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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Tomamos a prática do passinho como objeto para entender o processo de territorialização da cidade por parte destes jovens de periferia, que usam o celular e a Internet cotidianamente.

english
We take the practice of passinho as an object to understand the process of territorialization in the city, by these outskirts youths that use their cellphone and the Internet daily.

español
Tomamos la práctica del passinho como objeto para investigar el proceso de territorialización de la ciudad por parte de estos jóvenes de la periferia, que utilizan el celular y la Internet a diario.


how to quote

RIPOLL, André Cavedon. Passinho do funk. Territórios da dança, práticas da cidade conectada. Arquitextos, São Paulo, ano 23, n. 276.04, Vitruvius, maio 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.276/8792>.

O vídeo começa com três garotos entrando no quadro em trenzinho. A baixa resolução mal deixa perceber os detalhes do ambiente, o pátio concretado de uma casa branca. Os garotos logo começam a trocar passos de dança. Não fosse o ritmo eletrônico em alto volume, a dança poderia em um primeiro momento ser confundida com frevo, com uma sequência de agachamentos alternando-se o pé de apoio. Mas o que se está dançando é passinho, a dança que se desenvolveu nas favelas cariocas ao ritmo do funk. Ao vídeo em questão, postado ao YouTube em 2008 com o título “Passinho foda” (1), é atribuída a origem da popularização do passinho.

O estilo de dança, classificado como de dança de rua, lembra e incorpora elementos de estilos de dança de rua ligados à cultura negra de periferia estadunidense, como o krumping, popping ou locking e break. Mas a dança que se apresenta é o passinho e é em seu aspecto extremamente antropofágico que ela guarda sua peculiaridade, absorvendo um repertório de estilos de dança de rua e trazendo elementos de ritmos tradicionais brasileiros como o frevo e o samba, bem como de outros países, como o tango. Simone Pereira de Sá (2) atribui essa diversidade ao fato de o passinho estar completamente inserido em uma cultura de Internet, principalmente em uso do YouTube, formando uma espécie de bricolagem possível graças à viabilização do acesso a vídeos oriundos do mundo inteiro.

De fato, é em sua relação indissociável com as novas tecnologias de informação e comunicação, em especial o uso de celulares conectados a redes de dados e na plataforma de compartilhamentos de vídeo YouTube, que vemos no fenômeno um campo interessantíssimo de reflexão sobre a territorialização da cidade contemporânea. Este artigo é produto de um debruçar-se sobre esta dança brasileira, que teve seu auge há aproximadamente uma década e meia, mas que deixa em seus registros digitais justamente as evidências de que o ciberespaço é territorializado de maneira indissociável ao espaço tangível.

Dada a distância temporal ao fenômeno estudado, que já não se encontra mais tão em voga como estivera no fim da primeira década dos anos 2000, a pesquisa aqui resultante tomou como fontes registros audiovisuais diretos dos dançarinos de passinho, registros em mídias jornalísticas e um filme documentário (3). Estas fontes são tomadas não apenas como dizendo sobre o fenômeno mas, antes disso, como constitutivas do próprio fenômeno; um exemplo claro disto é o vídeo descrito no primeiro parágrafo deste texto, que é ao mesmo tempo registro e prática da dança do passinho.

O passinho se consolida no final da primeira década de 2000 como uma dança ao estilo musical do funk carioca, que é dançada majoritariamente por garotos nos bailes funk na periferia do Rio de Janeiro. O passinho começa a se desenvolver no início dos anos 2000, mas é com o referido vídeo, descrito no início deste texto, postado pelo bailarino Beiçola, que a prática adquire popularidade e alcance que supera os limites da favela (4). A partir daquele primeiro vídeo, outros dançarinos começariam a postar seus próprios vídeos, desencadeando um processo de incentivo mútuo para o desenvolvimento do estilo:

“Olhei bem o vídeo, achei que poderia fazer aquilo, e até bem melhor que aquilo” (5).

A fala de Camarão Preto, bailarino de passinho que posta em seu próprio canal a primeira resposta ao vídeo de sucesso de Beiçola, mostra como começa a partir daí uma disputa on-line por reconhecimento, em que diferentes dançarinos competem por assinaturas em canal de YouTube, visualizações e comentários; todos indicadores de sucesso. Esta disputa é análoga às batalhas de rima ou freestyle e do próprio funk e, inclusive, à tradição do repente nordestino, mas encontrando um ambiente on-line. O passinho sofre a seguir uma captura por um circuito hegemônico de cultura, quando é realizada a primeira Batalha do Passinho em 2011, patrocinada pela Coca Cola (6). A empresa a seguir produz um mega-grupo de passinho, o Dream Team do Passinho, que se torna um símbolo referência do estilo (7).

Amplamente ancorado na cultura popular e em alguma medida apreendido pelo circuito hegemônico a partir de seu potencial vinculante, é a popularização do acesso à Internet que permite que o passinho se desenvolva e adquira maior visibilidade pelo compartilhamento de vídeos, principalmente pela plataforma YouTube. Os aparelhos celulares, especialmente, viabilizam que cada indivíduo possa postar ou subir para a rede seu próprio vídeo, filmado e editado sem que seja necessária muita qualidade, como é característico dos vídeos caseiros (8). Agora, a distribuição à rede mundial de computadores, com a possibilidade de que os vídeos sejam visualizados em qualquer lugar independente de localização, não quer dizer que esta prática on-line não construa um discurso de cidade agarrado a seu território, carregando as marcas identitárias daqueles que o produzem. Ou seja, ainda que não seja tangível, não é verdade que a postagem do vídeo on-line signifique um movimento puro de desterritorialização.

Simone Pereira de Sá (9) pensa a prática do passinho em relação ao uso de celulares na favela,acionando o conceito de territórios informacionais de André Lemos (10) para pensar o espaço da cidade atravessado por pontos de conectividade, criando uma espécie de espaço híbrido entre “ciberespaço e o espaço urbano” (11).. Esta configuração híbrida, para a autora, constituiria possibilidades de distintas significações simbólicas em multiterritorialidades (12). Em nossa opinião, a conceituação de Sá (13) sobre multiterritorialidades apresenta uma limitação, ao pensar as diversas territorialidades em questão como formas bem circunscritas e autônomas entre si.

Para a proposta aqui apresentada, parece mais profícuo discutir o fenômeno como produção discursiva de cidade a partir da prática das disposições configuracionais do espaço, seja físico ou on-line, sem distinções estatutárias entre estes (14). Neste sentido, esta produção é única no ato da prática e é única ao praticante. Assim, o objeto central deste trabalho é a produção da cidade a partir de processos identitários. Tomamo-la como territorialização (15), um processo discursivo, porquanto a instauração da cidade se dá por ações de enunciação e, daí, a relevância identitária para o compreender.

Dando-se no âmbito da linguagem e, portanto, em meio social, os processos de enunciação identitária são atravessados por disputas de poder. Imbrica-se portanto à compreensão das reconfigurações da disputa pelo dizer da cidade com a popularização da Internet, que abre novas possibilidades de enunciação, principalmente com o acesso de camadas populares a telefones celulares e assim à rede de computadores. A análise da enunciação na Internet por grupos moradores de favela, à margem da cidade formal, a partir de suas práticas próprias de cidade, é então um modo potente de subsidiar a reflexão sobre a cidade contemporânea em geral.

A cidade física e on-line

É importante refletir sobre o que significa a existência e reprodução do passinho na Internet. Será que o movimento foi dos bailes à Internet? Da experiência do movimento dos corpos no espaço à dança planificada em uma tela bidimensional? Quais são as repercussões de trocas em torno da dança — ordinariamente ententida como se dando no espaço tangível dos corpos — se realizarem agora em grande parte em meio on-line? Esta pergunta é necessária para que se possa pensar uma cidade conectada (16).

Pelo senso comum, haveria uma perda de qualidade na passagem do físico ao on-line, ambiente tratado frequentemente como sinônimo de “virtual”. Examinemos algumas definições de dicionário para “virtual”: “1. Que não existe como realidade, mas sim como potência ou faculdade. 2. Que equivale a outro, podendo fazer as vezes deste, em virtude ou atividade” (17)”. A palavra se difundiu com as tecnologias computacionais: realidade virtual ou mundo virtual são expressões coloquialmente utilizadas para se referir ao mundo em jogos ou páginas da Internet, de uma realidade simulada por computador, e carregam em si uma ideia de existência não real, em oposição ao modo de existir do mundo material; este, aí sim, seria completamente real (18). O emprego de do termo “virtual” como sinônimo de “irreal” oculta, assim, a materialidade das relações sociais contemporâneas, que são transformadas e reproduzidas pelo ciberespaço em mesma medida que o constituem.

Mesmo para a ciência, a centralidade do conceito de espaço é tão grande que o espaço físico é tomado por vezes como essencial, absolutamente real, assumindo oposição a usos do termo “espaço” para se remeter a outras coisas. Milton Santos, ao conceituar o espaço para a geografia, baseia-se na ideia de que o espaço que nos cerca é essencialmente real, opondo esta "realidade constitucional do território" a outros usos do termo, que teriam caráter metafórico (19). O crescente uso das tecnologias comunicacionais ameaçaria este território essencial, ao provocar uma suposta evasão deste. Para Pierre Levy (20), o crescimento no uso destas tecnologias representa um processo de virtualização do mundo, de desterritorializações devidas ao êxodo do espaço físico ao espaço dito virtual. Gera-se uma suposta desconexão em relação ao meio físico, na medida em que empresas, órgãos governamentais ou lojas tomam presença no meio on-line. Estas existências, em termos geográficos, não teriam posição, isto é, não se pode dizer onde estão. O território como conceito da geografia, remetendo a uma porção do espaço físico, perde em alguma medida a capacidade explicativa sobre seu objeto.

Tomando-se, por outro lado, a noção de que o mundo social, e assim a sua dimensão física, é produzido conforme cada momento histórico em que cada enunciação disputa valores e sentidos do mundo, faz-se necessário retomar a questão da virtualização das coisas em geral e da cidade em particular, se contestando o argumento de que este processo significaria uma desrealização. Não se pode depositar na materialidade tangível da cidade o estatuto de realidade do objeto-cidade se entendendido tal objeto como produto de uma construção discursiva. Propõe-se entender a aparente desrealização pela virtualização como um processo geral de perda de estabilidade de conceitos fundantes da modernidade, tensionados por certas transformações das relações sociais entre as quais estão as novas tecnologias comunicacionais.

Remetamo-nos ao fenômeno que nas ciências espaciais é tratado como desterritorialização (21). Para Frederico Guilherme Bandeira de Araújo (22), a desterritorialização constitui uma perda de estabilidade de conceitos antes bem estabelecidos para tratar o território, dada a polifonia enunciativa da contemporaneidade, em particular remetendo a processos de identificação dos sujeitos. O autor propõe tratar dos fenômenos espaciais pelo conceito de territorialização (em que está compreendido o movimento de des- e reterritorialização), entendido como processo continuado de construção discursiva do signo território. Interessa-nos, aqui, tratar sem dissociação as práticas das disposições conjuntas do espaço tangível e do ciberespaço como territorialização, produzindo um discurso de cidade (como a cidade dos planos diretores ou a cidade para a história são também discursos de cidade, por exemplo).

Não seriam portanto a prática do ciberespaço mais a prática do espaço tangível, mas sim a prática combinada das disposições referidas acima que produziria assim a espacialidade própria da cidade contemporânea, da cidade conectada. Convém lembrarmos Michel de Certeau (23), para quem a espacialidade ocorre a partir da prática do lugar, e não é o lugar uma elaboração específica sobre o espaço. Não é uma característica própria pré-determinada por uma configuração, mas sim resultante da prática de uma determinada configuração: espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou proximidades contratuais (24).

O espaço nesta abordagem é existencial e, portanto, haveria "tantos espaços quanto experiências espaciais distintas" (25); uma concepção distinta de um espaço geométrico ou de espacialidade homogênea e isótropa. O lugar, para Certeau, é a ordem pela qual se dispõem elementos em relação de coexistência. Na abordagem aqui proposta, seria a ordem das disposições tanto materiais quanto cibernéticas que estabelece um próprio de relativa estabilidade.

Em Certeau, sobre o estabelecimento de um lugar operam dois tipos de ação, estratégias e táticas. Estratégia seria um gesto cartesiano, "gesto da modernidade científica, política ou militar" (26). Este gesto "transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar, medir, controlar" (27). Certeau explicita que, no ato de cortar este lugar próprio do outro, existe aí ainda a característica de que este "lugar do poder" não é em si de onde emana o poder, mas é instituído por este último.

Pode-se incorporar aqui a ideia de desterritorialização proposta por Gilles Deleuze e Felix Guattari (28) que não tem uma conotação espacial, mas que é completamente aplicável em uma interpretação discursiva do território geográfico. Para os autores, a desterritorialização configura linhas de fuga de um lugar próprio, de uma ordem estruturadora. A desterritorialização é o movimento de ruptura da estabilidade de um significante com seu objeto. É "aumentar seu território" pelas multiplicidades de linhas de atualização, de múltiplos objetos e múltiplos significados. A prática de uma cidade conectada pelos dançarinos de passinho seria então uma forma de existir frente à ordem instaurada pelos poderes estabelecidos, construindo a cada ato nesta cidade conectada uma territorialização que ressignifica aquilo que é reconhecidamente hegemônico.

Entendemos então a crescente relevância de práticas on-line como tensionando e oferecendo linhas de fuga à ordem espacial que vigorava até a popularização da Internet — e nesse sentido até se pode afirmar que ocorre uma desterritorialização, um desfazimento do signo território; mas este movimento é sempre acompanhado de uma reterritorialização, ou seja, o refazimento do conceito incorporando, agora, a pluralidade de práticas on-line ou não, indissociáveis.

Moleque de mola: a dança constituída na cidade

Pode-se olhar para o passinho como, simplesmente, um estilo de dança, passível de ser sistematizado em um léxico, ainda que aberto, de movimentos corporais, ritmos musicais a que é dançado etc. Mas se pode também, em perspectiva que nos parece mais interessante neste trabalho, entender o passinho como uma prática viva, cujos parâmetros estão em constante negociação no agenciamento daqueles que a praticam. Esta prática entende-se então não apenas como a dança isolada, mas sim dança que é dançada, filmada, compartilhada, reproduzida, consumida e ainda o rol de elementos simbólicos que a acompanham em vestimentas, conjunto de gírias… Tomada deste modo, a prática do passinho se torna chave para entender uma forma de existir e produzir a cidade contemporânea, já que estas práticas não existem nem sem seu aspecto tangível, no território físico, nem sem seu aspecto on-line.

Uma das características das mídias comunicacionais na Internet, em relação àquelas caracterizadas como mídias de massa (como rádio ou televisão), é a liberação do pólo de emissão (29). Esta liberação se trata da descentralização das possibilidades de discurso, esvaziando relativamente a centralidade de grandes agentes midiáticos, para serem pulverizadas em dizeres plurais, dadas as possibilidades de enunciação estendidas aos diversos usuários no ciberepaço. Para Don Slater (30), esta difusão das possibilidades de enunciação leva à ao surgimento de novas afirmações identitárias. O desembebimento e a descorporeidade característicos destas novas mídias comunicacionais, para Slater, fazem com que existências no on-line possam ser anônimas quanto a taxonomias socialmente muito relevantes: raça, gênero, orientação sexual… A internet se torna, em seu período inicial, um ambiente em que grupos sociais se organizam em torno de outras questões identitárias auto-afirmadas e passam a tensionar, consequentemente, também no mundo off-line quanto à realidade ontológica dos traços constitutivos de identidades convencionais (31). Esta conceitualização daria conta de explicar o relacionamento dos praticantes do passinho em redes mais agrupadas, mas uma análise de como o passinho carrega em sua prática as disposições de lugar proporcionadas a seus praticantes revela que esta prática não é anônima quanto às condições materiais de existência de seus praticantes e, portanto, tampouco quanto às taxonomias identitárias.

Desenvolvimentos tecnológicos propiciam uma ampliação da esfera de possibilidades de ação, e a possibilidade de acesso a diferentes conteúdos e manifestações próprias proporcionadas pelo uso da Internet provoca uma ampliação da esfera de capacidade de ação dos dançarinos do passinho, mas sempre sob as limitações materiais do mundo, tais como as de funções técnicas dos dispositivos ou o contexto econômico-social de seus praticantes.

O passinho é uma dança extremamente vigorosa e explosiva, dificilmente sustentada por mais do que alguns minutos, perfeitamente adequada portanto a um vídeo filmado em celulares de capacidade limitada. Lembremos que em 2008 os celulares mais populares não tinham grande capacidade de armazenamento ou câmeras muito boas, e mesmo o YouTube oferecia sérios limites à duração dos vídeos, que foi de dez minutos até meados de 2010 (32). Assim se supõe que a tecnologia não seja meramente determinante da prática, mas sim é a prática o exercício das possibilidades ante as disposições para a ação.

E se assim o passinho carrega esteticamente a marca das disposições tecnológicas, ou seja, adquire características adequadas a seu suporte tecnológico, deve também carregar aquelas de um lugar na cidade, com suas próprias disposições materiais e simbólicas: a favela. Pode-se ler nos movimentos do passinho, no seu gingado e movimento das articulações de pernas, o treinamento adquirido por uma vida de viver nos morros do Rio de Janeiro, um habitus (33) que condiciona os corpos que virão a dançar. O lugar da cidade tangível aparece plenamente também nas escolhas de vestimentas e palavras, ritmos, e na prática de compartilhar e consumir vídeos na Internet.

Aperta o play: territórios do passinho

Com o avanço das tecnologias comunicacionais, cada vez mais estamos cercados de telas de computadores. Para Paul Virilio (34), a presença pervasiva de telas e dispositivos computacionais produz um efeito que rompe a localidade da cidade. Contribui para este fenômeno o que sofre a própria arquitetura das cidades, "em que a opacidade dos materiais de construção se reduz a nada" (35): as técnicas de construção empregam mais materiais transparentes e mais superfícies são visualmente transponíveis pela "interface da tela (computador, televisão, teleconferência…)" (36). Diz o autor:

“O que se apaga aqui é a diferença de posição, com o que isto supõe, com o passar do tempo. Privado de limites objetivos, o elemento arquitetônico passa a estar à deriva, a flutuar em um éter eletrônico desprovido de dimensões espaciais, mas inscrito na temporalidade única de uma difusão instantânea” (37).

Para Virilio, a cidade contemporânea se encontraria então na condição de conexão a todo momento a uma rede telemática e aceleração extrema. Esta condição levaria a uma desrealização do espaço (38), como mencionado anteriormente, e assim uma libertação da sua respectiva ordem.

A tese de que o ciberespaço adquira um estatuto autônomo em relação à ordem do espaço físico nos parece de difícil defesa, no entanto. O ciberespaço não dispõe de uma ordem própria; este espaço existe sobre uma estrutura tecnológica hard (de infraestrutura instalada) mas também soft, com algoritmos, programas e protocolos que determinam as possibilidades de relacionamentos (39).

A aparente libertação da ordem rígida do espaço tangível, que oferece a todo momento anteparos e obstáculos à mobilidade, em especial aos mais pobres, levou a uma fascinação de que as Tecnologias de Informação e Comunicação pudessem ser formas de combate à exclusão e desigualdade (40). De fato, autores relacionam ao ciberespaço o advento de uma nova cultura que rompe com a forma como se fazia mídia até então, a referida liberação do pólo de emissão (41).

Advertimos de que esta liberação do pólo de emissão não pode ser tomada como total e irrestrita. No caso que se apresenta aqui, por exemplo, por mais que os vídeos de passinho sejam produzidos e compartilhados por uma pluralidade de indivíduos, eles são postados no YouTube, que tem algoritmos próprios que determinam os limites e possibilidades de formatação, distribuição e visualização destes vídeos. Hoje em dia compreendemos que os algoritmos de distribuição das plataformas sócio-digitais como YouTube produzem um efeito do tipo bolha, orientado pela maximização da acumulação de capital; ou seja, tem tendências contrárias ao da livre circulação de conteúdos que se supunha ser característico da Internet.

Ademais, as condições de acesso aos conteúdos digitais não são isônomas. Bernardo Sorj e Luís Eduardo Guedes (42) realizaram pesquisa sobre o uso e propriedade de computadores e o acesso à Internet em favelas do Rio de Janeiro, buscando contestar a referida tendência de apontar nas Tecnologias de Informação e Comunicação uma possibilidade de combate à exclusão social. O que os autores concluem é que a forma de apropriação dos objetos tecnológicos (velocidade de fechamento do ciclo tecnológico e capacidade de uso) continua construindo uma desigualdade entre pobres e ricos. O mais relevante do trabalho destes autores, para o que nos interessa aqui, é que a forma como as relações de poder se inscrevem na prática da Internet tem um aspecto eminentemente territorial. Com levantamento realizado em 2003, os pesquisadores identificaram que uma parte pequena da população de favelas no Rio de Janeiro à época tinha acesso regular à Internet. Este acesso estava em grande parte vinculado ao uso de computadores em escolas ou centros comunitários e mesmo o aprendizado do uso do computador se dava na maior parte em cursos especializados (43). De qualquer forma, a prática do uso da Internet por parte dos moradores de favela constitui uma territorialização completamente distinta se comparada com o uso da classe média ou dos ricos.

Desde a realização da pesquisa mencionada acima houve a introdução de telefones celulares com capacidade de acesso à Internet, o acesso se popularizou e de certa maneira criou as condições para o fenômeno on-line do passinho. Mas este acesso ainda encontra seus limites nas condições de contratação de um pacote de dados. A maior parte da população brasileira ainda conta com planos de celular pré-pago, com pacotes de dados limitados, segundo relatório TIC Domicílios publicado regularmente pelo Cetic.br (44). Em 2008, quando o primeiro vídeo de passinho se torna popular no YouTube, mais de 90% de quem usava celular, entre as classes C, D e E, utilizava planos pré-pagos. Quase uma década depois, em relatório de 2018, aproximadamente 25% das pessoas desta faixa ainda usa a Internet no celular exclusivamente por pontos de wi-fi, contra menos de 10% de classes A e B (45).

Outro aspecto territorial relevante para a prática do passinho em uma cidade conectada é o controle exercido pelos poderes de estado. Desde o início dos anos 2000 há uma discussão sobre a regulamentação dos bailes funk na cidade do Rio de Janeiro, por estarem associados, no senso comum, à criminalidade. Na primeira década dos anos 2000, o Rio de Janeiro passa por um período de restrições aos bailes, chegando até a uma lei estadual que oferece sérias limitações a este tipo de festa, como exigência de autorização do prévia do poder público e parâmetros proibitivos de infraestrutura (46). Estas ações são tidas como flagrantemente discriminatórias a classes sociais mais pobres por defensores dos bailes. Este período de repressão ao baile funk se mantém por vários anos, embora a lei sofra algumas alterações. Em conjunção e com base nesta lei, os bailes funk passam a sofrer efetiva perseguição policial, e os bailes que começavam a se realizar em regiões de classe mais alta da cidade são empurrados de volta para as favelas, conforme denuncia Hermano Vianna, sociólogo autor do livro O mundo funk carioca, em artigo de 2009:

“Os principais bailes aconteciam em clubes como Cassino Bangu, Mackenzie do Méier, CCIP de Pilares e até mesmo no Mourisco em Botafogo. Todos foram fechados. A polícia empurrou a festa para as favelas, na tentativa consciente ou não de isolá-las dentro das ‘comunidades’. Houve acontecimentos inacreditáveis, até equipamentos sonoros metralhados” (47).

A batida policial a casas de festa fora dos morros acaba por empurrar os bailes para o morro, dificultando assim a troca que poderia ocorrer entre dançarinos de diferentes áreas da cidade pelo encontro nestas festas que deixaram de ocorrer. É justamente nesta época que explode em número de visualizações o vídeo “Passinho foda” (48), em parte como resposta a esse controle estratégico do espaço físico da cidade, em um meio que possibilita as trocas além das circunscrições da localização geográfica. O aspecto territorial identitário, no entanto, permanece na estética e no modo de fazer destes praticantes, ainda que on-line. Não se tratam de práticas simplesmente marcadas por uma questão territorial, se não é a relação com o território um aspecto fundante das mesmas.

Considerações finais

Enquanto são observadas referências de trabalhos que estudam o uso da Internet por populações pobres, como no trabalho “Apropriações low-tech no funk carioca: a Batalha do Passinho e a rede de música popular na periferia” (49) que também estuda o Passinho no Rio de Janeiro em relação às tecnologias comunicacionais, o aspecto do espaço urbano é tratado como cenário suporte do fenômeno. O que se propõe aqui é uma abordagem do passinho como uma prática eminentemente territorial, ou seja, que tem nas disposições espaciais parâmetros fundantes do fenômeno, mesmo em sua ocorrência em ambiente on-line, por um lado, e que tem em sua prática a constituição da territorialidade do espaço da cidade.

O passinho do funk se deu em um momento do Rio de Janeiro em que a cidade se encontrava especialmente pressionada a uma adequação ao modelo cidade-negócio, principalmente atrelada à realização dos megaeventos de que o Rio de Janeiro seria sede, a Copa do Mundo da Fifa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. O ordenamento urbano desigual provocado por esse modelo de cidade afetou em especial as camadas mais pobres da população. Ainda assim, várias das contradições destes eventos está presente no passinho que, apesar de uma prática que tem origem na população que mais sofre com as mazelas de um ordenamento urbano desigual, foi capaz de percolar os estratos dos meios de comunicação e de consumo de cultura e penetrar os espaços institucionalizados e hegemônicos da dança e da arte. O momento máximo desse fenômeno de captura de uma prática periférica é a presença do passinho na programação oficial dos Jogos Olímpicos, tendo a final da Batalha do Passinho daquele ano no palco do Boulevard Olímpico (50).

A publicização do passinho graças à Internet foi central para este movimento, para seu reconhecimento e expansão para além dos circuitos imediatamente ligados ao funk. No entanto, mesmo na Internet mantém, enquanto suas características de prática, a territorialidade de sua origem. Isto aponta para uma leitura do ciberespaço antitética à ideia de esvaziamento locacional; pelo contrário, há mesmo na Internet uma regionalização e territorialização.

Se faz necessário compreender a territorialização da cidade contemporânea como se dando como um processo em que seus aspectos ciberespaciais e seus aspectos tangíveis são indissociáveis. Assim sendo, práticas como o passinho do funk são determinadas pela lógica de que a distribuição e o consumo de material on-line ocorre a partir do território tangível da cidade, cheio de suas contradições e desigualdades, e assim igualmente o ciberespaço é territorializado com classe, raça, gênero… Mesmo tendo penetrado o circuito hegemônico da indústria cultural, o lugar de estilo periférico do passinho se reproduz de maneira discursiva mas fundamentalmente material, nas possibilidades de ação e na identidade de seus praticantes.

Por fim, é necessário observar que, passada uma década e meia de seu auge, a prática do passinho já não tem a mesma relevância nos dias de hoje. O seu caráter efêmero pode ser apreendido por alguns eixos, que apontamos aqui para reflexões futuras. Primeiramente, nos parece que, por ter suas características associadas às características técnicas de seu suporte de mídia, o passinho deixa de ecoar quando a própria mídia se transforma. O YouTube, por exemplo, já ocupa hoje um outro lugar, em que não se observam mais tantas postagens curtas e de baixo grau de produção.

Em segundo lugar, e em conexão com o primeiro, a efemeridade do fenômeno reflete a capacidade que o modo de produção capitalista tem de cooptar, formatar e descartar práticas conforme sua participação no circuito de acumulação, isso se aplicando tanto às práticas culturais quanto à tecnologia. A busca pela inovação e diferenciação, acentuada por processos algorítmicos de modulação, leva à aceleração da adoção e descarte de produtos, sejam estes tecnológicos ou culturais.

Ficamos, ao fim, com a pergunta sobre se resta lugar, na sociedade algorítmica, para a apropriação potente e subversiva da tecnologia, ao estilo faça você mesmo, observada há quinze anos no movimento do passinho do funk.

notas

1
O vídeo “Passinho foda”, disponível no YouTube e acessado em 25 de abril de 2021, contava nesta data com mais de 4,6 milhões de visualizações, às quais se somam outras tantas em endereços alternativos para o vídeo. RODOCO 157. Passinho foda. YouTube, San Bruno, 7 set. 2008 <https://bit.ly/3pz22gd>.

2
SÁ, Simone Pereira de. Apropriações low-tech no funk carioca: a Batalha do Passinho e a rede de música popular na periferia. Revista Fronteiras — Estudos Midiáticos, n.16 (1), São Leopoldo, Unisinos, jan./fev. 2014, p. 28–37.

3
A batalha do passinho. Filme. Direção Emílio Domingues. Rio de Janeiro, Filmes Osmose 2012.

4
A batalha do passinho (op. cit.); SÁ, Simone Pereira de. Op. cit.; No passinho do funk [podcast]. Produção Spotify/Kondzilla <https://spoti.fi/3Mln2jr>.

5
Camarão Preto. A batalha do passinho (op. cit.).

6
A batalha do passinho (op. cit.).

7
CRUZ, Felipe Branco. Dream Team do Passinho investe em música própria em álbum de estreia. UOL, São Paulo, 5 ago. 2015 <https://bit.ly/3I395UN>.

8
SÁ, Simone Pereira de. Op. cit.

9
Idem, ibidem.

10
LEMOS, André. Cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. Revista Matrizes, n. 1, São Paulo, USP, 2007, p. 121–137.

11
SÁ, Simone Pereira de. Op. cit., p. 31.

12
HAESBAERT, Rogério [2004]. O mito da desterritorialização, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2014.

13
SÁ, Simone Pereira de. Op. cit.

14
Refiro-me aqui a diferenças no estatuto de realidade destes distintos espaços, por haver uma discussão na literatura que trata de ciberespaço e o define como uma virtualidade, de algum modo menos real que o espaço físico. Na seção a seguir aprofundo esta questão.

15
ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de. "Identidade" e "território" enquanto simulacros discursivos. In ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de; HAESBAERT, Rogério (org.) Identidades e territórios: olhares contemporâneos, Rio de Janeiro, Access, 2007, p. 13–22.

16
Uma cidade que tem redes telemáticas como elementos que a constituem, como é o caso daquela praticada pelos dançarinos de passinho do funk.

17
MICHAELIS VIRTUAL. Significado de "virtual". Dicionário online Michaelis, 2009 <https://bit.ly/44U08a4>.

18
What is Virtual Reality? Virtual Reality Society <https://bit.ly/3LOyZws>.

19
SANTOS, Milton [1996]. A natureza do espaço. 4ª edição, São Paulo, Edusp, 2012, p. 30.

20
LEVY, Pierre [1995]. O que é o virtual?, São Paulo, Editora 34, 2011.

21
HAESBAERT, Rogério [2004]. Op. cit.; ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de. Op. cit.

22
ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de. Op. cit.

23
CERTEAU, Michel de [1980]. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer, Petrópolis, Vozes, 2012.

24
Idem, ibidem, p. 184.

25
Idem, ibidem.

26
Idem, ibidem.

27
Idem, ibidem.

28
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix [1980]. Mil Platôs. Volume 1. São Paulo, Editora 34, 2011.

29
LEVY, Pierre. Cibercultura. Lisboa, Instituto Piaget, 2000; LEMOS, André. Cidade-ciborgue: a cidade na cibercultura. Galáxia, v. 8, São Paulo, PEPGCOS/PUC SP, out. 2004, p. 129–148.

30
SLATER, Don. Social Relationships and Identity online and offline. In LIEVROUW, Leah A.; LIVINGSTONE, Sonia (org.). Handbook of New Media: Social Shaping and Consequences of ICTs. London, Sage Publications, 2002, p. 533–546.

31
Idem, ibidem.

32
KINCAID, Jason. YouTube Begins to Remove Its Video Time Limits. TechCrunch, 9 dez. 2010 <https://tcrn.ch/3nTFFkY>.

33
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2003.

34
VIRILIO, Paul [1984]. O espaço crítico. São Paulo, Editora 34, 2014.

35
Idem, ibidem, p. 9.

36
Idem, ibidem, p. 9.

37
Idem, ibidem, p. 9–10.

38
O autor se refere aqui ao espaço físico.

39
GALLOWAY, Alexander. Protocol: how control exists after decentralization. Cambridge MA, MIT Press, 2004.

40
SORJ, Bernardo; GUEDES, Luís Eduardo. Internet na favela: quantos, quem, onde, para quê. Rio de Janeiro, Gramma, 2005.

41
LEVY, Pierre. Op. cit.; LEMOS, André. Op. cit.

42
SORJ, Bernardo; GUEDES, Luís Eduardo. Op. cit.

43
Idem, ibidem.

44
Cetic — Portal de Dados <https://bit.ly/42rsqqQ>.

45
Idem, ibidem.

46
LAURIANO, Carolina. Liberação de baile funk não é caso de polícia, dizem organizadores. G1, Rio de Janeiro, 26 ago. 2008 <http://glo.bo/44VAUbs>.

47
VIANNA, Hermano. O funk proibidão. Overmundo, 21 jul. 2009 <https://bit.ly/42wf9x6>.

48
RODOCO 157. Op. cit.

49
SÁ, Simone Pereira de. Op. cit.

50
Final do concurso do Passinho será no Boulevard Olímpico, no Centro. G1, Rio de Janeiro, 20 ago. 2016 <http://glo.bo/42oztjU>.

sobre o autor

André Cavedon Ripoll é arquiteto e urbanista formado pela UFRGS (2012), com mestrado em Planejamento Urbano e Regional (2016) pela mesma instituição e doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ (2021). É professor no curso de Desenho Industrial na Escola de Engenharia da UFF, desenvolvendo como tema de de pesquisa a relação entre tecnologia, política e sociedade.

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