O título desse artigo usa como metáfora o livro Inferno verde de Alberto Rangel (1), publicado em 1908, que se vale da premissa de natureza hostil como o argumento principal da sua narrativa, na medida em que a Floresta Amazônica impunha e condicionava os ritmos da vida. O livro trata ainda das dificuldades em colonizar esse ambiente e tudo que nele nasce e se reproduz. Ainda assim, no pós-segunda guerra, esta ideia de “inferno verde”, a selva, os rios, a fauna e a flora da Amazônia foram apropriadas como recursos para a promoção do turismo no Norte do Brasil.
Portanto, embora o início da modernização da Amazônia pelo viés da industrialização fosse tardio, insinuava-se um incremento e incentivo ao turismo através da atuação do Estado, por intermédio de decretos e incentivos fiscais e financeiros, assim como ações do mercado no campo da hotelaria e da aviação, que redundaram na construção de um importante exemplar moderno da tipologia hoteleira: O Hotel Amazonas (1947–1951) em Manaus AM, de autoria do arquiteto carioca Paulo Antunes Ribeiro (1905–1973). Publicado em importantes veículos de difusão do modernismo arquitetônico à época, o hotel representou um sintoma da difusão dos valores da arquitetura moderna no Brasil, demonstrando a sua aclimatação em contextos diversos dos centros mais desenvolvidos, contribuindo ainda para a modernização e valorização da imagem turística de Manaus e da região Norte.
Isto posto, o objetivo deste artigo é investigar a relação entre a inserção da atividade turística como estratégia de modernização e Integração Amazônica e os princípios modernos adotados no Hotel Amazonas, analisando como o caráter pioneiro do projeto concebido pelo arquiteto Paulo Antunes Ribeiro se alinhava à dimensão econômica, política e simbólica dos agentes envolvidos no processo.
Para tanto, o artigo se organiza em duas partes, a saber: a gênese dos hotéis modernos no Brasil e a análise da obra à luz de uma perspectiva histórica da sua origem, apogeu e degradação. Por fim, a pertinência deste estudo, inserida em uma pesquisa mais ampla sobre a relação entre o turismo e a arquitetura moderna, se justifica pelo resgate histórico e a urgência de documentação e preservação do edifício, ícone do desenvolvimento do turismo e da modernização do Brasil e da Amazônia.
Os métodos utilizados foram subsidiados pela análise de fontes (primárias e secundárias), desenhos, plantas, imagens, entre outros. Embora seja próprio do campo disciplinar da arquitetura e urbanismo se valer do edifício como documento essencial, “o que reúne em si os dados mais significativos para o seu conhecimento” (2), a articulação com outras fontes e com a iconografia (fotos, plantas, croquis, desenhos etc.) possibilita inferir sobre aspectos relativos ao fato social historicamente datado relacionado ao edifício. Nesse sentido, foi realizada a pesquisa de campo e registro fotográfico in loco, malgrado não tenha sido possível realizar o levantamento de medidas.
A gênese dos hotéis modernos no Brasil: signos da modernidade
A construção de hotéis no Brasil no século 20 foi incrementada pelo Estado e pelo mercado, em consonância com o estágio de urbanização verificado em diferentes rincões do imenso país, contribuindo para a articulação e deslocamento de pessoas e mercadorias entre os principais núcleos urbanos, assim como para o desenvolvimento do turismo como atividade econômica.
O período “pré-história jurídico-institucional” das políticas nacionais de turismo, que se inicia em 1938 com o decreto-lei 406/1938 e se estende até 1966, ano de criação da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo — Embratur, caracteriza-se pela desconexão dos instrumentos de regulação e fragmentação institucional, concentrando-se fundamentalmente no controle de agências de viagens (3). Este período compreende as primeiras ações do Estado Novo, na Era Vargas, no campo do turismo, inserido no contexto de criação do Departamento de Imprensa e Propaganda — DIP, com forte apelo ideológico na construção da imagem do país.
“Podemos destacar três circunstâncias em que o turismo foi sentido e incorporado pelo governo na formatação do Estado Novo. A primeira é aquela […] que usou o turismo como forma de controle social, pois percebeu seu benefício na formatação da imagem do Estado Novo. A segunda considerou o turismo com uma fonte de renda, sendo que o Rio de Janeiro já figurava em cartazes do mundo todo como um polo turístico a ser visitado como paraíso tropical. A terceira àquela que considerava o turismo como um importante instrumento para o desenvolvimento interno econômico, social e político” (4).
A construção de hotéis neste período foi estimulada pelo incremento da urbanização das principais cidades brasileiras e motivada muito mais pelo negócio que propriamente pelo ócio, uma vez que a sua implementação advinha da necessidade de hospedar não prioritariamente turistas, mas outros tipos de viajantes (comerciantes, proprietários fundiários, políticos, artistas e estrangeiros) com diversas motivações de viagem.
Ainda na década de 1940, dois hotéis modernos inauguraram a contribuição do “modernismo programático” (5), a vertente moderna de caráter erudito e teórico, à tipologia hoteleira: o Park Hotel (1944), localizado no parque São Clemente, em Nova Friburgo, de Lúcio Costa e o Grande Hotel Ouro Preto (1945), de Oscar Niemeyer. Ambos constituem referências significativas não somente para a compreensão da gênese do hotel moderno no Brasil, mas também expressões das especificidades que caracterizam o modernismo arquitetônico brasileiro. Embora de forma discreta e episódica no contexto espacial e temporal das suas realizações, os hotéis supracitados são exceções de uma “modernismo programático” (6) em meio à linguagem hegemônica adotada à época, marcada por uma “modernidade pragmática” (7).
Nestas duas vertentes que expressavam a modernidade arquitetônica (erudita e pragmática), verifica-se um intercâmbio significativo de valores estéticos entre centros emissores e receptores, no qual a construção de hotéis, como lugar por excelência de fluxos de pessoas e ideias, permitiu uma espécie de viagem das formas modernas.
É na década de 1950 que se testemunha um ponto de inflexão, tanto no surto de construções de hotéis, como na adoção predominante da linguagem do movimento moderno nos projetos. Este incremento do setor se justifica em função dos refluxos da adoção da industrialização como paradigma de desenvolvimento, desdobrando-se na implementação da indústria automobilística e na ampliação e profissionalização da aviação comercial no Brasil. As viagens e o turismo de massa se anunciavam internacionalmente e foram tributários das mudanças sociais e tecnológicas provenientes da industrialização.
Os primeiros hotéis com características notadamente modernas na Amazônia surgem neste contexto do início da industrialização, da unificação do mercado nacional, da Integração Amazônica e da modernização das capitais regionais, reforçando o seu papel de polos administrativos e terciários, intermediando relações econômicas, políticas e culturais entre os centros dominantes e suas respectivas áreas de influência.
O Hotel Amazonas: ícone da arquitetura moderna na Amazônia
O Hotel Amazonas (que também já foi chamado de Hotel Ajuricaba) em Manaus, projetado em 1947 pelo arquiteto carioca Paulo Antunes Ribeiro (8), construído pelos engenheiros Luís da Costa Leite e Helmut Quacken e inaugurado em 7 de abril de 1951 (9), foi à época de sua implementação, um importante exemplar da tipologia hoteleira moderna, não somente da Amazônia, mas do Brasil, uma vez que ocupou lugar destacado na historiografia da arquitetura moderna (10). Paulo Antunes Ribeiro foi responsável também, em parceria com o arquiteto baiano Diógenes Rebouças, pelo projeto do emblemático Hotel da Bahia (1947–1951), sendo possível identificar certas similaridades arquitetônicas entre ambos.
“São ainda bastante semelhantes nos dois hotéis: os volumes que abrigam a circulação vertical, que se destacam na leitura geral do edifício, pela altura maior e por se contraporem ao bloco de apartamentos de uma forma deliberada; o tratamento da fachada principal, com a geração de um reticulado marcado horizontalmente pelas lajes e guarda-corpos e verticalmente pelas paredes que separam os apartamentos; e o tratamento das fachadas laterais, predominantemente cegas e perfuradas apenas pontualmente por janelas pequenas e retangulares, distribuídas de forma ordenada” (11).
A importância do Hotel Amazonas no panorama da arquitetura moderna brasileira foi reforçada pelo projeto paisagístico de Roberto Burle Marx (1909–1994) (12) e pela presença de obras de arte de sua autoria, como gravuras com motivos da fauna e da flora da Região Amazônica, condição que agregou significativo valor ao caráter pioneiro e moderno pretendido pelo edifício.
A cooperação entre as artes foi preconizada por vários arquitetos de formação moderna e as manifestações artísticas, expostas em murais, pinturas, painéis e vitrais, esculturas, além de jardins, sob a influência do movimento moderno, foram incorporadas a uma série de obras.
“A importância e a eficácia da integração ou síntese entre arte e arquitetura, embora remonte à gênese da atividade, adquire, desde as vanguardas artísticas do início século 20, um significado e função sociais condizentes (negando ou afirmando) com o processo de reprodução do capitalismo industrial, constituindo um ponto de interseção que caracteriza o movimento moderno, presentes nas proposições de Walter Gropius, Mies van der Rohe e Le Corbusier, só para citar os mais destacados representantes” (13).
Cabe salientar que a experiência da Bauhaus na Alemanha, apontava em grande medida para a integração das artes por meio da ideia de obra de arte total, pressuposto presente no manifesto da escola e que teve influência em diversos contextos, inclusive no caso do Hotel Amazonas.
Localizado em um terreno irregular no Centro da capital amazonense, na avenida Floriano Peixoto, relativamente próximo à área portuária e às margens do Rio Negro, o hotel era de propriedade da Prudência Capitalização, uma empresa do ramo imobiliário que empreendeu a construção de importantes edifícios em várias capitais brasileiras. A atuação da Prudência Capitalização em Manaus se deveu a Adalberto Ferreira do Valle (14), que nasceu em 1909 em Belém do Pará e realizou os seus estudos secundários em Manaus. Após cursar a Faculdade de Direito em São Paulo, atuou como presidente na empresa com sede na capital paulista e “teve papel decisivo na revitalização da economia amazonense, ao investir na implantação do Hotel Amazonas, da Brasiljuta e da Refinaria de Manaus” (15). A Prudência Capitalização construiu edifícios significativos em todo Brasil:
“A Prudência ‘brindaria’ algumas das cidades com edifícios que concorriam ‘para aumentar a estética urbanística desses centros de cultura e de trabalho’. Em São Paulo, o ‘Apartamentos Prudência’, construído no ‘rico e tradicionalmente aristocrático bairro de Higienópolis’, ao custo de Cr$ 25 milhões, considerado pela empresa o ‘mais importante no seu gênero na América do Sul’. Em Manaus, o ‘Hotel Ajuricaba’, construção ‘em estilo moderníssimo’, compatível com o clima tropical da cidade. Em Fortaleza, ‘Edifício Jangada’; em Salvador, ‘Edifício Caramuru’; em Recife, ‘Edifício Nassau’; em Campinas, o ‘Edifício Prudência e Salvador’. Todos estes, edifícios comerciais, destinados a abrigar instalações da empresa que, em 1945, orgulhava-se de manter uma rede de serviços que compreendia dezenove sucursais, vinte escritórios auxiliares, e 1.045 agências (agentes de capitalização) espalhados por todo território nacional” (16).
O empreendimento contribuiu para a modernização de Manaus e a sua imagem foi veiculada para promoção turística da Amazônia, se valendo do discurso da natureza exuberante em consonância com a modernidade proposta pelo projeto arquitetônico. No início da década de 1950, várias publicações na revista O Cruzeiro (17), magazine de circulação nacional, traziam o discurso do “inferno verde” que, contraditoriamente, buscava aliar as potencialidades naturais da Floresta Amazônica à ideia de civilização, a imagem de paraíso do conforto à modernidade. Aliás, a projeção do Hotel nos meios de comunicação impresso conferiu grande visibilidade à obra, não somente nas publicações especializadas, mas também em revistas populares e jornais (18), esses últimos sempre ratificando a narrativa de contraste entre a natureza e a cultura. A dimensão política na construção do Hotel foi tão significativa e simbólica que a inauguração contou com a presença do então Presidente da República Getúlio Vargas.
O Hotel Amazonas suscitou também o processo de verticalização da área central, onde predominavam edificações históricas e sobrados com até no máximo quatro pavimentos. Tratava-se de uma zona bem dinâmica do ponto de vista comercial, além do fato da localização permitir visuais para o Rio Negro, sendo estratégica para atender as demandas dos fluxos de viagens de ócio e negócio.
É importante destacar que, assim como no Hotel da Bahia, há reinterpretações dos princípios da arquitetura moderna preconizados por Le Corbusier. Não há propriamente a presença da janela de fita, mas a implementação de varandas nas suítes voltadas para o logradouro, que formavam uma grelha e repercutiram potencialmente na volumetria do edifício. O pilotis também foi ressignificado, uma vez que o edifício foi implantado em uma tessitura urbana tradicional, com a edificação construída no limite do lote. O alinhamento de pilares no pavimento térreo possibilitou a criação de uma área de transição e a capilaridade entre o público e o privado, que proporcionava um espaço de passagem protegido e abrigado. Esse tratamento diferenciado entre a base e o corpo do edifício se alinha a ideia de Carlos Eduardo Comas sobre o Grande Hotel de Ouro Preto e o Park Hotel, cuja “simplicidade repetitiva do andar superior se contrapõe ao drama térreo” (19). Esse pilotis “à brasileira”, presente em várias obras do modernismo arquitetônico no Brasil, é uma lição de modernidade em relação à independência entre estrutura e vedação. Cabe notar ainda a distinção entre o volume vertical posterior, que concentra uso de serviços e circulação vertical, e o bloco principal que abriga os quartos.
O projeto original contava com 48 apartamentos distribuídos em quatro pavimentos e uma única suíte luxuosa no último pavimento, compondo o terraço-jardim projetado por Burle Marx. Esta suíte presidencial foi construída especialmente para hospedar presidentes, políticos e artistas famosos, cooperando para mitificar a modernidade pretendida pelo Hotel em uma cidade ainda provinciana.
É interessante destacar que o hotel possuía geradores de energia próprios localizados em um terreno anexo para suprir os usos e demandas e evitar as intermitências do fornecimento de energia elétrica da cidade. Além disso, o Hotel Amazonas trazia várias inovações, como o ar condicionado, importado dos Estados Unidos, bar, boate e um mini zoológico no pavimento térreo, que revelavam o caráter híbrido do programa de necessidades. Essas novidades e amenidades, o luxo e a própria linguagem arquitetônica do hotel o qualificavam como um dos edifícios mais importantes construídos à época em Manaus.
Para Cavalcanti (20), além do uso de tecnologias ativas, o Hotel Amazonas foi um bom exemplo de aclimatação tropical dos princípios do modernismo arquitetônico, visíveis na implantação e orientação dos espaços atentas às condicionantes de ventilação e insolação, no emprego de venezianas nas esquadrias e no uso de varandas.
Diferente do que ocorria nos principais centros urbanos, que possuíam mais exemplares de hotéis, em Manaus, uma cidade ainda modesta à época, a construção funcionou como um signo da modernidade, condição sustentada por vários motivos, a saber: teve ampla divulgação da sua imagem na mídia nacional, sendo um agente do processo de turistificação da Amazônia; serviu de meio de hospedagem para importantes políticos e artistas, reproduzindo a sua fama; apresentava uma diversidade de usos e atrações, o Mandy’s Bar e o Restaurante Varanda Tropical foram utilizados e apropriados pela elite local como signo de status social e; como consequência dos fatores supracitados, o Hotel proporcionou o estabelecimento de conexões e trocas de valores sociais, econômicos, políticos e simbólicos em escala internacional, nacional, regional e local.
No contexto de declínio da Prudência Capitalização, o Hotel Amazonas foi arrematado em 1963 em leilão por um empresário português chamado Vasco Vasques, que contou como fiador o Banco do Estado do Amazonas, demonstrado as parcerias entre o Estado e o mercado no desenvolvimento do turismo e da hotelaria.
Este empresário foi um agente importante no desenvolvimento do turismo, ao criar a primeira agência de viagens do Amazonas, a Selvatur, que juntamente com o Hotel Amazonas, uma estrutura de dezoito embarcações para passeios fluviais e a Pousada Janaurylândia, — “dotada de restaurante, piscina e 24 apartamentos flutuantes, localizada no Lago de Janauary” (21), — passou a ofertar um receptivo turístico em Manaus.
Some-se a isto, a atuação da Panair do Brasil (22) na Amazônia, que foi um significativo estímulo para o turismo da região, facilitando o fluxo de pessoas e mercadorias e conectando Manaus ao resto do mundo. O Hotel Amazonas foi a base para a tripulação da companhia aérea, que possuía voos regulares para a área.
“A companhia foi logo responsável por uma iniciativa decisiva para a assistência e o desenvolvimento da região amazônica. A Panair do Brasil começou a operar vôos para a Amazônia já na década de 1930, sendo o vôo inaugural em 25 de outubro de 1933. Seus serviços colaboraram para o projeto do Presidente Getúlio Vargas de exploração racional da região. Em seus hidroaviões Catalina foram transportados medicamentos, mala postal e profissionais, o que contribuiu para a integração da região com o resto do território nacional” (23).
Conforme já foi destacado, desde o Estado Novo, regime associado ao governo de Getúlio Vargas, havia o interesse de consolidar a integração da Região Amazônica como uma questão geopolítica e de soberania nacional.
O Regime Militar no Brasil (desde o golpe de 1964) mudou os rumos da atuação da Panair no país, ao cassar as concessões de transporte da empresa aérea por meio de um decreto de 10 de fevereiro de 1965 de ordem do Presidente Castello Branco, repercutindo na interrupção de voos para Manaus e diminuindo as taxas de ocupação do Hotel Amazonas.
Esta medida do governo ditatorial foi orquestrada para beneficiar a emergente empresa aérea nacional Varig S.A., que devido às articulações políticas com os militares, ocupou o vazio deixado pela Panair.
“Com o fechamento da Panair do Brasil e a aquisição de suas linhas, a Varig selou seu destino de ‘empresa de bandeira do país’. Cresceram sua frota, rotas e faturamento. Os Relatórios da Administração do período entre 1964 e o final da década de 1970 demonstram ser este o de maior prosperidade para a empresa” (24).
Nota-se que a atitude arbitrária do Regime Militar e a perseguição política aos dirigentes da Panair, francamente simpatizantes do regime democrático, representado pela figura do presidente Juscelino Kubitschek, redundou no beneficiamento de uma empresa em detrimento de outra, tendo impacto na hotelaria com a criação da Companhia Tropical de Hotéis, subsidiária da Varig e a construção do Tropical Hotel de Manaus na década de 1970, que passou a rivalizar em importância com o Hotel Amazonas.
Depois de um intervalo curto de decadência em função da diminuição dos fluxos turísticos, a implementação de diversas políticas para a Amazônia, como a criação da Zona Franca de Manaus, em 1965, e as políticas da Embratur a partir de 1966, a cidade retomou um certo incremento do turismo doméstico, o que justificou a ampliação no início da década de 1970 do número de apartamentos do Hotel Amazonas, que passou de 48 para noventa, com o adição de três pavimentos e, posteriormente, para concorrer com o Tropical Hotel de Manaus, o hotel totalizou 110 por meio de acréscimos nas laterais.
Essas reformas comprometeram sobremaneira a integridade do projeto original e contribuíram para a descaracterização dos seus atributos modernos intrínsecos, impactando na conservação dos seus valores culturais, históricos e artísticos. O hotel teve suas atividades encerradas em 1996. Atualmente, a supressão das antigas áreas sociais do equipamento e o desmembramento da propriedade das unidades habitacionais, que ainda são oferecidas como meio de hospedagem em plataformas como o Airbnb, dificultam a restauração das características originais da obra.
O Hotel Amazonas vive seu próprio inferno: à guisa de conclusão
Em síntese, o Hotel Amazonas é um exemplo emblemático do primeiro período de incentivo ao turismo e à hotelaria no Brasil, correspondendo também à fase de introdução (embora rarefeita) dos princípios da arquitetura moderna na região Norte. A atitude moderna do Hotel Amazonas se estabeleceu como uma linguagem erudita e como expressão da modernização, traduzidas: na inserção urbana de grande relevância, valorizando a localização em quem foi implantado; no agenciamento do programa de necessidades de forma mais complexa por intermédio da incorporação de novos usos, qualificando o hotel como uma tipologia híbrida; na ampla utilização do concreto armado como sistema estrutural e de materiais industrializados; na linguagem formal mais abstrata, peculiar do modernismo; na incorporação das artes plásticas e do paisagismo às soluções arquitetônicas em busca de uma integração das artes.
O resgate histórico e cultural do lugar do Hotel Amazonas no desenvolvimento do turismo e da arquitetura moderna na Amazônia e no Brasil se faz urgente, em função das ameaças sofridas por este acervo de grande valor patrimonial diante das dinâmicas urbanas contemporâneas, como por exemplo: a decadência das áreas centrais, face ao surgimento de novas áreas de centralidade nas metrópoles brasileiras; a abertura de novas frentes de valorização imobiliária; assim como a fragilidade de ações do Estado em relação à salvaguarda do patrimônio edificado, sobretudo o moderno.
A pertinência do artigo sobre o Hotel Amazonas se sustenta em dois aspectos essenciais: as escassas pesquisas específicas sobre a relação entre o turismo e a arquitetura moderna, deixando um campo de estudo vasto a ser explorado e; a documentação dos hotéis modernos no Brasil e na Amazônia é uma premissa para a preservação e conservação (material e imaterial) do acervo remanescente. Diante do exposto, o presente artigo, que compõe um dos resultados de uma investigação mais abrangente sobre o hotel moderno no Brasil, constitui uma contribuição para a escrita da história da arquitetura moderna brasileira, enfatizando processos, agentes, regiões e práticas arquitetônicas relacionadas ao turismo pouco tratadas pela historiografia.
Enfim, em razão do estágio avançado de descaracterização da edificação, que possivelmente dificultaria um processo de tombamento, advoga-se que ações conjuntas entre os órgãos de preservação, a Academia e os proprietários poderiam, por intermédio da documentação e conscientização do valor patrimonial do edifício, promover a elaboração de orientações e estratégias para uma proposta de projeto de intervenção no edifício. Assim, para libertar o Hotel Amazonas do seu próprio inferno, as ações de preservação devem estar vinculadas às políticas públicas de turismo, incluindo em sua agenda a valorização desse patrimônio pleno de significados culturais e históricos, legado do desenvolvimento do turismo e da arquitetura moderna na Amazônia e, como tal, merece um lugar no paraíso.
notas
NE — Esse artigo é uma versão ampliada e revisada em português do artigo em inglês “Tourism and modern architecture in a 'Green Hell': Hotel Amazonas (1947–1952)”, publicado no Docomomo Journal, v. 60, 2019, p. 90–-93. Note-se que uma das revisões se refere à data de inauguração do hotel como sendo 1952, quando na revisão dessa versão se contatou que o ano correto de inauguração foi 1951.
NA — Agradeço à Capes, que concedeu Bolsa de Professor Visitante No Exterior (Júnior) para realização da pesquisa de pós-doutorado "Turismo e arquitetura transatlântica: o hotel moderno no Brasil e em Portugal" junto ao Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa — IST UL e ao Docomomo International.
1
RANGEL, Alberto [1908]. Inferno verde. 6ª edição. Manaus, Valer, 2007.
2
WAISMAN, Marina. O interior da História. Historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo, Perspectiva, 2013, p. 11.
3
CRUZ, Rita de Cássia Ariza da. Política de turismo e território. Contexto, São Paulo, 2000.
4
SANTOS FILHO, João dos. O turismo na Era Vargas e o Departamento de Imprensa e Propaganda — DIP. Cultur — Revista de Cultura e Turismo, v. 2, 2008, p. 112.
5
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900–1990. São Paulo, Edusp, 2002.
6
Idem, ibidem.
7
Idem, ibidem.
8
Paulo Antunes Ribeiro (1905–1973) nasceu na cidade do Rio de Janeiro e se graduou na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1926. O arquiteto faz parte da primeira geração de arquitetos modernos no Brasil, que teve forte influência da obra de Le Corbusier, sobretudo por que estudou entre 1928 e 1929 no Instituto de Urbanismo da Universidade de Paris. Alcançou, como toda a arquitetura moderna brasileira, um relativo prestígio nacional e internacional na década de 1950, tendo realizado projetos de diversas tipologias (hotéis, escritórios, hospitais, residências, bancos, clubes e planos urbanos).
9
UCHÔA, Júlio. Você sabia. A Gazeta, 23 mai. 1953 <https://bit.ly/3VTpGzL>.
10
Publicado nas revistas L’Architecture d’Aujoud’hui, n. 42/43, ago. 1952; Habitat, n. 4, 1951, p. 68; Arquitetura e Engenharia, vol. 16, n. 36–7, mar./abr. 1951.
11
ANDRADE JUNIOR, Nivaldo Vieira. Arquitetura moderna na Bahia, 1947–1951: uma história a contrapelo. Tese de doutorado. Salvador, PPGAU FA UFBA, 2012, p. 527.
12
“A projeção internacional da arquitetura moderna brasileira é devedora das contribuições de Roberto Burle Marx. A importância do paisagista para a arquitetura moderna brasileira transcende a suposta subordinação e complementação do projeto paisagístico ao edifício. Sua elevada contribuição à cultura artística, arquitetônica e urbanística coloca o paisagismo em um plano mais elevado de importância, ao pretender estabelecer uma relação diferenciada entre o homem moderno e a natureza, na medida em que o jardim responde a uma função social, que se funda na higiene, na educação e na arte”. In DIÓGENES, Beatriz Helena Nogueira; PAIVA, Ricardo Alexandre. O diálogo entre arte e arquitetura no Modernismo em Fortaleza. Revista Projetar — Projeto e Percepção do Ambiente, v. 2, 2017, p. 2.
13
Idem, ibidem, p. 19.
14
Foi diretor da Prudência Capitalização de São Paulo; diretor do Banco Sul Americano do Brasil S/A; diretor Vice-Presidente da Empresa Imobiliária Itaisca de São Paulo; presidente da Companhia Brasileira de Fiação de São Paulo;Vice-Presidente da Panam Propaganda e Promoção de Vendas; presidente da Sociedade"Amigos de Campos de Jordão. Câmara dos Deputados — Sileg — Deputados Novos <https://bit.ly/42qkXbx>.
15
PESSOA, Simão. Nasce a Banda do Mandy's Bar. Candiru na Cadência do Samba, 2011 <https://bit.ly/42qLHse>.
16
AMADOR, Paulo. Capitalização. Uma história de prosperidade. Grudiara, São Paulo, 2002, p. 49. Grifos no original.
17
Hotel Amazonas. O Cruzeiro, n. 15, 26 jan. 1952, p. 67.
18
HEIMBECKER, Vládia Pinheiro Cantanhede. Narrativas de paisagem, argumentos de projeto: centralidade da Amazônia em textos e na prática da Arquitetura e Urbanismo no Brasil, de 1934 a 1989. Tese de doutorado. São Carlos, IAU USP, 2019.
19
COMAS, Carlos Eduardo. Arquitetura moderna, estilo campestre. Hotel, Parque São Clemente. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 123.00, Vitruvius, ago. 2010 <https://bit.ly/3nOH0cS>.
20
CAVALCANTI, Lauro. Quando o Brasil era moderno. Guia de arquitetura 1928–1960. Aeroplano, Rio de Janeiro, 2001.
21
PESSOA, Simão. Op. cit.
22
A Panair do Brasil nasceu em 17 de outubro de 1930 da compra pela poderosa empresa de aviação Pan American Airways Inc. da Nyrba do Brasil, sigla de Nova York, Rio, Buenos Aires que começou suas atividades no Brasil em 1927.
23
SALADINO, Alejandra. O fechamento da Panair do Brasil e a ascensão da Varig. Cantareira (UFF), v. 3, 2005, p. 2.
24
Idem, ibidem, p. 2.
sobre o autor
Ricardo Alexandre Paiva é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Ceará (1997), mestre (2005) e doutor (2011) em Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP, com pós-doutorado pelo IST UL. É professor associado de Projeto Arquitetônico do Daud UFC e do PPGAU+D-UFC e Pesquisador PQ-2 do CNPq. Coordena o Laboratório de Crítica em Arquitetura, Urbanismo e Urbanização — LoCAU UFC.