Em 2009, o canal Al Jazeera (1) colocou no ar o programa China’s empty city, que iniciou um debate sobre as empreitadas construtivas chinesas ao longo de mais de uma década. Explicitadamente falando sobre o esvaziamento dos novos prédios de Kangbashi e acusando o governo local de apenas construir para insuflar o Produto Interno Bruto — PIB da região (2), a reportagem apresentava pontos que eram válidos à crítica da construção civil. Entretanto, um ano mais tarde a Time Magazine (3) nomeou Ordos como uma “ghost city” e o mito das cidades fantasmas chinesas começou a ser difundido sem uma reflexão crítica à altura (4). A terminologia, portanto, serviria para designar grandes empreendimentos urbanísticos, com torres de apartamentos, arranha-céus, arquiteturas de escritórios famosos, praças monumentais, espaços que, ainda que oferecessem infraestruturas, acabavam pouco povoados.
Não apenas a mídia propagou esse discurso, como muitos estudos acadêmicos também utilizaram o termo ghost city para caracterizar algumas das novas cidades chinesas, descartando as dinâmicas que envolvem a constituição das cidades em geral. “Estes estudos afirmam que o problema das cidades fantasmas chinesas está ligado ao rápido desenvolvimento do setor imobiliário e impulsionado pela ambição dos atores políticos locais de controlar e entender a terra como uma mercadoria” (5). Outros escritos analisam as cidades fantasmas de maneiras mais abrangentes, abordando questões como a falta de estatísticas oficiais sobre a vacância dos imóveis ou a compra desses imóveis como segunda residência, mesmo que por pessoas comuns, como possíveis fatores para a condição esvaziada do local (6).
Convém desconfiar de categorias tão incisivas quanto essa. A caracterização de um lugar como uma cidade-fantasma merece passar pela lente da teoria crítica, ou seja, pela negação do senso comum (7). O natural que acompanha o senso comum é localizável em certa temporalidade e, por isso, podemos nos delongar nas várias linhas do poder que compõem a teia das terminologias.
Para isso, construirei um argumento de fragmentos variados. O primeiro ponto é enquadrar a denominação de cidade-fantasma como um mito, para então lançar luz ao urbanismo chinês. Em seguida, dividirei a terminologia em partes de “cidade” e “fantasma”, sendo a segunda, inclusive, associada às ruínas. Logo após, apresentarei dados atualizados da população que vive em Kangbashi, alinhados com o argumento de Yin, Qian e Zhu (8), que vão além da distinção rígida do “fantasmagórico e vibrante”.
Mitos do cotidiano
As cidades fantasmas fazem parte do imaginário mundial: locais como Detroit (Estados Unidos), Fordlândia (Brasil), Craco (Itália), Pripyat (Ucrânia) foram símbolos de progresso em algum ponto do passado e agora se encontram desocupadas, usualmente vistas como lugares do desamparo e do abandono. As hipóteses são várias para tais eventos: desde desastres ou crimes ambientais, perda da força econômica a mudanças sociopolíticas da importância daquele lugar. Além disso, essas cidades ocupam lugares específicos do imaginário, em que a fantasmagoria e o sinistro vêm à mente. É comum perceber em filmes e jogos de terror uma paisagem desocupada, ruas vazias, prédios semidestruídos, sem o cuidado que o uso humano proporciona, figurando o local assombrado. No caso de Kangbashi, essa noção aparece na reprodução da fala do fotógrafo Raphael Olivier, que disse: “toda a cidade dá a impressão de ser uma estação espacial pós-apocalíptica vinda de um filme de ficção científica” (9). Adiciono que as imagens esvaziadas como formas da distopia dizem muito mais de um temor atual sobre o extermínio humano da Terra do que, efetivamente, de uma previsão futura.
Entre os anos 1954 e 1956, Roland Barthes refletiu sobre mitos cotidianos franceses, como por exemplo, a luta livre, a crítica literária, os marcianos, os casamentos e até mesmo apresentou investidas gastronômicas em “o vinho e leite” e “o bife com batatas fritas” (10). Barthes considerava que tudo o que era expressado pela língua poderia cair no enquadramento do mito, que toma o lugar da dúvida ao responder a uma incerteza quase total (11). Nesse sentido, o propósito deste texto é entender o que significa essa coisa que foi tão repetida pela mídia e pelos estudos: a condição de ghost city de regiões como Kangbashi, China.
No mito, a rigidez desaparece e os conceitos míticos podem, a todo o momento, ser recontados, modificados, desfeitos ou mesmo desaparecer. O mito nada esconde, ele apenas deforma, ou seja, ele retira a memória e não a existência (12). É justamente dessa maneira que a imagem de Kangbashi como cidade fantasma é construída, retira-se a memória do local e deforma-se a existência, repetindo inúmeras vezes o termo cidade-fantasma, até a incorporação do discurso no inconsciente. Recorro a Barthes e coloco a categoria de cidade-fantasma atrelada a Kangbashi como forma de refutar essa condição.
O mito, por trás dos meandros da deformação, revela algo sobre aqueles que o reproduzem. Há um conteúdo político e consigo pensar em algumas motivações das narrativas das cidades fantasmas da China, refletidas em certas mídias e produções acadêmicas: existe algo que sugere uma torcida pelo fracasso da empreitada de futuro da China, único lugar que parece ainda dar sentido a essa temporalidade; há também o lado do desconhecido que a mídia enfatiza para chamar atenção — fascínio pelo exótico decadente; o impedimento da reelaboração do eixo político/estético do nosso tempo em termos espaciais e temporais (se comparado aos Estados Unidos e Europa); bem como a disputa do poder; possibilidade da constituição de um imaginário distópico a partir das impressões desses lugares. Em certa medida, o futuro do sonho chinês sendo traduzido por parte da mídia como uma utopia fracassada parece mais uma espécie de espelho raso. Uma faceta que inclusive não consegue conceber que outras partes do mundo poderiam pensar a cidade e o urbano de outras maneiras.
Fantasmas, cidade e ruína
O distrito de Kangbashi é, efetivamente, parte da cidade de Ordos, localizada no sudoeste da Região Autônoma da Mongólia Interna. Ordos possui uma área de 87.000km2, uma população de aproximadamente dois milhões de pessoas e grandes reservas de carvão (algo equivalente a um sexto da reserva total da China) e de gás natural. Foi justamente a extração e gestão desses recursos que permitiram que Ordos passasse de um local subdesenvolvido a uma cidade rica. Após a conversão do status rural para urbano em 2001, utilizou o boom de commodities para expandir amplamente as áreas urbanas do município e estimular uma industrialização mais abrangente. No ano 2000, o governo local lançou o projeto da Zona de Desenvolvimento Qingchunshan, onde antes era uma urban village (13), e, quatro anos mais tarde, Qingchunshan foi renomeada como novo distrito de Kangbashi. Construída a 30km do antigo centro de Ordos (Dongsheng), tinha o objetivo de relocar o foco econômico para além da extração mineral e absorver a população que vinha para Ordos.
Três anos depois da conclusão das obras, o governo de Ordos transferiu a prefeitura, as principais agências, escolas e hospitais para o novo distrito e as primeiras pessoas que passaram a viver em Kangbashi eram, na maioria, servidores públicos, professores, profissionais de classe média, servidores de empresas e aposentados das empresas de carvão (14). No entanto, a população queixava-se da falta de comodidades, preferindo morar no centro de Ordos e comutar para Kangbashi. Resultando em uma cidade planejada para um milhão de habitantes possuindo apenas 30.000. Em 2009, a indústria do carvão sofreu uma queda e a continuidade dos projetos de desenvolvimento do governo local teve que ser abortada. Uma das medidas de contenção de crise foi a emissão de vales de habitação para pessoas que quisessem de mudar para Kangbashi. Além disso, em 2018, o governo local redesenhou os limites do distrito, circunscrevendo apenas a área urbana central e deixando de fora a área da margem sul do rio Wulanmulun, onde existe um grande número de edifícios vazios (15).
As reportagens apresentadas retratam a ideia de cidade-fantasma, uma vez que todas possuem essa caracterização no título. A primeira (no alto e à esquerda) apresenta um tom condescendente, quando reproduz, no fim, outra fala de Olivier: o fenômeno de cidades como Ordos, que nascem de áreas rurais para acomodar as massas, “é realmente um câncer para o desenvolvimento do país e uma ameaça à economia chinesa” (16) Já a segunda reportagem termina de uma maneira mais sensata, com outra fala de Olivier ponderando sobre as pessoas que moram lá não serem necessariamente infelizes (17). A quarta reportagem, vinculada ao site Dezeen, foca nas experiências arquitetônicas do Museu de Ordos e o projeto abandonado Ordos 100 villas, pensado por Herzog & de Meuron e Ai Weiwei (18). Já o artigo de opinião de Keenan coloca as experiências europeias e chinesas (ou melhor, as réplicas chinesas de cidades europeias) lado a lado para uma comparação um tanto confusa (19). Maxime Bergeron intercala a história de Kangbashi com a de dois moradores, primeiro Sr. Ren, que vende bolsas falsificadas em um shopping e reclamava da ausência de compradores e Sr. Zheng, motorista de táxi, que apreciava o silêncio do local, apesar das consequências negativas (20).
A reportagem que faz mais justiça à complexa condição de Kangbashi é a escrita pelo pesquisador Wade Shepard (terceira na fileira de cima da montagem). Mas antes de analisá-la, acho importante colocar o contraponto de como se faz o urbanismo na China pós-reforma (21). No período pós-reforma, a urbanização passou a ser promovida majoritariamente pelos governos locais como forma de expansão econômica — atração de investimentos e desenvolvimento econômico —, algo chamado urbanização administrativa por Liu et al. (22). Ren Xuefei elucida as tendências da governança urbana: o governo adquire as terras, reloca os possíveis moradores e aluga para investidores privados para a construção de novas infraestruturas. “De acordo com uma emenda constitucional aprovada nos anos 1980, os governos municipais podem transferir direitos de utilização de terras urbanas para investidores provados em troca de uma taxa substancial de aluguel de terras” (23). Na reforma fiscal de 1994, os governos locais tiveram que repassar grande parte das receitas fiscais para o governo central, além de ter que investir em infraestruturas locais. Isso fez com que as prefeituras passassem a depender mais das taxas de arrendamento da terra para gerar novas receitas (que são extraorçamentárias e não precisam ser repassadas ao governo central) (24). Nesse sentido, é coerente ver o processo de urbanização administrativa ganhar força nos anos 2000 (25) e ajudar a formar os bolsões de infraestruturas que anteviam possíveis ocupações.
Yin e Liu (26) defendem a ideia de que existem diferenças significativas entre o processo de urbanização do ocidente e o chinês. Listam que a transição de mercado do país asiático é um processo gradual de reforma, em que o estado tem papel primordial junto ao mercado; o sistema político é centralizado e avaliado recorrentemente; governos locais controlam os recursos e ditam padrões de ocupação territorial, uso da terra e migração rural urbana; e criam novas tendências de coalizão, em vez de competição, entre diferentes áreas administrativas. Mais especificamente sobre Ordos, sob a política nacional de descentralização dos poderes administrativos e fiscais, Yin e Liu apresentam mais um importante fator: o desenvolvimento urbano de um local se traduz em avanço de carreira para políticos (27).
A lente da urbanização administrativa é importante para entender a urbanização pós-reforma. O crescimento urbano no país é marcado pela regulação do governo sobre o processo mercadológico por meio de medidas administrativas. Além disso, o caso chinês se diferencia dos casos ocidentais porque, em certas ocasiões, como é o caso de Ordos, os novos distritos são construídos para atrair novos investimentos para a economia local — não como forma de resolver alta densidade, problemas de tráfego ou deterioração ambiental (28).
Com isso dito, Yin et al. apresentam duas críticas relevantes à representação de Kangbashi como ghost city: 1. as matérias jornalísticas são moldadas por uma imaginação geográfica preconcebida e 2. os retratos veiculados do distrito são parciais e seletivos, uma vez que “o desenvolvimento de novas cidades tem ocorrido não apenas na China, mas tem sido comum à acumulação de capital através do desenvolvimento do ambiente construído nas sociedades capitalistas” (29). Outro ponto de crítica está no fato de que os discursos midiáticos muitas vezes interpretam a construção das novas cidades como algo fora de uma eventual demanda, ignorando o papel humano em negociar e adaptar-se a mudanças socioespaciais. As reportagens, muitas vezes, caracterizavam os moradores locais de Kangbashi como pessoas forçadas a migrarem para lá, retirando o poder e agenciamento de negociação deles próprios (30).
Além das considerações factuais, podemos refletir sobre dois problemas de classificação: Kangbashi não é uma cidade e, sim, um distrito; e a categorização de Ordos como cidade fantasma é equivocada, porque Dongsheng, principal distrito de Ordos, é um local consolidado e ocupado. Outras questões de ordem conceitual quando se pensa a relação entre cidade-fantasma e ruína extrapolam: se as cidades chinesas não foram ocupadas, logo, usadas, elas ainda permanecem em estado de não-ruína, seriam lidas como novas. Por outro lado, será que aquilo que não foi utilizado pode se tornar uma ruína? A ruína deve requisitar um uso ao longo de um determinado período de tempo? Se não há uso, ou mesmo trabalho humano, como poderia ser esse processo de arruinamento? Nesse sentido, há um salto temporal que pula a ação humana, desde a construção ao estado de tomada pela natureza não domesticada. Como conciliar esse problema? A seguir, analisaremos três séries fotográficas, retiradas da paisagem de Kangbashi, e comentadas por Max Woodworth, que projeta a perspectiva de ruína nos espaços urbanos do distrito estudado.
As fotografias não tão sinistras
Kangbashi new district, de Michael Christopher Brown; Unborn cities, de Kai Caemmerer; e Kangbashi new district, Ordos municipality, de Tong Lam. O objetivo de Max Woodworth era de explorar a produção fotográfica sobre as cidades fantasmas para examinar de que maneira essas representações evidenciavam a urbanização especulativa contemporânea como um processo de ruína. O autor advoga pela impressão de que há uma familiaridade das formas e aparência das cidades fantasmas, da arquitetura, da paisagem, da setorização nesses espaços, mas eles geram um desconforto pela ausência de pessoas. Woodworth coloca uma série de binarismos, como construção e destruição, florescimento e decadência, mas “a irresolução desses binários familiares postula sua irrelevância em um momento global de urbanização especulativa. No lugar desses binários, estamos diante de imagens de cidades que não precisam mais de pessoas” (31). Essas imagens são narrativas e poderiam ser interpretadas como retratos de espaços desocupados, ruínas de um império contemporâneo.
Georges Didi-Huberman (32) escreve que uma foto é uma palavra, pois ela pede para ser colocada em uma frase, quando, então, pode ser verdadeira. Para o autor, a foto feita do caminho que leva ao campo de concentração somente está completa quando é acompanhada por todo o relato. Contextos diferentes, arranjos diversos, montagens, tudo isso consiste em dar sentido a uma palavra ou a uma fotografia. As fotografias feitas pelos três artistas citados no texto de Woodworth carregam a mensagem, junto ao corpo textual, da cidade esvaziada, deixada aos espíritos e em ruínas. E justamente, para Andreas Huyssen, “temos saudade das ruínas da modernidade porque elas ainda parecem encerrar uma promessa que desapareceu da nossa era: a promessa de um futuro alternativo” (33).
Por se tratar de estrangeiros àquele lugar, os três fotógrafos vão em busca do espetacular, do sensacional e do exótico. “Cerca de oitenta anos atrás, Walter Benjamin, crítico modernista por excelência, já reconhecia a atração estética daquilo que chamava de ‘declínio irresistível’” (34). O declínio das fotografias de Brown, Caemmerer e Lam é apenas parcial, porque elas partem da perspectiva de um não-uso humano. Ao contrário das fotografias de Pipo Hieu Nguyen-duy, que dizem de uma ocupação e de um momento de notabilidade industrial do passado em Chicago — que transbordam sedução estética com o revide e a dominação da natureza sobre a modernidade —, as fotografias dos três autores descrevem um momento no tempo, o instante que impulsiona ao futuro uma curiosidade sobre o que será aquele lugar. Além disso, não há uma dimensão sobrenatural nas fotografias tiradas de Kangbashi. São fotografias nuas e cruas de um processo novo de ocupação de um local, são fatias da realidade.
Han Dong, uma das pessoas entrevistadas por Yin et al. (35) e que morava no distrito de Kangbashi há três anos, contou que a mídia desconsiderava completamente o ritmo e os padrões de vida dos moradores de Kangbashi: todos lá tinham carro e aos finais de semana um terço de todos os automóveis sumiam das garagens, pois o movimento de retorno a Dongsheng ou outras localidades nos períodos de folga era grande. Deliberadamente, os repórteres iam a Kangbashi naqueles dias, demonstrando a esperteza por trás dos movimentos da captura imagética para a perpetuação do imaginário fantasmagórico local.
Retomando a reportagem de 2016 de Wade Sherpard (36), a cidade natimorta ainda recebia grande atenção da mídia ocidental. Wang, um morador da cidade, contou a Shepard que “houve alguns mal-entendidos; eles [a mídia ocidental] não sabem exatamente as razões e as mudanças em Kangbashi. Além disso, às vezes os repórteres gostam de ampliar os fatos para atrair leitores.” Para Shepard, em vez de cidade-fantasma, Kangbashi deveria ser referida, mais acuradamente, como um canteiro de obras. A presença de casas vazias é resultado de forças complexas e é desleal “chegar a uma cidade chinesa em desenvolvimento, tirar algumas fotos de prédios vazios e concluir que eles são o prenúncio de um fim do mundo econômico iminente”. Shepard acrescenta que o problema de Kangbashi não é necessariamente a urbanização e sim o desenho urbano, inspirado no design soviético, que provoca um sentimento de pequenez nos habitantes. “Eles tiveram a ideia maluca de ser tão grande quanto Pequim, de se parecer com Pequim e de ter ruas tão largas quanto as de Pequim” — disse a pesquisadora Carla Hajjar a Shepard. Além de ser uma cidade canteiro, trata-se de um canteiro que tentava alcançar a magnitude da capital do país.
Cenas da vida comum
O documentário The land of many palaces, dirigido e produzido por Adam James Smith e Song Ting (37), aborda a ocupação de Kangbashi pelos novos habitantes, alguns provenientes de zonas rurais e que, por isso, a prefeitura havia promovido cursos de treinamento explicando como viver em comunidades urbanas: boas maneiras, transporte público e conhecimentos gerais. O documentário mostra a faceta cotidiana das pessoas que experienciam o processo de urbanização chinês contemporâneo, algo que dá conta das sobreposições e nuances do cotidiano em contraponto à ideia de urbanização especulativa contemporânea, uma categoria generalizável. Em entrevista a Leavitt, Smith primeiro explica que Ordos serviu como um experimento para o desenvolvimento de outras cidades com relocação de populações rurais e industrialização do campo. Ainda assim, a perspectiva dos moradores de Kangbashi era de grande respeito e interesse pelo trabalho de Smith: “A cidade estava realmente envergonhada com essa imprensa negativa, ou o que eles viam como imprensa negativa. […] Estávamos mostrando essa outra história sobre como a cidade estava se tornando povoada” (38).
A ideia apresentada pelo documentário segue a linha de pensamento transmitida pelo morador Guo Wei, que uma vez, viajando de trem, escutou um estranho (chinês) dizendo a duas garotas que os prédios de Kangbashi eram assombrados e nenhuma pessoa circulava à noite (39). O professor ficou furioso com o tipo de informação que passavam sobre a cidade onde ele habitava havia um ano. O mito da cidade-fantasma vivia também na mente de parte dos chineses, uma vez que parte da mídia interna reproduzia a narrativa fantasmagórica. Segundo Yin et al., das cem reportagens analisadas pelos pesquisadores, encontradas no Baidu, 69 citavam artigos ocidentais sobre Kangbashi (40). Todavia, é importante deixar claro que a crítica feita à grande mídia estrangeira não atenua as possíveis críticas a Kangbashi, seja pela infraestrutura, pela organização, pelo apelo geopolítico etc.
Compreender as nuances de práticas cotidianas é fundamental para entender a ocupação dos lugares, indo além do contraste rígido entre vibrante e fantasmagórico. “No contexto da China, os migrantes constroem o senso de lar, identidade e apego ao lugar principalmente por meio da mobilidade, flexibilidade e mudança de lar” (41). A partir de análises como as de Duo Yin, Junxi Qian e Hong Zhu e Smith e Ting, os assuntos importantes podem ser discutidos, deixando de lado o mito fantasmagórico. Como ocupar ainda mais uma nova localidade provida de infraestrutura básica? Quais outros tipos de serviços devem ser oferecidos? A formação de um lar nas instâncias materiais e psicológicas não é um processo linear, e desvalorizar a passagem vivida por outras pessoas é teoricamente infrutífero. Xiao Feng, trabalhador aposentado da empresa estatal que gerencia a extração de carvão, escreve letras de músicas que prestam homenagem a Kangbashi:
“Inesperadamente, inesperadamente,
os moradores rindo nos sonhos;
O povo de Kangbashi tem boa sorte;
Fluxos incessantes de pessoas e veículos;
Este lugar está cheio de esplendor;
Morando aqui, as vantagens são infinitas;
Nossos dias estão ficando cada vez mais prósperos” (42).
Em 2022, Kangbashi tinha uma população de 124.500 habitantes em uma área de 372,55 km², divididos em dezenove comunidades (43). O Plano Diretor da cidade de Ordos (2011–2030) (44) prevê que a população planejada chegará a 2,4 milhões em 2030, e a área total do terreno de construção urbana será de 325 km2(45). O planejamento se concentra no desenvolvimento de vilarejos e cidades, integração de parques, proteção de recursos históricos e culturais, infraestrutura principal e coordenação de proteção ecológica e ambiental. Ou seja, o plano de integração permanece e o planejamento, ainda que esteja em fase de consolidação, vislumbra um futuro mais alargado.
A modo de conclusão
A análise de narrativas escritas e imagéticas revela uma tendência na hora de retratar o esvaziamento e o fracasso de projetos futuros, muitas vezes influenciados por narrativas de países que moldam percepções sobre os outros. Nesse contexto, este artigo procurou desconstruir a categorização de Kangbashi como uma cidade-fantasma, argumentando que essa designação, também encontrada nas reportagens analisadas, é um mito. Além disso, explorou-se o novo urbanismo chinês pós-reforma, oferecendo reflexões sobre o conceito, bem como a ideia de ruínas e cidade. Ao final, foram compartilhadas passagens do cotidiano de moradores de Kangbashi.
É crucial reconhecer que o processo de urbanização chinês, embora compartilhe similaridades com o ocidente, não é uma mera imitação, possui estímulos e desafios próprios. Explorar essas nuances pode até mesmo despertar novas perspectivas no campo urbano ocidental.
Durante a apresentação do projeto deste artigo em sala de aula, um colega destacou que os mitos não são combatidos apenas por fatos. Em uma era marcada pela disseminação rápida de notícias falsas, essa observação é particularmente relevante. Portanto, é necessário um esforço duplo: uma análise crítica que desafia o mito e também o reconhecimento de que teorias não são suficientes para desbancá-los. A partir disso, o que poderia substituir o mito de cidade-fantasma? Algo, inclusive, que superasse o exotismo da China, ainda que estivesse atento aos meandros do capital.
notas
NA1 — O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Brasil — Capes (código de financiamento 001) e com o apoio do China Scholarship Council — pesquisadora sênior na Universidade de Shanghai, China (2023–2024).
1
China’s empty city. Al Jazeera, Doha, 10 nov. 2009 <https://bit.ly/3X1iPFC>.
2
SHEPARD, Wade. Ghost cities of China. Londres, Zed Books, 2015.
3
All Quiet. Time Magazine, Nova York, 2010 <https://bit.ly/479KsRo>.
4
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Living in the “Ghost City”: Media Discourses and the Negociation of Home in Ordos, Inner Mongolia, China. Sustentability, v. 9, n. 11, 2017, p. 1–15.
5
Idem, ibidem, p. 2. Tradução da autora.
6
Idem, ibidem.
7
KAPP, Silke. Teoria crítica da arquitetura. Texto de aula. Belo Horizonte, PPGAU FAU UFMG, 2022.
8
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Op. cit., p. 4. Tradução da autora.
9
ROBINSON, Melia. Surreal photos of China’s failed ‘city of future’. Business Insider, Nova York, 5 mai. 2017 <https://bit.ly/3ZdfDtn>.
10
BARTHES, Roland. Mitologias. 9ª edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993.
11
BERRIO-ZAPATA, Cristian et al. A máquina retórica de Barthes: mitologia e conotação nas redes digitais. Bakhtiniana, v. 10, n. 2, São Paulo, mai./ago. 2015, p. 135–157.
12
BARTHES, Roland. Op. cit.
13
Segundo Yin e Liu, a totalidade da área construída proveio de duas aldeias e as compensações para os aldeões giravam em torno de 2000 e 60000 RMB por hectare. Ver YIN, Guanwen; LIU, Yungang. Administrative urbanization and city-making in post-reform China: a case study of Ordos City, Inner Mongolia. Chinese Geographical Science, v. 27, n. 6, 2017, p. 891–903.
14
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Op. cit.
15
OTEDE, Uchralt. Kangbashi: The richest ‘ghost town’ in China? In GOLLEY, Jane; JAIVIN, Linda (org.). China Story Yearbook 2017. Camberra, ANU Press, 2018, p. 76-80.
16
ROBINSON, Melia. Op. cit.
17
CHUNG, Sthephy. Abandoned architectural marvels in China’s largest ghost town. CNN Style, Atlanta, 21 nov. 2016 <https://bit.ly/4cJgSn6>.
18
HOWARTH, Dan. Ordos: A Failed Utopia photographed by Raphael Olivier. Dezeen, Londres, 10 jan. 2016 <https://bit.ly/3Xbhs7q>.
19
KEENAN, Mark. Chinese whispers can’t deny reality of its ghost cities — and what could potentially be the biggest property crash in history. Irish Independent, Dublin, 15 abr. 2022 <https://bit.ly/4e0LO3P>.
20
BERGERON, Maxime. La Chine fantôme: Ordos, au milieu de nulle part. La presse, Montreal,17 abr. 2014 <https://bit.ly/3Xn8fdn>.
21
“A segunda revolução urbana reorganizou a cidade como espaço de produção, consumo e o pivô da vida urbana. A China passou da industrialização liderada pelo Estado para a acumulação com base urbana”. WU, Fulong. Creating Chinese Urbanism: Urban revolution and governance changes. Londres: UCL Press, 2022. Ebook. Tradução da autora.
22
LIU, Yungang; YIN, Guanwen; MA, Laurence. Local state and administrative urbanization in post-reform China: a case study of Hebi City, Henan Province. Cities, v. 29, n. 2, 2012, p. 107-117.
23
REN, Xuefei. The Political Economy of Urban Ruins: Redeveloping Shanghai. International Journal of Urban and Regional Research, v. 38, n. 3, 2014, p. 1082. Tradução da autora.
24
Idem, ibidem.
25
A lei de propriedade de 2007 atesta que a terra urbana é propriedade do estado e das unidades estatais, enquanto a terra rural é propriedade do estado e dos coletivos rurais (village collectives); a moradia urbana é propriedade geralmente privada e a transação mercantil é autorizada, já a moradia rural é propriedade privada e não pode ser comercializada. LI, Pengfei. Making the Gigantic Suburban Residential Complex in Beijing: Political Economy Processes and Everyday Life in the 2010s. Tese de doutorado. Nova York, City University of New York, 2017.
26
YIN, Guanwen; LIU, Yungang. 2017. Administrative urbanization and city-making in post-reform China: a case study of Ordos City, Inner Mongolia (op. cit.).
27
Idem, ibidem.
28
Idem, ibidem.
29
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Op. cit., p. 11. Tradução da autora.
30
Idem, ibidem.
31
WOODWORTH, Max. Picturing Urban China in Ruin: “Ghost City” Photography and Speculative Urbanization. GeoHumanities, v. 6, n. 2, 2020, p. 248. Tradução da autora.
32
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo, Editora 34, 2017.
33
HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro, Contraponto, 2014, p. 93.
34
Idem, ibidem, p. 90.
35
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Op. cit. Tradução da autora.
36
SHEPARD, Wade. An Update On China’s Largest Ghost City — What Ordos Kangbashi Is Like Today. Forbes, Jersey, 19 abr. 2016 <https://bit.ly/3TeocA5>.
37
The land of many palaces. Direção Adam James Smith e Song Ting. China, Beijing Pulan Films, 2014.
38
LEAVITT, Danielle. The Land of Many Palaces. BYU College of Humanities, 2015 <https://bit.ly/4dWXOTo>.
39
YIN, Duo; QIAN, Junxi; ZHU, Hong. Op. cit.
40
Idem, ibidem.
41
Idem, ibidem, p. 2. Tradução da autora.
42
Idem, ibidem, p. 10. Tradução da autora.
43
44
鄂尔多斯市城市总体规划(2011–2030). Holistic Governance and Planning Research Center <https://bit.ly/4g52mZN>.
45
Segundo a página de Ordos no Baidu, os dados atuais são: tamanho da população 2.200.700 (população residente no final de 2022). 鄂尔多斯市. Baidu <https://bit.ly/3z4wTGl>.
sobre a autora
Isabella Flach Gomes arquiteta e urbanista (2015), mestre e doutoranda (2021) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atua principalmente nos temas relacionados aos acontecimentos urbanos, filosofia do acontecimento, teoria urbana na China, filosofia chinesa e ecocrítica chinesa.