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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Aborda-se o fenômeno de neo-ruralismo, discernindo os agentes estudados na década de 1970, daqueles com vocações transicionais e agroecológicas, relevando atribuições de prosperidade socioambiental diante do estado de colapso.

english
The phenomenon of new ruralities is approached, discerning the agents studied in the 1970s, from those with transitional and agroecological vocations, revealing attributions of socio-environmental prosperity in the face of the state of collapse.

español
Se aborda el fenómeno de nuevas ruralidades, discerniendo los agentes estudiados en la década de 1970, de aquellos con vocación transicional y agroecológica, revelando atribuciones de prosperidad socioambiental frente al estado de colapso.


how to quote

BRIZOTTI, Bruno Pinheiro Balestrin; LUZ, Vera Santana. Considerações sobre novas ruralidades em transição e agroecológicas. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 288.02, Vitruvius, maio 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.288/8989>.

Discute-se o conceito de neo-ruralismo, ou novas ruralidades, considerando a diversidade de sua organização socioespacial, tendo como perspectiva as noções de transição societal e agroecologia (1). Entende-se agroecologia, neste contexto, a partir de Sérgio Botton Barcellos (2), como o vínculo de conhecimentos tradicionais de povos originários, camponeses e agricultores com saberes e práticas tecno-científicas sustentáveis de agricultura. Segundo Danièle Hervieu Léger (3), o tema neo-ruralismo se articula às especificidades dos agentes neo-rurais diante de transições socioambientais decorrentes das novas formas de ocupação do meio rural. Parte-se da premissa de que o contexto rural passou a ser, em certas circunstâncias, ocupado por indivíduos urbanos com finalidades distintas, promovendo, assim, um êxodo contemporâneo, constituindo um novo-rural complexo nomeado de rurbano por José Graziano da Silva (4). Este suscita atividades agrárias ou não-agrárias tais como o turismo, as habitações de lazer, os condomínios rurais, os loteamentos clandestinos, o agrobusiness e novos atores como o operariado industrial, os aposentados, os trabalhadores formais e informais, em que há possibilidade de serviços, ao que Graziano da Silva denomina como Organizações Rurais Não-Agrícolas — Ornas e os sem-sem — este último termo designado para os indivíduos excluídos e desorganizados entre si, que não têm terras, empregos, acesso a quaisquer assistências básicas, assim como às unidades produtivas capitalistas que exploram atividades exóticas relativas à localidade (5).

Considerando que o fenômeno de neo-ruralismo apresenta distintos atores, destaca-se a necessidade de discerni-los entre si e apontar para aqueles que apresentam características transicionais e agroecológicas.

Como metodologia, este artigo se realizou mediante a investigação e análise crítica de referências bibliográficas relativas aos temas novas ruralidades, transição societal, agroecologia e prosperidade local, buscando associar estes conceitos. A bibliografia elegida sobre neo-ruralismo utiliza-se dos estudos de Gian Mario Giulliani (6) e Danièle H. Léger (7), com foco na região serrana do Rio de Janeiro e nos Alpes franceses, da década de 1970. A temática que leva às especificidades do universo rural brasileiro e suas complexidades societais, além da primazia do agronegócio, também introduz tecnologias e práxis contemporâneas de cunho ambientalista e prósperas à localidade (8). Dentre estas, destaca-se a agroecologia e a economia solidária. A complexidade deste fenômeno, diante das primeiras décadas do século 21, leva à discussão de transição societal. Neste artigo, utiliza-se da pesquisa da socióloga Janice Gendron (9), realizada a partir da ótica de movimentos organizados na França, como forma de transição socioambiental diante da crise climática.

A respeito do fenômeno de novas ruralidades e seus atores, a socióloga Danièle Hervieu Léger comenta que “para as administrações ou locais notáveis, eles são os marginais ou os assentados […] antes de serem nomeados novos chegados e neo-rurais” (10).

Trazendo relatos do campesinato francês na década de 1970, que vivenciavam a chegada destes novos indivíduos ao campo, Léger salienta a visão perante os recém vindos: “são pessoas bem colocadas, que tinham uma boa profissão e estudaram, o que eles esperam aqui com seus diplomas? […] Qual propósito de vir fazer agricultura aqui?” (11).

A autora destaca a preparação intelectual destes novos habitantes que buscavam o rural francês para trabalhar como camponeses, em um sistema familiar e autônomo. Em consonância, o sociólogo Giuliani apresenta o mesmo conceito, na década de 1970, como um movimento no sentido contrário, nomeado pelos franceses de neo-ruralismo, expressando valores do velho mundo rural, tidos praticamente como extintos, reavivados com a adesão de pessoas da cidade, através das relações com a natureza, dos ciclos produtivos, ao tempo de trabalho mais longo e menos rígido, à tranquilidade e com o anseio por relações sociais mais profundas.

A partir das exemplaridades trazidas por Giuliani (12), José Graziano da Silva (13) apresenta certa parcela de neo-rurais como aqueles “que exploram os nichos de mercados das novas atividades agrícolas” (14), atribuindo a estes um valor econômico sofisticado, diferentemente do modelo familiar estabelecido na França. Em sentido semelhante, Maria José Carneiro (15) e Giuliani (16) distinguem as novas ruralidades francesas e brasileiras do período relativo aos anos 1970 como: “À diferença dos europeus, que vão ao campo reproduzindo o modelo de produção familiar, nossos novos rurais vão ao campo reproduzindo o modelo de produção capitalista” (17).

Silva (18) considera esta diferenciação estruturalmente importante para a análise dos efeitos produzidos sobre o meio-ambiente e a prosperidade local, por meio destes agentes, para dialogar sobre as neo-ruralidades brasileiras do século 21. Segundo Giuliani (19), há a aproximação de conceitos como ecologismo e neo-ruralismo, mesmo que não sejam necessariamente correspondentes, e é de interesse deste artigo a relação entre estes conceitos como uma forma de transição socioambiental.

Considera-se, nas transições que apresentaram impactos nos anos 1970, em localidades como os Alpes franceses, que os agricultores relataram a revitalização da sociabilidade local, através dos serviços e da diversidade das atividades ofertadas pelos habitantes, conforme aponta Carneiro (20). Segundo a autora, este estado de coisas reverberou na geração de renda para a população local, promovendo a integração do ethos urbano para o ethos rural. De modo semelhante, para o contexto brasileiro, Silva (21), mais recentemente, atribui aos neo-rurais engajados participação na preservação ambiental e na prosperidade local, segundo o qual: o enfoque no desenvolvimento local promove a organização social, pouco recorrente na escala local, a qual é marcada por posições sociais tradicionalistas, responsáveis pelo subdesenvolvimento local. Assim, o autor marca a necessidade de que, para que o desenvolvimento local seja sustentável, é necessário o engajamento de diversos atores sociais, invocando a participação política daqueles que se colocam no trabalho agrário devido a sua relação idílica com a construção de uma nova relação com a natureza. Esta participação tem papel fundamental na preservação ambiental e na construção de planos de desenvolvimento local. É marcada, por Silva, a fundamental necessidade de planejamento para que haja ações de regeneração ambiental e prosperidade local, através das relações sociais e econômicas (22).

Diante do complexo cenário rural brasileiro, a matriz produtiva é hegemonicamente o agronegócio, desdobrado na denominada Revolução Verde, a qual apresentou soluções como rápidas e eficazes para enfrentar a crise alimentar e o crescimento populacional global no pós-guerras. Este modelo convencional, que necessita de insumos externos industrializados, grandes latifúndios, maquinários intensivos etc., tem foco principal na produção de commodities em grande escala para o mercado externo e é enquadrado em contexto de depreciação do solo, perda de biodiversidade e poluição dos recursos naturais (23). Frente aos fatores predatórios e insustentáveis do agronegócio, há a agroecologia como uma readequação das formas como os produtores e a sociedade se relacionam entre si e em conjunto para com o meio-ambiente (24). As urgentes transformações em prol da prosperidade socioambiental têm direta relação com as formas de produção agrícola e de organização espacial, contrárias às que acarretam a deterioração de agrossistemas e que podem, de modo alternativo, se articular a adaptações tecnológicas e políticas governamentais como a reforma agrária (25). Com o objetivo de realizar uma transição às formas de agriculturas ecológicas que atendam à demanda global de produção de alimentos, devem ser realizados apoios e incentivos governamentais, tais como implementados na Revolução Verde (26).

É importante destacar a diferença entre os dois modelos, em que o agronegócio se apresenta como grande motor econômico, porém fortemente ligado à produção de commodities, que nada têm a ver com a resposta à produção de alimentos diretamente, sendo este dependente de insumos agrícolas, tecnologias de ponta e grandes extensões de terra, em geral para produção de monoculturas de exportação, em monopólios. De outro lado, o modelo agroecológico se apresenta sob a ótica da propriedade familiar, caracterizado pelo pluriatividade no espaço rural, o que está diretamente ligado à produção de alimentos e à economia em escala humanizada. O sistema de produção do agronegócio tem escala globalizada, o que se apresenta de maneira negativa para a qualidade de nutrição humana versus o esforço tecnológico. Do ponto de vista da logística, o modelo convencional é deficiente e agrava a desigualdade econômica através da má distribuição. Deste ponto de vista, o modelo agroecológico na escala familiar e local, apresenta-se como mais favorável, como uma alternativa perante os processos hegemônicos que tem estruturado a economia brasileira, bem como à produção massiva de ultra processados, maléficos à saúde.

Gomes e Aly fazem um ensaio interessante a respeito das dinâmicas do fim do século 20, no Brasil, que vivia o início das grandes redes de supermercados, aliadas à produção industrial de alimentos. Observam como se afetaram as formas como o comércio se dava e os modos de nutrição, devido à baixa diversidade de alimentos e inadequação da dieta. Neste processo complexo, o modelo agrícola convencional causa, como consequência, a dependência dos indivíduos a modelos de consumo oligopolistas que inibem a soberania alimentar. Os autores defendem alternativas ao agronegócio e a construção da soberania alimentar como forma de readequação social, cultural e ambiental, fazendo-se coerente a superação do modelo de produção da agricultura industrial para estabelecer formas de consumo descentralizadas de alimentos e derivados, com qualidade.

As iniciativas de economia solidária e do consumo cidadão, presentes na Comunidade Sustenta a Agricultura — CSA, com início no Brasil, no final do século 20, são exemplos contemporâneos que seguem os princípios da agroecologia (27), ao requalificar a cadeia de produção e distribuição em uma localidade geográfica próxima, preferencialmente periurbana, promovendo conexões com a natureza e a valorização do trabalho humano em prol do bem social (28).

Fazendo-se necessário apresentar o termo agroecologia diante do fenômeno de neo-ruralismo e de transições socioambientais, utiliza-se da síntese elaborada por Sérgio Botton Barcellos (29). Em meados de 1930, este termo surge como forma de aproximação entre agricultura e ecologia. Com o decorrer dos anos, foi revisitado e recebeu diversas interpretações voltadas para a consciência ambiental. A agroecologia é tratada como projeto de desenvolvimento socioambiental e tem marcadas diferenciações perante a chamada Revolução Verde e o agronegócio no Brasil (30). Acresce-se à agroecologia a sustentabilidade, seja ambiental, de trabalho, de renda, saúde e inclusão social (31).

Os modelos de produção agroecológica — tais como a agricultura biodinâmica, a agricultura orgânica, a agricultura sintrópica, entre outras (32) — e as formas de organização social, muitas vezes associativa, coletivas ou por CSAs (Comunidades que Sustentam a Agricultura ou Community Supported Agriculture), por exemplo, não são características dos novos rurais da década de 1970 descritos por Giuliani (33), salvo exceções. Mesmo do ponto de vista da produção, distribuição e consumo capitalista, os neo-rurais daquele período poderiam ser considerados apenas modernizadores do campo. De outro modo, buscam trazer iniciativas capazes de promover a prosperidade de um território através da identidade local, como reação às padronizações de origens industriais e urbanas (34) — aspecto alternativo aqui entendido como agroecológico.

Na perspectiva da escala socioambiental local, a consideração sobre o socialmente necessário (35), bem como a premissa de superação da crise ambiental contemporânea de base antrópica (36) se fazem fundamentais. Isto se considerarmos que o capitalismo entende a natureza como reservatório de recursos inacabados, levando a civilização mundial ao estado de uma crise social e ambiental (37), cujos desdobramentos se encontram em situação de colapso (38). Os problemas de má-distribuição global de alimentos, demandas de grande consumo energético para o transporte, promovem e agravam desigualdades sociais e degradam o meio-ambiente, o que promove, como contraposição a este estado, os sistemas alimentares locais, através da busca circuitos curtos de comercialização e venda direta entre produtor e consumidor (39).

A urbanização intensiva e a produção em escala industrial têm sido consideradas como deletérias à prosperidade local, assim como antípodas à proteção de áreas ambientais e de comunidades rurais e originárias, surpreendentemente resilientes perante um conjunto de ações que ameaçam ou extinguem suas sabedorias e modos de vida (40). A busca incessante pela produção em escala global, com a padronização das técnicas, revela a redução da biodiversidade, ampliando os problemas sociais em relação à qualidade ambiental do planeta (41).

Diante deste contexto, destaca-se o grande contingente de áreas urbanizadas, excessivas consumidoras de recursos e produtoras de resíduos, cujos efeitos transcendem seus limites (42), em que territórios urbanos e rurais são interpretados com dicotomia ou em continuum. No primeiro caso, compreende-se o rural atrasado e a cidade como progressista, enquanto, no segundo, os impactos do urbano se manifestam diretamente no rural, gerando mudanças societais, aproximando-o da realidade urbana (43). A modernização técnico-científica do campo aproximou-o das cidades devido ao condicionamento de base urbana às transformações socioespaciais, apresentadas com a circulação de mercadorias de novas atividades econômicas, assim como as formas de trabalho, produção e consumo que ultrapassam as características físicas para as ideológicas (44). As relações urbano-rurais brasileiras, do ponto de vista cultural e tecnológico, apresentam-se como complexas e carentes de formas contemporâneas de assentamento humano, coerente com as dimensões socioambientais.

Sobretudo a desconcentração e a descentralização urbana como forma de estabelecimento de reconstrução dos paradigmas em âmbitos como alimentação, educação, cultura e na relação com o meio-ambiente enfrentam, no Brasil, as exorbitantes especulações do mercado imobiliário, as infraestruturas fragilizadas, a desorganização social e ausência de programas governamentais, criando um estado de inércia ou falência de projetos de ocupações de território intencionais, dentro da ótica de novas ruralidades em transição e agroecológicas.

Considera-se, de outra sorte, que as novas ruralidades observáveis tais como a “valorização da natureza e da vida cotidiana” e o “protesto contra o trabalho parcelado, o gigantismo urbano, a degradação das relações sociais, contra a feiura e uniformidade do ambiente físico das cidades” (45), associadas aos princípios agroecológicos, possam apontar para alternativas às desventuras urbano-rurais do século 21. Estes fenômenos contemporâneos, que dizem respeito à transição socioambiental, podem ser considerados como positivos e capazes de gerar prosperidade local.

Segundo Gendron (46), realizar uma transição societal se apresentará primeiramente no âmbito individual, emotivo e com caráter educacional. A partir disto, as necessidades por transicionar serão consentidas e desejadas. Para desdobrar-se na realização de transições, observa-se o cenário global do início década de 2020, no qual o Brasil apresentava 59,4% de domicílios — cerca de 3/5 da população —, com instabilidade alimentar (47), atrelados à taxa de desemprego crescente de 14,7% (48) e a inaugurada luta por justiça climática (49), como impactos decorrentes do desenvolvimento econômico iniciado na década de 1950 (50).

Diante deste quadro, as atividades rurais e periurbanas revisitadas contemporaneamente por indivíduos urbanos (51), assim como a produção familiar e o desenvolvimento local, podem ser entendidos como formas de transição socioambiental em realidade de crises (52).

Contextualizando-se, a partir de temáticas socioambientais para um modelo pós-moderno (53) — como as experiências engendradas pelo movimento Cidades em Transição (54) — a sociedade que os transicionadores reivindicam é descrita da seguinte forma:

“É baseada em certo retorno à tradição, ao local, à lentidão, às relações sociais e econômicas mais humanizadas, a um consumo mais refletido e com sentido, a uma produção mais socialmente necessária, enfim, a uma importância mais centrada no homem e sua relação com a natureza em detrimento da busca de um crescimento econômico ilimitado” (55).

Os transicionadores (56) descritos por Rob Hopkins apresentam características comuns aos neo-rurais como definidos por Giuliani (57), Léger (58) e Silva (59), sendo elas: a valorização do conhecimento local e tradicional ao tempo dos “homens lentos” (60) e as dinâmicas econômicas solidárias de produção e distribuição locais e humanizadas.

As práticas agroecológicas que, por essência, apresentam dinâmicas econômicas humanizadas e geram prosperidade (61), tendem à revalorização de conhecimentos vernaculares específicos a certa localidade, diante das epistemologias hegemônicas (62). Ao serem emuladas a partir da tecnicização do campo (63), permitem a geração de impactos positivos sobre o meio-ambiente, uma vez que a presença de atores neo-rurais fortalece a preservação de recursos naturais (64).

Estudos apontam para o agronegócio no Brasil, como estratégia setorial que se dirige à produção em extensas áreas de solo, para exportação concentrada de commodities, tendo como contrapartida a importação de produtos industrializados, levando o país à reprimarização da economia e inserção subalterna no mercado mundial. Sua participação na riqueza nacional é de baixa contribuição de impostos, com baixa geração de empregos, tendo contribuído para a inserção da fome no país; entretanto, a grande quantidade de créditos públicos disponibilizada a este setor contrasta com a da agricultura familiar (65). Conforme Rosa e Svartman, um modelo de base ecológica de produção rural no Brasil “implica na ruptura com a atual perspectiva de conciliação entre o agronegócio e a agricultura camponesa, arquitetada e posta em curso pela classe dominante e pelo Estado” (66) Para os autores, a representação social da agricultura brasileira do agronegócio, se dá como proposta de modernização, eficiência econômica, competividade de mercado, no entanto, são camufladas, por trás deste discurso ideológico, um modelo de desenvolvimento rural predatório, de elevado custo ambiental e social (67).

No universo de uma transição societal em meio à crise socioambiental de base antrópica (68), as novas ruralidades passam a ser reinterpretadas no Brasil: de uma ideologia carregada de culturas urbanas e altamente dependentes de recursos capitais para o ideal de enfrentamento a um estado de crise e colapso, como modo de permanência da cultura humana em moldes verdadeiramente sustentáveis.

No entanto, o papel do Estado, como promotor de políticas públicas é um agente determinante e o descompasso entre as iniciativas relativas ao agronegócio perante alternativas de agricultura familiar ou sustentável é gritante. Pompeia (69) faz um arrazoado bastante completo dos movimentos do agronegócio, desde sua origem na ideia de agribusiness americana, com epicentro em Harvard, às relações internacionais e instrumentalização do conceito em nome da erradicação da fome e, em contrapartida, da expansão dos negócios “dentro e fora da porteira”, como uma cadeira de conhecimento e geração de valor exportável. Isto atinge diretamente o Brasil e vai se refletir na formação de complexos agroindustriais e na constituição de um projeto político-econômico que, ao fim e ao cabo, faz com que uma miríade de associações, muitas vezes em disputa e outras em convergência, passem a ter, historicamente, presença significativa na ocupação da esfera pública e na tomada de decisões, o que atualmente é flagrante.

Remanescem e se agravam conflitos, como possibilidades de reforma agrária, da agricultura familiar, da erradicação do trabalho escravo, da escassez de trabalho no campo, da proteção de terras indígenas e de preservação ambiental, culminando, muitas vezes, com expedientes espúrios na regularização fundiária, fraudes e na violenta pressão do marco temporal, por exemplo. Como resultado, tende-se à primarização da economia, à dependência da exportação de commodities e à concentração de terras, riqueza e poder. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE (70), em dados de 2017, 76,8% do total de estabelecimentos agropecuários e agricultores no Brasil eram relativos à agricultura familiar, cuja ocupação territorial correspondia a 23% do total da área em atividades agropecuárias, — sendo 81% proprietários das terras — gerando 66,3% dos empregos nestas atividades.

A política pública mais relevante para a agricultura familiar é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar — Pronaf, de 1996 (71), que contempla subprogramas como: custeio, agroindústria, mulher, agroecologia, bioeconomia, mais alimentos, jovem, microcrédito e cotas-partes.

Grisa (72) aponta que o Pronaf acaba por aplicar parte expressiva de recursos em produtos competitivos no mercado internacional, do sistema agroindustrial moderno sob controle de poucas empresas. Afirma, também, que, por exemplo, no caso do Pronaf Mais Alimentos, o crédito acabou por se tornar algo como “mais tratores”, perdendo a potencialidade do programa. Outra argumentação indica que haja discrepância de sua atuação do ponto de vista regional, acabando por beneficiar unidades com melhores condições socioeconômicas e comportando um viés produtivista. De certo modo é evidenciado, como limitação da política de crédito do Pronaf, o fato de que o financiamento de produtos não esteja vinculado a uma política de desenvolvimento a partir de princípios de sustentabilidade e solidariedade, fortalecendo, portanto, o modelo baseado na monocultura de cereais (73).

Como considerações finais, aponta-se para a importância das organizações e movimentos sociais, dentre os quais se destacam historicamente os fóruns de agricultura familiar, da segurança alimentar e nutricional, agroecológico e científico. Sem a atuação de resistência das organizações sociais, e a necessária articulação de atividades espontâneas inicialmente pulverizadas, que envolvam movimentos denomináveis como neo ruralismo e outros processos de produção rural, em moldes alternativos, agroecológicos e sustentáveis, pode ser um caminho de enfrentamento a sistemas socioambientais predatórios, apontando caminhos que venham a se contrapor aos hegemônicos.

notas

1
GIULIANI, Gian Mario. Ecologia e nostalgia do futuro. Estudos Sociedade e Agricultura, v. 19, n. 2, Rio de Janeiro, out. 2011, p. 270-313; SILVA, José Graziano da. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. Estudos Avançados, v. 15, n. 43, São Paulo, dez. 2001, p. 37-50.

2
BARCELLOS, Sérgio Botton. A agroecologia entre o debate da justiça ambiental e da democracia: alguns desafios em reflexão. Educação em Perspectiva, v. 7, n. 2, Viçosa, dez. 2016, p. 243-262.

3
LÉGER, Danièle. Les utopies du "retour". Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 29, Paris, set. 1979, p. 45-63.

4
CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa; CORRÊA, Walquíria Kruger. Ruralidades, urbanidades e a tecnicização do rural no contexto do debate cidade-campo. Campo-Território: Revista de Geografia Agrária, v. 3, n. 5, Uberlândia, MG, fev. 2008, p. 214-242.

5
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos modelos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 14, Rio de Janeiro, out. 1990, p. 59-67.

6
Idem, ibidem.

7
LÉGER, Danièle. Op. cit.

8
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

9
GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Para onde vamos? A crise climática e a transição societal em debate na França. Tese de doutorado. João Pessoa, PPGS UFPB, 2018.

10
Do original: “Du côté des administrations ou des notables locaux, ils sont les marginaux ou les installés […] avant de nous en tenir aux termes de nouveaux arrivant et de néo-ruraux”. LÉGER, Danièle. Op. cit., p. 46. Tradução dos autores.

11
Do original: “Ce sont des gens haut-placés, des gens qui avaient un bon métier, ils ont fait des études, qu’est-ce qu’ils espèrent ici, avec leurs diplômes? […] A quoi ça rime de venir faire l’agriculteur ici?”. LÉGER, Danièle. Op. cit., p. 46. Tradução dos autores.

12
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos Modelos (op. cit.).

13
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

14
SILVA, José Graziano da. Op. cit., p. 37.

15
CARNEIRO, Maria José. Ruralidade: novas identidades em construção. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, v. 6, n. 2, Rio de Janeiro, dez. 2013, p. 53-75.

16
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos Modelos (op. cit.).

17
Idem, ibidem, p. 65.

18
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

19
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos Modelos (op. cit.).

20
CARNEIRO, Maria José. Op. cit.

21
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

22
SILVA, José Graziano da. Op. cit., p. 43-46.

23
PEREIRA, Gáudia Maria Costa Leite; OLIVEIRA, João Batista de; LIRA, Wagner Lins; MATTOS, Jorge Luiz Schirmer de. Agroecologia e agronegócio: dois modelos em disputa. In: SANTOS, Edilene Dias; MELLO, Roger Goulart. Tópicos do desenvolvimento científico e tecnológico em ciências agrárias I [livro eletrônico], Rio de Janeiro, e-Publicar, 2022, p. 240-250.

24
Idem, ibidem.

25
Idem, ibidem.

26
Idem, ibidem.

27
Agroecologia se entende aqui como: “A disciplina científica que tem foco no estudo da agricultura desde uma perspectiva ecológica e transdisciplinar”. ALTIERI; NICHOLLS, 2000, p. 19. Apud BARCELLOS, Sérgio Botton. Op. cit., p. 258.

28
TIBURTINO, Lorene Almeida; CARDOSO, Ricardo Cruvinel; NARCISA-OLIVEIRA, Jeniffer; MACIEL, Josemar de Campos. A experiência da CSA — Comunidade que Sustenta a Agricultura como fator promotor de desenvolvimento local — Revisão. Cadernos de Agroecologia, Sociedade Brasileira de Agroecologia, v. 13, n. 2, Rio Grande do Sul, dez. 2018, p. 1-9.

29
BARCELLOS, Sérgio Botton. Op. cit.

30
GLIESSMAN, 2000. Apud BARCELLOS, Sérgio Botton. Op. cit., p. 246.

31
PEREIRA, Gáudia Maria Costa Leite; OLIVEIRA, João Batista de; LIRA, Wagner Lins; MATTOS, Jorge Luiz Schirmer de. Op. cit.

32
BARCELLOS, Sérgio Botton. Op. cit.

33
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos Modelos (op. cit.).

34
Idem, ibidem.

35
SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 2004.

36
GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit.

37
GIULIANI, Gian Mario. Ecologia e nostalgia do futuro (op. cit.).

38
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. 3ª edição. Campinas, Unicamp, 2018.

39
PEREIRA, Gáudia Maria Costa Leite; OLIVEIRA, João Batista de; LIRA, Wagner Lins; MATTOS, Jorge Luiz Schirmer de. Op. cit.

40
GIULIANI, Gian Mario. Ecologia e nostalgia do futuro (op. cit.).

41
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo, Hucitec, 1996, p. 242. Apud CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa; CORRÊA, Walquíria Kruger. Op. cit., p. 220.

42
CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa; CORRÊA, Walquíria Kruger. Op. cit., p. 217.

43
Idem, ibidem.

44
RUA, 2005, p. 45-66. Apud CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa; CORRÊA, Walquíria Kruger. Op. cit., p. 219.

45
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos modelos (op. cit.), p. 64-65.

46
GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit.

47
Estatística elaborada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG e a Universidade de Brasília — UnB, 2020 <https://bit.ly/4e5hJ2r>.

48
BARROS, Alerrandre. Desemprego chega a 14,7% no primeiro trimestre, maior desde 2012. Agência IBGE Notícias, Estatísticas Sociais, 27 maio 2021 <https://bit.ly/3XnQ9rM>.

49
Conforme Gendron, “justiça climática” é um termo instaurado por manifestantes ecologistas durante a COP-15, em Copenhague, sendo também adotado pelo grupo francês Alternatiba. Tem por conceito a reparação das injustiças promovidas pelo desregulamento climático que se desdobra em formas de crises, sobretudo em países menos desenvolvidos, agravando as desigualdades sociais. Portanto, justiça climática está atrelada a justiça social. GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit., p. 260.

50
Seguimos Giuliani, que define a década de 1950 como período da modernização da agricultura, quando houve a transformação do velho mundo rural pelo padrão de vida industrial/urbano — transformando a agricultura em um ramo a mais da indústria e os agricultores em produtores e habitantes suburbanos. GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos modelos (op. cit.), p. 59.

51
LÉGER, Danièle. Op. cit.

52
GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit.

53
Idem, ibidem.

54
Segundo Gendron, Cidades em Transição ou Territórios em Transição (Transitions Towns/Transitions Network) é um movimento criado pelo professor inglês Rob Hopkins, em 2005, inspirado na permacultura. GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit., p. 52.

55
HOPKINS, Rob. Apud GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit., p. 74.

56
Segundo Gendron, transicionadores (transitionneurs) é um termo designado por Rob Hopkins a partir da publicação por este autor de The transition handbook: from oil dependency to local resilience (Montreal, Green Books, 2008). GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit., p. 74.

57
GIULIANI, Gian Mario. Neoruralismo: o novo estilo dos velhos modelos (op. cit.).

58
LÉGER, Danièle. Op. cit.

59
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

60
SANTOS, Milton. A natureza do espaço (op. cit.).

61
TIBURTINO, Lorene Almeida; CARDOSO, Ricardo Cruvinel; NARCISA-OLIVEIRA, Jeniffer; MACIEL, Josemar de Campos. Op. cit.

62
SANTOS, Boaventura de Souza. Construindo as epistemologias do sul. Antologia essencial. Buenos Aires, Clacso, 2018.

63
CANDIOTTO, Luciano Zanetti Pessoa; CORRÊA, Walquíria Kruger. Op. cit.

64
SILVA, José Graziano da. Op. cit.

65
MITIDIERO JUNIOR, Marco Antonio; GOLDFARB, Yamila. O agro não é pop e muito menos. São Paulo, Friedrich-Ebert Stiftung Brasil, set. 2021.

66
ROSA, Marcela Pereira; SVARTMAN, Bernardo Parodi. Agroecologia e políticas públicas: reflexões sobre um cenário em constates disputas. Psicologia Política, Florianópolis, v. 18, n. 41, abr. 2018, p. 18-41.

67
Idem, ibidem, p. 21.

68
GENDRON, Janice C. Cavalcanti. Op. cit.

69
POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo, Elefante, 2021.

70
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Agricultura familiar. Atlas do espaço rural brasileiro. Rio de Janeiro, BGE, 2020, p. 291-311.

71
BRASIL. PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Brasília, Ministério da Agricultura e do Abastecimento, 1996.

72
GRISA, Catia. Políticas públicas para a agricultura familiar no Brasil: produção e institucionalização das ideias. Tese de doutorado. CPDA UFRRJ, 2012.

73
Idem, ibidem, p. 168.

Sobre os autores

Bruno Pinheiro Balestrin Brizotti é graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2020).Como arquiteto, realiza diversos projetos de arquitetura com terra e de planejamento territorial.

Vera Santana Luz é graduada pela FAU Mackenzie, doutora pela FAU USP, professora da FAU PUC Campinas desde 1986, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas. Membro do Grupo de Estudos Espaço Urbano e Saúde do IEA USP. Autora de Ordem e origem em Lina Bo Bardi (São Paulo, Giostri, 2014).

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