Dentro da construção narrativa da arquitetura moderna — apoiada em ideologias desenvolvimentistas colonial/modernas—, as teorias arquitetônicas sempre elaboraram conceitos sobre forma, materiais e sobre a imagem de edifícios e cidades. Muitas destas teorias, entretanto, por muito tempo têm agido com certo afastamento sobre um ator essencial: o cliente. Olhar criticamente para quem contrata um trabalho arquitetônico é também, em certa medida, olhar para qual filosofia está implicada na estética resultante, demandada por este contratante. Por muito tempo e ainda em muitos graus atualmente, os clientes de projetos de arquitetura foram homens, brancos e de classe média/alta. Não apenas, mas também porque historicamente arquitetura foi concebida como ferramenta utilizada para expor noções de poder e institucionalização. Se por um lado analisar de forma individualizada a contratação de um projeto específico diz pouca coisa, é importante olhar para o que isso, como estrutura, condiciona dentro do campo prático e do entendimento mais amplo de arquitetura.
Isolar arquitetura da ideia de consumo pode ser uma ferramenta para fugir da interferência do mercado sobre ideologia impregnada na obra. Porém trazer à tona a presença de um contratante, embora possa remeter a esta ideia de consumo, permite entender em especial no caso da arquitetura — onde o produto final será habitado — que esta agência precisa ser encarada de frente. Tomar esta postura pode permitir revelar uma série de questões sobre o processo e estética resultante. Tomando de saída um olhar decolonial e transferindo a análise para um contexto realista capitalista, torna-se possível inclusive desvelar questões de classe e de raça implicadas. Como uma prática social aplicada que dialoga intensamente com a arte, o financiamento é imprescindível para sua existência, mas também para o entendimento dos princípios, gostos e vontades específicas incutidas em si. Princípios estes, em geral difundidos por um regime de imagens hegemônica através da grande mídia.
É importante inclusive pontuar que assim como as práticas científicas e técnicas, o campo visual hegemônico acompanhou o movimento de secularização da religião, tendo a ciência e a racionalidade como condutoras da verdade. Esta visão cientificista segue caráter monocultural pretensamente neutro. Tal conduta, que carrega em si uma um aparato ideológico eurocentrado, se apresenta também através de um regime ético da imagem (1), neste artigo abordado como estética (2). A fim de problematizar tal estética, historicamente atrelada a movimentos desenvolvimentistas globais e para além de problematizar, provocar um giro propositivo, faz-se necessário aqui territorializar a análise para que seja possível pensar caminhos de uma práxis efetiva para a decolonização.
Como forma de fincar o olhar, a arquitetura do Rio de Janeiro foi trazida como estudo de caso. Uma particularidade se faz necessária ser pontuada: por ter sido por muito tempo a capital do Brasil, em especial no período de estadia da monarquia portuguesa, o rio de janeiro sempre sustentou ares de superioridade aristocrática eurocêntrica. Sendo um ótimo exemplo para pensar nos efeitos da colonização e posteriormente, da modernidade colonial.
A arquitetura carioca desde o momento de colonização espelhou modelos europeus, seja no processo de aclimatação (3) da arquitetura portuguesa, ou na importação de ornamentos em art-déco franceses (4). Toda linha referencial que se monta para a produção de arquitetura, é importante dizer, sempre esteve suportada por uma epistemologia da colonialidade, pautando noções qualitativas sobre a ideia de superioridade racial.
“A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal” (5).
No primeiro momento colonial, os contornos racistas eram mais explícitos, uma vez que que atrelavam a qualidade da produção portuguesas à estética própria a partir da raça.
“Costa creditava a impossibilidade de formar um estilo arquitetônico nacional ao caráter miscigenado da população brasileira. ‘Não vou ao extremo de achar que já devíamos ter uma arquitetura nacional’, diz Costa, ‘naturalmente, sendo nosso povo […] de raça ainda não constituída definitivamente, não podemos exigir uma arquitetura própria, uma arquitetura definida’”.
Ao traçar uma relação genealógica entre raça e arquitetura, Costa afirmava que o estilo nacional só poderia ser alcançado com o branqueamento da população por meios de políticas migratórias eugênicas” (6).
Em um momento de virada moderna, entretanto, esta burguesia que contratava projetos arquitetônicos passou a se alinhar com a promoção de uma estética progressista (7) norte-americana e seu american way of life. Embora com menos força da presença étnica na narrativa (8), o referencial ao norte global permaneceu como instrução para uma boa prática.
Desmontar desta estética o caráter neutro e universalizante é importante para pensar em possibilidades para uma mudança de direção da prática-crítica. Especialmente porque o campo arquitetônico cumpre função essencial na construção desta narrativa. Sendo quem compõe o laboratório visual da existência no mundo ela mesma, circundando a presença e se estabelecendo como certa neutralidade, uma vez que a experiência sobre o espaço é quase sempre de percepção periférica, diferenciando-se de outras artes às quais nos captam em momentos específicos para sua contemplação e reflexão crítica.
Ao consultar fontes de repertório de projetos considerados pertencentes a “boa arquitetura” (9) produzidos na cidade do Rio de Janeiro, torna-se flagrante a localização em territórios específicos desta prática arquitetônica. Mais ainda, o mapeamento e a publicação como braços fundamentais da produção de uma lógica profissional reincidem em lançar luz a projetos localizados em um recorte territorial elitizado. Para extrair deste mapa uma imagem mais subjetiva da composição social e racial do Rio de Janeiro, dados sobre valor do metro quadrado — R$/m² — e composição racial foram sobrepostos à localização dos projetos de arquitetura. Para além disso, foram levantados também projetos de habitação considerados de interesse social. O contraste na escolha explicita também como estes são projetados e entendidos apenas como repositório de mão de obra e local de reprodução (10). Não pertencendo, portanto, a uma categorização de projetos considerados referência dentro do campo.
Mapeamento da Produção da Arquitetura/Habitacional em dois recortes temporais, sobrepostos no primeiro mapa ao valor do solo (11) e no segundo mapa a porcentagem da população negra presente no território (12):
Escola Carioca (13) x Instituto de Aposentadorias e Pensões (IAPs) (14) — 1935 a 1960
Nova Arquitetura Carioca (15) x Programa Minha Casa, Minha Vida (16) (MCMV) — 2008 a 2016
Elaboração Larissa Monteiro
A agência que se coloca em todo processo de contratação dos projetos mapeados é também um atributo a ser observado. Enquanto projetos localizados em recortes mais ricos e brancos da cidade foram assinados por arquitetos de renome, nos projetos de habitação, localizados nas áreas mais pobres e negras, toda lógica de concepção projetual se reduz à estandardização — caso do Programa Minha Casa, Minha Vida — MCMV, ou em processos em que a autoria — Instituto de Aposentadorias e Pensões — IAPs — muitas vezes não é sequer citada (17), já que o valor de troca prevalece ao valor de uso (18).
Entender a agência por trás da contratação através dos dados territoriais colocados, abre possibilidade de compreender a importância da percepção do cliente: havendo inclusive distinção entre contratante e o usuário final. No caso dos projetos efetuados em áreas centrais, é evidente a influência da arquitetura europeia produzida naquele momento, no caso dos projetos em áreas periféricas, é possível observar um descolamento da preocupação estética e enfoque nas questões estritamente resolutivas. Neste sentido, a priorização da subjetividade estética do projeto a depender do território/perfil de cliente se torna evidente. Portanto todas estas questões interferem diretamente para demandar soluções projetuais e estéticas.
Em se tratando de arquitetura carioca e da sua maior expoente, a Escola Carioca (19), racializar esta produção como atrelada à uma branquitude de ideologia pretensamente neutra torna-se urgente para ampliar a possibilidade de produção e democratização do campo. É inclusive visível a pouca interação dos grupos de vanguarda arquitetônica carioca ao lidar com a produção de habitação no recorte de culturas não-brancas ou periféricas, consideradas “de interesse social”. Estas seriam oportunidades genuínas de lidar com repertório cultural proveniente de uma cultura iminentemente vernacular e atrelada ao cotidiano e soluções da maioria da população, ampliando o horizonte das manifestações culturais das quais estavam até então habituados (20). Por outro lado, é importante diferenciar esta produção de arquitetura daquela proveniente do mercado implicado com a mera solução resolutiva para fins de venda. De qualquer forma, em ambos os lugares, seja na possibilidade de guiar ideologicamente a boa-arquitetura, ou na posse de meios de comercialização de moradias, ignorar a complexidade cultural implicada nestes sujeitos, é reiterar a lógica neutralizante da presença do sujeito, além de reforçar o apagamento cultural que rege noções estéticas. Como diria Grosfoguel sobre tal neutralização:
“Trata-se então de uma filosofia na qual o sujeito epistêmico não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade língua, nem localização epistêmica em nenhuma relação de poder, e produz verdade desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si. Isso trata-se de uma filosofia surda, sem rosto e sem força de gravidade. O sujeito sem rosto flutua pelos céus sem ser determinado por nada nem por ninguém […]. Será assumida pelas ciências humanas a partir do século 19 como a epistemologia da neutralidade axiológica e da objetividade empírica do sujeito que produz conhecimento científico” (21).
Em seu artigo “Black Vernacular: Architecture as Cultural Practice” (22), Bell Hooks explicita como a escassez material se converte em uma narrativa política, que insiste em associá-la a falta de repertório estético. Essas atribuições ideológicas são também parte do arcabouço ferramental colonial/moderno que reincide em atrelar noções de precarização a indivíduos subalternizados, utilizando-os inclusive como gradação qualitativa para uma prática arquitetônica que existe para além destes. Vale destacar que toda essa composição se atrela a uma geometria de poder específica: indivíduos que foram sistematicamente jogados para uma posição de insuficiência material a partir de aparatos estruturais do sistema capitalista, são lidos posteriormente como desprovidos de cultura e/ou inferiorizados intelectualmente. Neste sentido, cabe aqui ampliar a análise para compreender como o debate internacional sobre arquitetura vem guiando tais percepções da questão da escassez material.
Retomando o olhar para o âmbito global, é interessante contrapor a postura das práticas do escritório Francês Lacaton & Vassal e do escritório equatoriano Al Borde, entendendo as suas respectivas experiências em relação aos contextos inseridos. Em um contexto europeu de excesso de recursos e desperdício de materiais, os arquitetos Anne-Lacaton e Jean-Philpipe Vassal decidem guiar as decisões projetuais sobre as condições ambientais, espaciais e da temporalidade do uso em detrimento da expressão plástica como condicionante do projeto. Importante notar como o contexto de constantes demolições de conjuntos habitacionais em busca de uma imagem que acompanhe a modernidade no território Francês é preponderante para esta tomada de postura. A difusão da teoria implicada na escolha pela redução de recursos deste escritório europeu é tida como produção teórica, tomando contornos contrários aos contornos comumente observados nas práticas territoriais que lidam diariamente com a redução de recursos, como na autoconstrução que ocorre em favelas e periferias do sul global.
Em sentido oposto, baseado no Equador, o escritório Al Borde constantemente reforça a necessidade de pensar a estética através do material disponível. Além, obviamente de uma arquitetura que promova condições ambientais e espaciais necessárias à vivência, pensar imagem em contextos onde a falta não é escolha, mas condição, torna-se além de tudo, uma postura política de emancipação cultural. Se por um lado é importante que escritórios do centro hegemônico global renunciem à construção da imagem como uma proposição universal e realidade neutra, por outro lado, pelo histórico da colonialidade presente na formação intelectual inclusive dos centros de ensino dos países periféricos, no sul global as teorias presentes em escritórios europeus ainda ecoam fortemente. Apesar de negar a produção estética, seu impacto se mantém, embora acidental, como reprodução tácita tanto dos discursos quanto da imagem que carregam com ele. Entender a arquitetura como uma disciplina e ferramenta que pode se adequar de forma mais harmônica a diferentes contextos culturais, de matrizes raciais diversas, é também desmontar a ideia colonial de que um dia pode-ser vir a ser como um outro país considerado de primeiro mundo (23). Como Marina Waisman diz:
“Enquanto o centro manteve sua força, os povos da América Latina apareceram necessariamente como marginais no sistema de produção cultural da arquitetura. […] As dificuldades enfrentadas não são poucas: em culturas arquitetônicas inseridas em uma tradição de descontinuidades, rupturas, de constantes irrupções de ideias de alheias no desenvolvimento local, não é fácil definir a própria identidade” (24).
Em um caminho contrário e pensando possibilidades de encaminhamento para o campo arquitetônico, talvez seja necessário se aprofundar na produção própria das periferias do sul global. Se o ensino de arquitetura nunca será decolonial porque suas referências há muito tempo são coloniais (25), no sentido tanto do colonialismo, quanto da modernidade colonial, uma possibilidade talvez seja sair do campo, para então voltar a ele. Esta é também uma importante ponte para dialogar e criar laços com um perfil de cliente que, dentro de um construção elitizada da prática, produziu-se forte e sistemático afastamento. Para aprofundar uma compreensão do campo, caminhar ao lado de práticas artísticas marginais à arte hegemônica, pode ser uma forma de sair dos condicionamentos referenciais do campo arquitetônico, para tencioná-lo e expandi-lo. Neste sentido, os movimentos literários e artísticos podem funcionar como ponta de lança para uma nova construção prática-crítica.
Em “Cavalo”, Tainan Cabral e Raphael Medeiros atrelam a um elemento construtivo próprio das favelas, a barricada, cores e fumaça colorida, provocando uma espécie de quebra espaço-temporal da percepção funcional e imagética deste elemento construtivo. Desta forma, ao provocar uma intervenção quase mágica, retomam o realismo fantástico (26) como forma de provocar poesia a partir do deslocamento de uma presença banal e comumente inferiorizada por suas problemáticas sociais. Já em “Da minha Laje Converso com Mundo” de Hebert, a experiência deste espaço central da vivência periférica/favelada é exaltada como potência com a soma de atributos também fantásticos na montagem do quadro — como o céu laranja que dialoga de volta —, estando a laje quase em segundo plano, diferente das visões comumente estereotipadas que representam este espaço.
Dentro do campo da arquitetura, algumas iniciativas começam a apontar formas de fazer e pensar junto a partir da vivência e da estética das favelas e periferias. Presentes em territórios periféricos ou favelados, dialogam diretamente com um aparato cultural de um novo perfil de cliente: O Centro Cultural lá da Favelinha e a Casa no Pomar do Cafezal, do Coletivo Levante (27) são possibilidades de pensar uma arquitetura que dialogue com a presença de culturas, nos modos de viver e expressões visuais historicamente marginalizadas pela presença de uma visualidade da branquitude hegemônica.
A Casa Vila Matilde, do escritório Terra e Tuma, que incorpora todo o modus operandi do faseamento da construção, deixando-a finalizada ainda que sem revestimento, mas podendo proceder a alterações posteriormente. E ainda, no contexto latino-americano, La Cabina de La Curiosidad, que constrói sua estética a partir de uma epistemologia da gambiarra, do fazer com as mãos (28).
Para além de problematizar a herança da colonialidade como forte constitutiva do que se entende como prática arquitetônica, é também necessário pensar na construção propositiva de uma contra narrativa visual para o campo da arquitetura. Se a colonialidade como estrutura achata as possibilidades de narrativas diversas sob a proposição de uma ideologia neutra, um primeiro ponto para contestar sua hegemonia na prática é a racialização da branquitude como lugar de produção deste pensamento que se pretende hegemônico. Visando, com isso, o fim da prática de subalternização das práticas culturais que não são produzidas pela burguesia. Para além disso, é importante também contrapor a hegemonia global não apenas questionando-a como já vêm fazendo diversos pensadores respeitados no campo da decolonialidade, mas através do reconhecimento de potencias nas expressões locais e no diálogo com os diversos campos que emergem na produção destes territórios.
notas
1
Em A partilha do sensível, Jacques Rancière elenca e descreve três regimes de arte da tradição ocidental: regime ético de imagens, regime poético (ou representativo) e estética. Neste trabalho, a partir da difusão e esgarçamento do uso da palavra estética, considera-se uma metonímia a utilização desta para denominação de todo um regime específico, a saber, o terceiro regime de arte, uma vez que todo campo visual é popularmente conhecido como estética. Por questionar a ideia de neutralidade da visualidade aplicada a ao conceito de estética — no terceiro regime por rancière, neste artigo a palavra estética deve ser lida com um alinhamento ao primeiro regime de arte por ele proposto: regime ético de imagens. Contudo, deve-se estar atento ao reposicionamento destes conceitos, que neste caso foram deslocados do campo das artes para o campo da arquitetura, que dialoga fortemente com a visualidade e comunicabilidade artística, mas mantém-se como ciência social aplicada. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. 2ª edição. São Paulo, EXO Experimental Org./Editora 34, 2009.
2
Idem, ibidem.
3
Trazendo como fortes exemplos desta prática, a Fazenda Colubandê em São Gonçalo, Fazenda Viegas em Senador Camará e Fazenda Capão do Bispo em Del Castilho apresentam fortemente incorporação de elementos mais apropriados ao clima tropical, como os beirais e a varanda perimetral. Ao mesmo tempo que incorporam tais elementos, estas arquiteturas mantém uma linguagem contínua ao dito estilo colonial, que buscou manter a linhagem estética trazida de Portugal. José Marianno utilizou o termo “aclimação” para denominar este processo como forma de propor uma continuidade dos valores culturais estéticos lusitanos, tornando-os nesta narrativa (bem como constituição material) gênese da “arquitetura tradicional brasileira”. Ver: A evolução da arquitetura brasileira. O Jornal, Rio de Janeiro, 3 jan. 1929, p. 2.
4
Neste sentido, o Solar da Marquesa de Santos é exemplo do que se buscou como aproximação a ornamentação francesa. Com uma sofisticação peculiar se comparada a arquitetura colonial produzida até então, o Solar foi desenhado com propósito de acolher eventos da Corte Portuguesa. Com contornos estritamente europeus, possui finalidade mais de representação que de fato expressão de valores estéticos próprios
5
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul Global. São Paulo, Cortez, 2010, p. 73.
6
TAVARES, Paulo. Lucio Costa era racista? Notas sobre raça colonialismo e a arquitetura moderna brasileira. São Paulo, N-1 Edições, 2022, p 55-56.
7
Arquiteturas como Casa das Canoas de Oscar Niemeyer e casas de alto padrão com grandes cortinas de vidro como Casa Carmem Portinho de Affonso Eduardo Reidy, ganham grande projeção neste momento. Denominar este tipo de arquitetura como de “estética progressista” aqui está ligada ao momento e ideologia com a qual dialogam. Seguindo o uso massivo de concreto armado, exploração de curvas e grandes aberturas de vidro, estavam a serviço de expressar a estética possível de alcançar com tecnologia de ponta do tempo. Tecnologia esta, disponível para aqueles que tinham recursos financeiros para bancá-la. Neste sentido, era novamente atrelada a uma ideologia de classe/raça desenvolvimentista, chamada portanto, progressista.
8
“Na transição do colonial para o moderno, o que permanece é o valor simbólico da casa-grande como expressão da tradição e ao mesmo tempo referência da modernidade. Esta ideia não pode ser dissociada do elemento racial que lhe informa, seja aberta ou silenciosamente, expondo assim os alicerces ideológicos de um imaginário de modernidade nacional que, ao final, se quer branco e ocidental”. TAVARES, Paulo. Op. cit., p. 69.
9
Os dados do mapa sobre produção da “boa arquitetura” foram extraídos da edição Escola Carioca da Revista Monolito; o conceito de nova arquitetura carioca se baseou nas entrevistas promovidas por Pedro Rivera no Centro Carioca de Design, em 2013. Estas bases são importantes como levantamento prévio pois possuem importante função de publicização e delimitação do escopo de uma prática aclamada criticamente. Sendo, desta forma, uma maneira de guiar tanto o olhar dos escritórios comprometidos com a prática, quanto dos ateliês de ensino.
10
Em “A maldição dos recursos”, Eric Macedo posiciona a relação centro-periferia sob a ótica da acumulação de capital versus extração de recursos. Pode-se dizer aqui que na manutenção das metrópoles essa configuração se dá a partir do trabalho assalariado. Deste modo, a constituição formal destes espaços urbanos é simplesmente pensada para estoque de um recurso primordial nos grandes centros urbanos: a mão de obra.
11
Os dados sobre valor do m² do solo foram extraídos da plataforma de IPTU da Prefeitura do Rio de Janeiro e podem ser acessados em <http://www2.rio.rj.gov.br/smf/siam/logradouro.asp>.
12
CASA FLUMINENSE. Mapa da Desigualdade. Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 13 <https://bit.ly/3X37ogH>.
13
Edição temática Escola Carioca. Arquitetura Moderna no Rio de Janeiro. Revista Monolito, São Paulo, fev./mar. 2016, p. 148-149.
14
A localização de IAPs foram resultantes de levantamento próprio, através de saídas de campo e observação por ferramenta Google Maps.
15
COLUMBIA GSAPP. Teaser | Nova Arquitetura Carioca | Studio-X Rio. YouTube, San Bruno, 24 jun. 2013 <https://bit.ly/4fVNOLZ>.
16
SANTOS, Janaina Matoso. Direito à moradia e localização urbana: reflexões sobre o Programa Minha Casa Minha Vida na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Prourb FAU UFRJ, 2015, p. 166.
17
Cabe mencionar que a autoria não é o mais importante em si, mas um sintoma. Dentro do processo colocado de produção arquitetônica, a autoria é comumente ignorada quando o projeto não é pensado incorporando a preocupação com a qualidade final. Desta forma, tais projetos costumam servir apenas com valor de troca e não de uso.
18
Dentro do sistema capitalista o valor de uso não exclui valor de troca, mas o primeiro é convertido quantitativamente no segundo, sobrepondo sua importância e transformando objetos em mercadorias. No caso específico da moradia produzida pelo mercado imobiliário carioca para atender famílias de baixa renda, pode-se dizer o valor de uso é basicamente desconsiderado. Esta afirmação baseia-se no fato de que todas as condições subjetivas como cultura do modo de viver, estética, conforto etc. são desconsiderados, levando-se em consideração apenas regulação edilícia e qualidades técnicas. Neste sentido, é possível dizer que apenas o estritamente necessário é posto em prática neste tipo de construção, para atender apenas ao propósito de venda, ou seja, incutindo apenas valor de troca.
19
Todo o repertório arquitetônico construído desde o seminal edifício do Ministério de Educação e Saúde, desenhado por Lúcio Costa e equipe e a produção imobiliária do período assinado por este mesmo grupo de arquitetos, imprime características estéticas específicas da vanguarda europeia. Apesar das edificações em si serem produto material suficiente para entender este repertório estético, é importante também atentar para como a crítica arquitetônica e as referências narrativas e historiográficas ainda hoje são difundidas sobre este momento: “A Escola Carioca foi desenvolvida entre os anos de 1930 e 1960 por projetistas atuantes no Rio de Janeiro. Sua receita mesclava passado nacional com a vanguarda europeia ou, em outras palavras, combinava pormenores luso-brasileiros (como treliças, azulejos e telhados) com o repertório de Le Corbusier (pilotis, brise-soleil e planta livre, por exemplo) […] projetaram em dois anos cerca de dez obras tributárias da vanguarda europeia — com linhas retas, cores fortes e janelas horizontais. […] O desenho da sede da ABI continha elementos associados à cartilha de e Corbusier, como a planta livre, pilotis e o brise-soleil, utilizado para proteger as aberturas com maior incidência do sol”, afirma Fernando Serapião. Todo esse aparato intelectual e cultural é não somente fruto, mas também fundante de uma forma de pensar arquitetura que busca um diálogo intrínseco com uma produção fundada na branquitude-européia como norteadora da matriz mais avançada de pensamento. Apesar dos frutos da Escola Carioca como produto de design não serem estritamente reconhecidos como continuidade pedagógica, sua estrutura ideológica se mantém até hoje como grande herança, na busca pelo repertório europeu como forma de pensar. O diagnóstico da rasa presença do estudo das propriedades de design próprias desta escola é inclusive sintomático da reincidência em buscar referências externas — há de se pontuar, da burguesia européia “norteadoras”, em stricto senso, para a prática.
20
Neste sentido, há de se evitar romantismo anacrônico: se ainda hoje a produção arquitetônica reincidentemente toma posturas autoritárias e colonizadoras em territórios vulneráveis, é difícil acreditar que em momentos de ápice de uma ideologia marcada pela ideia do modernismo salvador, tomaria postura diferente. Entretanto é importante apontar para a falta de comprometimento com a possibilidade de encontro entre culturas, distanciando inclusive a possibilidade de perceber a cultura pautada pela branquitude como não universal.
21
GROSFOGUEL, Ramón. (2007). Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalismo transmoderno decolonial desde Aimé Césaire hasta los zapatistas. In Castro-Gómez, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores, 2007, p. 64-65
22
HOOKS, Bell. Black Vernacular: Architecture as Cultural Practice. In Art on My ind: visual politics, 1995, p. 145-151.
23
GALEANO, Eduardo. Ser como ellos. El capitalismo visto desde la periferia. In Ser como ellos, 2022, p. 105-110.
24
WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo, Perspectiva, 2013, p. 86-87.
25
BALTHAZAR, Ana. Não existe arquitetura decolonial porque não existe ensino de arquitetura decolonial. Insurgências decoloniais, 2020, p. 121-136.
26
Vertente artística latino-americana, que se expressa mais fortemente através da literatura, onde elementos banais do cotidiano se mesclam a eventos e elementos, tratados com expressiva naturalidade.
27
Coletivo de arquitetos baseado em Minas Gerais focado na elaboração de projetos em favelas e periferias.
28
Apesar de ambientada no Equador, a prática de escritórios como La Cabina de La Curiosidad e Al Bore traçam estrita relação com os contextos de periferias urbanas brasileiras. Para entender “epistemologia da gambiarra”, é fundamental conhecer o pensamento do geógrafo Milton Santos e mais recentemente, do escritor Luis Antônio Simas. Em 1997 já dizia Milton Santos: “O pobre é sempre sábio, porque ele conhece a experiência da escassez. Que só agora a classe média começa a conhecer. A experiência da escassez é o caminho da descoberta, do que eu valho realmente. Esse caminho da escassez que todos os dias se renova, porque aparentemente eu deixo de ser pobre hoje, amanhã eu volto a ser pobre outra vez, porque, como no caso do Brasil, essa redução da pobreza não é estrutural.” Sobre a prática de superação cotidiana da escassez e as formas de subverter as condições de precariedade para as quais a população é frequentemente empurrada. A ressalva recente de Simas sobre essa fala, é importante para não confundir a subalternização da cultura periférica com a romantização da precariedade: “O Milton Santos, o grande geógrafo, falava da sabedoria da escassez. Como é que em algumas situações de escassez você constrói formas de vida que, ao superar a escassez, inventam novos sentidos para o mundo. Isso não é romantizar o precário, porque o precário não tem que ser romantizado, é um horror. Mas ter a dimensão que incessantemente a vida aqui foi o tempo todo reconstruída a partir do precário, nas brechas da violência”. É importante, desta forma entender que a estratégia, a lida e a estética resultante estão, desta forma, diretamente relacionadas com a inteligência da subversão e reconstrução, com o construir do encantamento do cotidiano.
sobre a autora
Larissa Monteiro é arquiteta e urbanista pela FAU UFRJ (2021), com experiência com pesquisa independente e ativismo na periferia carioca. Coorganizadora da mostra Noix.