Arquitetura oficial e ocupação territorial
A implantação da arquitetura oficial no sudoeste de Goiás foi o reflexo da ocupação territorial e da consolidação dos núcleos urbanos na segunda metade do século 19. Uma ocupação datada de 1830 quando migrantes oriundos de Minas Gerais e São Paulo demarcaram posses com o objetivo de estabelecer fazendas para a criação de gado. Para Goiás, após o encerramento do ciclo de exploração aurífero, o gado constitui-se na única possibilidade econômica (1).
Naquele momento, o conjunto das legislações coloniais pertenciam ao passado, superadas pela Constituição Imperial de 1824. Em 1828, uma lei destinada a dar “nova fórma às Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz” (2) manteve e ampliou os poderes das Posturas a serem implantadas pelas Câmaras para o controle do cotidiano urbano. Os objetivos eram amplos: “terão a seu cargo tudo quanto diz respeito à polícia, economia das povoações, e seus termos, pelo que tomarão deliberações, e proverão por suas posturas”. Dentre as várias obrigações deveriam “promover e manter a tranquillidade, segurança saude, e commodidade dos habitantes; o asseio, segurança, elegancia, e regularidade externa dos edificios, e ruas das povoações” (3). Nesse contexto, qualquer povoação interessada em sediar foros municipais deveria construir um edifício destinado ao Conselho Municipal.
A atuação das lideranças políticas aglutinadas em torno de Nossa Senhora das Dores de Rio Verde junto à capital de Goiás foi rápida: dois anos depois da doação das terras para a formação do Patrimônio a localidade foi elevada à Freguesia (4). A área era gigantesca: abrangia desde as primeiras vertentes do rio Turvo e seguia até sua foz no Rio dos Bois; daí abaixo até o Paranaíba e por ele abaixo seguindo o Paraná até a foz do rio Pardo. Daí, seguia rio acima até suas vertentes e seguindo pelo espigão mestre, rumo às cabeceiras do Araguaia, encontrava o início do perímetro. Em 05 de novembro de 1855, foi criado o Distrito de Torres do Rio Bonito, subordinado à Rio Verde e em 17 de agosto de 1864, a Capela do Divino Espírito Santo do Paraíso do Jatahy foi elevada à Freguesia. Na década de 1830, ao sul, os fazendeiros migrantes oriundos de Minas Gerais organizaram-se em torno do povoado de Sant´Anna do Paranahyba, elevado em julho de 1857 à condição de Vila em áreas de litígio entre Goiás e Mato Grosso (5). A partir da segunda metade do século 19, a região sudoeste de Goiás já se encontrava ocupada com povoados ligados com caminhos consolidados.
As leis que autorizavam a elevação de um povoado à vila geralmente não estipulavam um prazo para que o edifício da Câmara fosse erigido. Todos estavam cônscios, apesar disto, que deveria ser o mais breve possível. Os poderes locais, sem o edifício, não poderiam funcionar. De acordo com Rubenilson Brazão Teixeira, as dificuldades em atender rapidamente à exigência da edificação — comuns no período colonial e que permaneceram no Império — eram generalizadas (6). Com Rio Verde não foi diferente. A municipalidade, elevada à vila em 1854, ficou sem instalações físicas para a Câmara até 1862, quando o Conselho adquiriu a residência de um dos vereadores — Ladislau B. Campos — para servir à administração municipal. A residência servia, evidentemente, como instalação provisória. Urgia ter um edifício oficial.
O modelo desta arquitetura oficial a ser implantada estava submetido a parâmetros bastante estritos e solidamente estabelecido desde o século 16. As principais atividades da cidade já nasceram aglutinadas em um mesmo edifício. Robert Smith identificou que a construção da Alfândega da Bahia, construído em 1618, converter-se-ia no protótipo para os edifícios das Casas de Câmara e Cadeia que seriam implantadas daí em diante (7). Este modelo tipológico objetivava aglutinar funções em dois pavimentos: os ambientes do térreo destinar-se-iam às prisões e da força pública enquanto os ambientes do pavimento superior ocupar-se-iam com as funções administrativas e judiciárias. A cadeia, sendo um dos pilares do regime, era imprescindível: o povo, o clero e a nobreza não estavam imunes a penas pecuniárias e prisões.
A partir da função dupla que configurava a tipologia oficial, as variações seguiam de acordo com as necessidades de cada julgado e, principalmente, atreladas à capacidade financeira dos responsáveis pela construção do edifício. Em Salvador, em 1660, o governo de Francisco Barreto de Menezes (1616–1688) edificou novas instalações a partir do projeto do arquiteto beneditino Frei Macário de São João mantendo a concepção compacta. A Casa de Câmara e Cadeia de Cachoeira, concluída em 1712, sedimentou a prática do modelo em dois pavimentos do edifício da Alfândega em Salvador. A partir daí, este modelo seria reproduzido praticamente intacto à medida em que novas vilas surgiam (8).
Para os povoados ou aglomerações que pretendiam adquirir o estatuto de vila ou cidade, o edifício da Câmara era a “coisa mais essencial das vilas e que mais as authorizam e ennobrecem” (9). Em Goiás, a primeira edificação desta tipologia data de 1733 em Meia Ponte, atual Pirenópolis. Trata-se de um edifício compacto que repetia o modelo tipológico de dois pavimentos e que possibilitou as instalações para o estabelecimento da guarnição da força militar instalada em 1736 (10). O edifício original não sobreviveu: foi demolido no início do século 20 e refeito em 1919 próximo à ponte do Carmo sobre o rio das Almas, nos moldes do anterior. Como observou Eurípedes Afonso da Silva Neto, das Casas de Câmara e Cadeia em Goiás, esta foi a primeira e seria a última (11) construída seguindo o modelo colonial de dois pavimentos.
Em Goiás, a instalação da primeira vila — futura capital Vila Boa de Goiás — e a vinda de Dom Luiz de Mascarenhas 1685–1756) colocou a administração pública nos patamares coloniais vigentes. Em 1739 (12), ele nomeou os vereadores e procuradores do Conselho, delimitou o local da construção da Casa de Câmara e Cadeia e da praça para a instalação do pelourinho, definiu as diretrizes de instalação dos principais edifícios públicos e redefiniu o traçado das vias a partir do ponto que representava o poder: o Senado da Câmara. Entravam em funcionamento as engrenagens do projeto político de Lisboa com o objetivo de controlar as terras de Goiás. No contexto da ocupação efetiva do território, conforme o Tratado de Madri de 1750, a política lusitana voltou seus rigores para controlar as regiões produtoras de ouro, por mais longínquas que fossem. Para Goiás foi designado o governador João Manoel de Melo com o objetivo de reorganizar o corpo militar, combater os indígenas, colocar em ordem os impostos e moralizar o sertão. Construída na década de 1760 a Casa de Câmara e Cadeia da capital (13) foi uma das poucas edificações que mereceram um projeto cuidadoso (14). A partir daí o governo prosseguiu com a instalação de outras cadeias. O Relatório de José Martins de Alencastre, Presidente da Província em 1862, por exemplo, relaciona além da cadeia da capital outros dezesseis edifícios: Entre-Rios, Santa Cruz, Morrinhos, Catalão, Corumbá, Meia-Ponte, Bomfim, S. Luzia, Jaraguá, Cavalcante, Pilar, Porto Imperial, Arraial do Chapéo, Boa Vista, Trahiras e Natividade (15).
Arquitetura oficial e afirmação do poder local
Não parece possível afirmar que o modelo tipológico da Casa de Câmara e Cadeia na região sudoeste de Goiás, construídas no século 19, tenha vindo de Vila Boa ou Meia Ponte. As principais lideranças de Rio Verde e Jataí, tão logo estabeleceram suas propriedades, evidentemente estiveram na capital para pleitear e defender seus interesses, sobretudo após a consolidação do registro propiciado pela Lei de Terras de 1850. Explicitação do desejo de permanecerem próximos ao centro do poder local e da elite governante. Entretanto, o modelo poderia, também, ter origem nas edificações oficiais construídas nas regiões de origem dos posseiros. Povoações maiores e mais antigas tais como, por exemplo, Uberaba (1837) e Paracatu (1800) ou menores como a de Ituiutaba (1882). Mas, considerando que estava disseminado, encontrar a origem torna-se uma tarefa estéril. Os idealizadores dos edifícios encontrariam inspiração para reproduzir a arquitetura oficial onde quer que fosse.
Em Jataí, a ereção do edifício para a Câmara foi mais rápida que em Rio Verde. A Resolução n. 668 de 29 de julho de 1882, determinava que “logo que os respectivos habitantes apresentarem um edifício com as necessárias acomodações para a cadeia e a casa de câmara, o presidente da província providenciará para que tenha lugar a instalação da vila” (16). Em 1881, a partir da iniciativa do padre Pedro de Brito e Vasconcellos, a elite local, interessada na instalação da vila para legitimar e valorizar suas terras, agiu com presteza. Ao jornal goiano Tribuna Livre, o padre relatou as dificuldades dos moradores locais em relação aos “negócios públicos”, mas assegurou que medidas estavam sendo tomadas e que, em pouco tempo, a localidade teria “uma boa casa para a Câmara e cômodo seguro para a prisão no mesmo edifício” (17). Em março de 1883 materiais começaram a ser reunidos para a obra. O fazendeiro José Manoel Vilela, em 1880, havia contratado o carpinteiro português Manoel de Miranda Pacheco para a construção de uma ponte sobre o rio Claro, na estrada para Mato Grosso, e confiou a ele a execução da obra (18). Das edificações que Manoel de Miranda coordenou em Jataí — o sobrado do Capitão Serafim José de Barros na cidade e a sede de sua fazenda, a Casa da Escola e a residência de José Manoel Vilela — certamente a Casa de Câmara e Cadeia era a maior, mais importante e mais elaborada.
Para defender os interesses locais, em 1883, o padre Brito fez lembrar aos “homens mais iminentes da capital” que a região era um dos centros criadores de gado mais ricos da província e que, diante das “correrias dos selvagens”, necessitava de uma força policial com urgência. A cadeia devia colocar um “paradeiro aos malles” que atormentavam os moradores (19). As lideranças locais sabiam que pouco adiantava possuir instalações físicas se não tivessem força policial ou judiciária que as mantivesse. Necessitavam do apoio do poder provincial. Estavam construindo o edifício, mas esperavam funcionários e designações oficiais para fazê-lo funcionar. Para tanto, em 1884, foi realizada a primeira eleição e em 2 de março de 1885, com o edifício operacional, a vila foi instalada. É bastante provável que, em 1885, a edificação em Jataí não estivesse completamente concluída. Provavelmente, devido à premência para a instalação da vila, os esforços foram concentrados nos ambientes administrativos no pavimento superior e é provável que algum acabamento ou revestimento ficasse inconcluso nos ambientes prisionais no térreo. Tanto que, quando a notícia da libertação dos escravizados chegou, em 1888, a imediata ação das lideranças locais teria sido a de concluir as celas da cadeia. É provável que temiam a conversão dos libertos em marginais: de acordo com o memorialista jataiense Basileu França, o fazendeiro José Manoel Vilela teria dito que “a princesa dona Isabel deu liberdade pros negro e o xadrez vai ser pequeno pra botar os vadio” (20). Esta informação, ainda que literária, serve apenas para reforçar a hipótese de que, no início de 1888, mesmo após a instalação da vila, o edifício estava inconcluso. A cadeia foi concluída no final daquele ano (21) e o edifício passou a funcionar plenamente. Em abril de 1889, a cadeia já abrigava um réu, Januário dos Santos Conceição, detido pelo delegado local Antônio Soares Rodrigues, por roubo, tentativa de morte “de Firmino de tal” e crime de homicídio no Termo de Batatais (22).
Em 1890, o viajante português Oscar Leal, de passagem pelo sudoeste de Goiás, encontrando-se em Rio Verde observou que o edifício da Cãmara e Cadeia local ainda estava inconcluso, mas em funcionamento: sediava o “jury e a intendência municipal” (23). De Rio Verde, Leal dirigiu-se para Torres do Rio Bonito e Jataí. Em Jataí, Oscar Leal visitou o edifício da Câmara e testemunhou uma eleição no edifício em funcionamento. As instalações da Casa de Câmara e Cadeia de Jataí, de acordo com o Diccionario Geographico do Brazil, publicado em 1894, estavam entre as “melhores do estado, com quanto não exceda em tamanho a da capital, a excede, porém, em luxo e gosto” (24). Havia custado aos idealizadores a quantia de trinta contos de Réis.
Em 1882, a vila de Rio Verde passou à condição de cidade e, com a ajuda do governo provincial, conseguiu reunir recursos para a construção do edifício de Câmara. Os julgamentos ocorriam nas instalações disponíveis. Em 15 de dezembro de 1874, por exemplo, o júri já estava em funcionamento para julgar o caso do “rèo Miguel, escravo que tem de entrar em julgamento” (25). Ainda assim a execução do edifico parece ter enfrentado dificuldades. Somente em 1882 a municipalidade foi capaz de reunir recursos para a obra que somente foi iniciada em 1885 e conduzida pelo intendente Joaquim Rodrigues de Almeida. Em 1886, os recursos — dois contos advindos do governo estadual e quatro contos de Réis reunidos localmente — não foram suficientes para concluir o edifício (26). As lideranças de Rio Verde pretendiam erigir uma “elegante e segura casa” e faltavam, ainda cerca de dois contos de Réis. A obra era urgente: os juízes não se faziam presentes e não havia uma “força pública” para fazer “valer a lei” (27) sem instalações que os abrigassem.
A década de 1880 havia terminado, mas as instalações da Câmara de Rio Verde não: o edifício estava levantado e coberto, mas provavelmente algumas partes do acabamento interno não estavam prontas. Em 1899, o construtor Felix Toffani foi contratado para concluir o edifício, o que conseguiu efetivar no ano seguinte. Em 1900, após quinze anos, o edifício foi concluído. Toffani era italiano, havia realizado obras na região do Triângulo Mineiro e em Jataí onde havia sido pioneiro na arquitetura com ornamentações ecléticas. Eurípedes Afonso da Silva Neto observou que, ainda que a obra de Toffani fosse de cunho eclético, o artífice conservou o modelo anterior e não inseriu alterações formais: a força do arquétipo da Casa de Câmara implantado no Brasil desde a Colônia “ainda impunha seu modelo como selo da instituição representativa do poder” (28).
Em Jataí, registros fotográficos e a descrição da escritura de doação em 1885 permitem, somados, uma análise. A edificação foi construída com “as melhores madeiras que por cá se conhece” (29): aroeira, ipê, amoreira, bálsamo e canjica. Possuía setenta e cinco palmos de frente — cerca de quinze palmos mais que em Rio Verde — e trinta e cinco de altura. O edifício repetia a tradicional divisão funcional: no pavimento superior estava a sala destinada a abrigar as seções do júri com cinquenta palmos de comprimento, além da Secretaria da Câmara, sala para o Juiz de Direito, sala para o Conselho Secreto, testemunhas e “guarda-chapéus e uma “custódia”. O salão principal havia sido dimensionado de maneira a abrigar a galeria para os espectadores e um estrado para o Conselho dos Jurados, do Juiz de Direito e Promotoria. O pavimento térreo reunia ambientes para o Corpo da Guarda, uma “casa-forte com grades de ferro” com paredes guarnecidas com pranchas de aroeira, uma prisão para mulheres “com a mesma segurança”, um “quarto escuro para a prisão de bêbados” e dois ambientes destinados ao comandante e carcereiro. No térreo, havia um cano destinado “à limpeza do mesmo com a competente água” (30).
O telhado com telhas de barro em quadro águas se apoiava no madeiramento terminado em beirais com cachorros aparentes, sem cimalha. Formalmente, a divisão programática das funções administrativas era reconhecível visualmente nas fachadas: o alinhamento das esquadrias do pavimento térreo não seguia o alinhamento das superiores o que ressaltava a distinção dos ambientes nos pavimentos.
Em Rio Verde o programa do edifício reuniu no térreo, três celas revestidas com pranchas de madeira, o salão para o Corpo da Guarda e um espaço administrativo para o comandante. No pavimento superior, de um lado e outro do salão destinado ao salão do júri e dos vereadores, estavam dispostos ambientes dispostos para a administração, um vestíbulo e uma sala para o Conselho. Comparado com o edifício de Jataí, externamente, o de Rio Verde possuía acabamento mais cuidadoso: os cachorros do beiral são ocultos por uma cimalha, os esteios laterais possuem entalhes imitando capitéis e as esquadrias possuem frisos nas vergas e folhas duplas com venezianas.
Estruturalmente as edificações eram iguais. Repetiam o modelo estrutural e o sistema construtivo em madeira conforme a tradição assentada em Goiás desde o século 18: esteios principais “de palmo de quina viva madeira de lei, os baldrames de um palmo de largo, e três quartos de alto, e os frechais de três quartos de palmo em quadra” (31). Sob as vigas baldrames havia uma base em pedra tapiocanga lavrada. Além do reforço das pranchas de madeira — no interior das celas a base de pedra apiloada certamente era um elemento de reforço para dificultar a fuga dos presos. Os fechamentos de adobe eram rebocados e caiados, o piso de assoalho de madeira assentado em barrotes e o telhado de telhas de barro. As esquadrias também repetiam as técnicas tradicionais: quadro, verga, peitoris e ombreiras com dimensões submetidas à modulação da arquitetura. Nas janelas da cadeia — as enxovias — havia gradeamento de ferro batido.
Arquitetura oficial, cotidiano e espaço urbano
Em relação ao espaço urbano a implantação adotada, tanto em Rio Verde quanto em Jataí, expressava o objetivo de destacar o edifício no centro do terreno mais importante. Através disto a arquitetura oficial aparecia em primeiro plano na paisagem do incipiente tecido urbano. Enquanto sede da justiça e da administração eram locus importantes da vida social. Estas pretensões ficam evidentes nas das plantas urbanas de Rio Verde (1865) e de Jataí (1890). Os edifícios da igreja também foram implantados isoladamente, mas nenhum deles possuía as dimensões e as proporções das Casas de Câmara. Uma visão da Rua do Comércio em Jataí, exemplifica o destaque desta arquitetura. Podemos identificar a horizontalidade do casario térreo no alinhamento da via enquanto o edifício da Casa de Câmara e Cadeia, mais alto, fechava a perspectiva com a volumetria destacada.
Enquanto materialização do poder instituído, tão logo foi possível, os edifícios puseram em ação as funções programáticas de legislar, administrar, policiar e punir: reforçar o sistema de representação coletiva construído através da história para dar “significado ao social” (32). A primeira providência era elaborar a legislação local. O artigo 24 da Lei de 1828 determinava que as Câmaras eram corporações exclusivamente administrativas, sendo vedadas atribuições contenciosas. Esta clara delimitação funcional, em comparação com a legislação colonial, representava uma vitória do poder Imperial. A função do juiz foi substituída pelo juiz de paz com atribuições de julgar as infrações à legislação elaborada pela Câmara. A instauração da República dividiu os poderes: com a Câmara ficaram as atribuições legislativas enquanto que com a Intendência — nova configuração administrativa — ficaram as funções administrativas. O edifício, nessas bases, era o que mais exercia o poder diretamente no cotidiano da população através de legislação para controlar o espaço urbano. Tanto em Rio Verde, quanto em Jataí, o denominador comum dos Códigos de Posturas eram as preocupações com a saúde dos moradores, a higiene urbana, o fornecimento de alimentos e os dejetos. Proibidos estavam os curtumes, chiqueiros, a venda de víveres estragados e a adulteração dos pesos e medidas.
A Câmara de Rio Verde, em 1865, não exigia licença para construções (33). A Câmara de Jataí, neste ponto, era mais exigente. As Posturas da Villa de Jatahy, em 1887, preconizavam que o processo de formação de lotes estava submetido ao tamanho das pretensões construtivas dos proprietários. Não havia tamanhos mínimos ou máximos para os terrenos. O interessado em construir deveria procurar a Câmara e, mediante um requerimento, informar as medidas do edifício às quais a municipalidade acrescentava três ou quatro metros como afastamentos laterais. As exigências eram que fosse obedecido o pé-direito mínimo de 3,52 metros para todas as edificações, mantidos os alinhamentos das vias estipuladas e que fossem mantidas condições de salubridade (34). Esta prática tinha um objetivo: incentivar a ocupação. Ao fornecer parcelamento de solo urbano conforme o interesse de quem solicitava a Câmara estava interessada que o povoado crescesse, garantindo que todos os interessados obtivessem um lote correspondente às suas disposições em construir.
Enquanto as Câmaras legislavam para controlar as vilas incipientes, as lideranças cobravam do governo medidas em favor da segurança: no início cobravam medidas contra os indígenas, mas logo advertiram o governo da presença de bandidos, criminosos e forasteiros que deveriam ser combatidos com força policial para uma região que gradualmente aumentava sua população. O censo do Império em 1872 encontrou uma população de 5.522 pessoas na região Sudoeste: 2310 em Rio Verde, 1815 em Jataí e 1.397 em Torres do Rio Bonito (35).
Neste contexto, os edifícios da arquitetura oficial deviam impor e manter a ordem em uma região que parecia endereço de fugitivos e contraventores de toda espécie. O resultado era que a tranquilidade pública andava quase sempre alterada. Em 1890, por exemplo, o delegado de polícia de Rio Verde observou para o viajante português Oscar Leal que a região contava com mais de cinquenta criminosos fugidos de vários pontos dos estados vizinhos (36). Em 1894 a situação se agravou. Com a fragilidade da estrutura policial, a concentração dos marginais aumentou. Ofícios chegavam à Intendência de Jataí pedindo a prisão de desertores. Considerando o tamanho diminuto da cadeia local, a solução seria construir um presídio: na divisa de Jataí com Mato Grosso, onde seriam “recolhidos os indivíduos de qualquer sexo, tidos por vagabundos e desordeiros, os condenados e os remetidos pelas autoridades policiais ou judiciárias” (37). A função era clara: marcar definitivamente o poder do Estado, defender as divisas e “limpar” a região dos “indivíduos turbulentos que concorriam para agitações” (38). O projeto, com alterações, foi sancionado em 1899, mas não se concretizou e as lideranças políticas tiveram que se contentar com as modestas instalações das cadeias locais. Para minimizar estes problemas, em 1893, o Intendente de Jataí, José Carvalho Bastos, refez o Código de Posturas Municipal. Dentre várias medidas objetivando a “prevenção”, apenas admitia a presença de pessoas estranhas nas casas, se elas estivessem exercendo alguma profissão. Os vagabundos e andarilhos sem rumo deviam permanecer de fora. Do mesmo modo, as “pessoas desconhecidas”, interessadas em residir no município, deveriam apresentar-se formalmente na Intendência, informar os objetivos da mudança e quais eram seus meios de vida.
O século 20 teve início, mas o panorama de insegurança pública persistia. A região sudoeste permanecia, de acordo avaliações das lideranças locais, um próspero “viveiro de criminosos” que vegetavam “à sombra da impunidade” (39). Entretanto, os relatórios oficiais e a imprensa insistiam em dizer que a situação era segura. Para O Goyaz, por exemplo, órgão do Partido Liberal, Rio Verde, em 1910, era uma ilha de paz. Uma comarca “civilizada e próspera” onde os “criminosos eram perseguidos” sem trégua. Em Rio Verde, as autoridades cumpriam seus deveres, a população obedecia às leis e tudo caminhava para a prosperidade (40).
De todos os edifícios de Câmara e Cadeia edificados no sudoeste de Goiás somente o de Rio Verde sobreviveu: o de Torres do Rio Bonito foi demolido na década de 1950 e o de Jataí em 1963. Ao longo da segunda metade da década de 1920, com o fortalecimento das Intendências e a tendência de separação dos poderes judiciários, administrativos e penitenciários, os edifícios de Câmara e Cadeia tornaram-se obsoletos. A sociedade, de maneira geral, não mais desejava ver a Intendência junto com a Cadeia e o programa que aglutinava funções à concepção daqueles exemplares da arquitetura oficial foi desmembrado. As câmaras municipais não tardariam a construir suas sedes e o judiciário os espaços no fórum. As intendências seriam os embriões das prefeituras e as cadeias passariam a ser isoladas, preferencialmente na periferia ou além do espaço urbano.
notas
1
BERTRAN, Paulo. História da Terra e do Homem no Planalto Central. Brasília, Solo, 1994.
2
Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1828, Página 74 Vol. 1 pt I (Publicação Original) <https://bit.ly/3B2svbW>.
3
Idem, ibidem, artigo n. 71.
4
Resolução n. 6 (1848).
5
A esse respeito ver: NETO, Antônio Teixeira. Evolução histórica e geográfica das fronteiras do Estado de Goiás. 2001. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/215/o/teixeira_neto_ant_nio_evolu__o_hist_rica.pdf. Acesso em 25 ago 2023.
6
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. O poder municipal e as casas de câmara e cadeia. Semelhanças e especificidades do caso potiguar. Natal, EDUFRN, 2012, p. 86.
7
SMITH, Robert C. Arquitetura Colonial Bahiana. Salvador, Edufba, 2010, p.13-20.
8
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Op. cit., p. 86.
9
Ata Casa de Câmara de São Paulo, 7 jun. 1653, v. 6 p. 32. Apud BARRETO, Paulo Thedin. Casas de Câmara e Cadeia. Arquitetura Oficial I. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo/Iphan, 1978, p. 253.
10
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás. Goiânia, Sudeco, 1979, p. 59.
11
SILVA NETO, Eurípedes Afonso da. Panorama da Arquitetura em Goiás: Séculos 18, 19 e 20. Tese de doutorado. Brasília, UnB, 2022, p. 578.
12
ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Op. cit., p. 72.
13
STACCIARINI, Agostinho. Patrimônio histórico: aliança entre o passado e o presente. Goiânia: Bandeirante, 2006.
14
COELHO, Gustavo Neiva. Guia dos bens imóveis tombados em Goiás: Vila Boa, V. I. Goiânia, IAB, 1999.
15
In: Memórias Goianas. Relatórios dos Governos da Provincia de Goiás 1861-1863. Goiânia, UCG, 1998, p. 88-94.
16
FRANÇA, Basileu. Pioneiros. Goiânia, UFG, 1995, p. 205-206.
17
MELLO, Dorival de C. Nos porões do passado 3. Jataí, Torelli, 2016, p. 82.
18
MELLO, Dorival de C. Nos porões do passado. Jataí, Sudográfica, 2002, p. 262.
19
VASCONCELLOS, P. de Brito e. Secção inedictotial. Tribuna Livre. Goiás, ed. 0352, 30 nov. 1883, p. 4 <https://bit.ly/3VzS8In>.
20
FRANÇA, Basileu. Op. cit., p. 220.
21
Idem, ibidem, p. 221.
22
MELLO, Dorival Carvalho. Jatahy — Páginas Esquecidas. Jataí, Sudográfica, 2001, p. 48.
23
LEAL, Oscar. Viagem às Terras Goyanas. Lisboa: Typografia Minerva Cenral, 1892, p. 178 <https://bit.ly/3CNnsN8>.
24
PINTO, Alfredo Moreira. Apontamentos para o Diccionario Geographico do Brazil (V. I). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1894, p. 276 <https://bit.ly/4fRKp0b>.
25
Expediente. Correio Official. Goiás. 14 fev. 1874, n. 6, p. 2 <https://bit.ly/4995OPS>.
26
PINTO, Alfredo Moreira. Op. cit., p. 444.
27
Idem, ibidem, p. 444.
28
SILVA NETO, Eurípedes Afonso da. Op. cit., p. 568.
29
Escritura de Doação do edifício da Casa de Câmara e Cadeia. Cartório do 1º Ofício 16 de abril de 1885. In: MELLO, Dorival de C. Nos porões do passado 3 (op. cit.), p. 135.
30
Idem, ibidem, p. 135.
31
BARRETO, Paulo Thedin. Casas de Câmara e Cadeia. Arquitetura Oficial I. São Paulo, Unifesp/Iphan, 1978, p. 159.
32
PESAVENTO, S. J. Memória, História e Cidade: lugares no tempo, momentos no espaço. ArtCultura, v. 4, n. 4, Universidade Federal de Uberlândia, 2002, p. 24.
33
Resolução n. 402 (1865). Apud SILVA NETO, Eurípedes Afonso da. Op. cit., p. 37.
34
MELLO, Dorival Carvalho. Op. cit., p. 39-45.
35
Censo do Império do Brasil, 1872, Livro 25477 v. 6 p. 82-89 <https://bit.ly/496taWx>.
36
LEAL, Oscar. Op. cit., p. 179.
37
Camara dos Deputados do Estado de Goyaz. Projeto n. 22, 6 jun. 1895. Apud MELLO, 2001, p. 62.
38
Apud MELLO, Dorival Carvalho. Op. cit., p. 70.
39
Idem, ibidem, p. 72.
40
Notícias. O Goyaz. Goiás, n. 1101, 5 fev. 1910, p. 2 <https://bit.ly/3Zq5o4j>.
sobre o autor
Rafael Alves Pinto Junior é arquiteto formado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, mestre em Cultura Visual e doutor em História pela Universidade Federal de Goiás.