. Delft, Deft University Press, 2002 <https://repository.tudelft.nl/islandora/object/uuid:ae1372aa-dfeb-4744-abcb-3d58c79194e9?collection=research>.
2
ONO, Rosaria; ORNSTEIN, Sheila Walbe; VILLA, Simone Barbosa; FRANÇA, Ana Judite Galbiatti Limongi (Orgs). Avaliação Pós-Ocupação na arquitetura, no urbanismo e no design: da teoria à prática. São Paulo, Oficina de Textos, 2018.
3
MONT´ALVÃO, Claudia; VILLAROUCO, Vilma. Um Novo olhar para o projeto: a ergonomia no ambiente construído. Teresópolis, 2AB, 2011.
4
ZEISEL, John. Inquiry by design Environment/Behavior/Neuroscience in Architecture, Interiors, Landscape and Planning. Nova York, W.W.Norton & Company, 2006.
5
CAVALCANTE, Sylvia; ELALI, Gleice A. Psicologia Ambiental. Conceitos para a leitura da relação pessoa – ambiente. Petrópolis, Vozes, 2018.
6
NASAR, Jack L.; PREISER, Wolfgang F.E.; FISHER Thomas (Orgs.). Designing for designers: lessons learned from schools of architecture. Nova York, Fairchild Publications Inc., 2007.
7
RHEINGANTZ, Paulo Afonso; PEDRO, Rosa Maria Leite Ribeiro; SZAPIRO, Ana Maria (Orgs). Qualidade do lugar e cultura contemporânea e modos de ser e habitar as cidades. Porto Alegre, Sulina, 2016.
8
ROCHA, Lorenzo. Arquitectura crítica. Proyectos com espíritu inconformista. Madrid, Turner Publicaciones, 2018.
9
JACOBSON, Max com Shelley Brock. Invitation to architecture: discovering delight in the world built around us. Newtown, The Taunton Press, 2014.
10
COSTA, André Cordeiro da. A crítica na arquitetura. Do panorama à realidade brasileira. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 187.04, Vitruvius, dez. 2015 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5887>.
11
ZEVI, Bruno (1948). Saber ver la Arquitectura. Barcelona, Apóstrofe-Poseidón, 2007.
12
FRAMPTON, Kenneth. The Evolution of 20th Century Architecture. A Synoptic Account. Nova York, Springer, 2007.
13
SILVA, Helena Ayoub. Abrahão Sanovicz Arquiteto. São Paulo, Romano Guerra /Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2017.
14
CORNILLE, Didier. Pela casa se conhece o dono. São Paulo, Cosac Naify, 2014.
15
LIMA, João Filgueiras (Lelé). Arquitetura: uma experiência na área da saúde. São Paulo. Romano Guerra, 2012.
16
BRAGA, Milton. O Concurso de Brasília. São Paulo, Cosac Naify/Imprensa Oficial/Museu da Casa Brasileira, 2010.
17
ELLIS, Russel; CUFF, Dana (Orgs.). Architects´people. Oxford, Oxford University Press, 1989.
18
PREISER, Wolfgang F.E.; VISCHER, Jaqueline (Orgs.). Assessing Building Perfomance. Oxford, Elsevier, 2005.
19
NBR 15575: Edifícios habitacionais: desempenho. Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Normas Técnicas, 2013.
20
VAN DER VOORDT, Theo J.M.; VAN WEGEN, Herman B.R. Arquitetura sob o olhar do usuário. Programa de necessidades, projeto e avaliação de edificações. São Paulo, Oficina de Textos, 2013.
21.
IMMS, Weley; CLEVELAND, Benjamin; FISHER, Kenn (Orgs.). Evaluating Learning Environments. Snapshots of Emerging Issues Methods and Knowledge. Rotterdam, Sense Publishers, 2016.
22
REYES, Jorge Garcia; CAMPOS, Diego Echeverry; HERNÁNDEZ, Harrison, Mesa. Gerencia de proyectos. Aplicación a proyectos de construcción de edificaciones. Bogotá, Universidad de Los Andes, 2017.
23
KOWALTOWSKI, Doris C.C.K.; MOREIRA, Daniel de Carvalho; PETRECHE, João R.D.; FABRICIO, Marcio Minto (Orgs). O processo de projeto em arquitetura: da teoria à tecnologia. São Paulo, Oficina de Textos, 2011.
sobre a autora
Sheila Walbe Ornstein é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP e bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.