As noticias provenientes de Israel não são só de violência e terror. Eis a seguir uma prova.
A distancia de poucos dias, deram-se aqui duas visitas de arquitetos de projeção internacional. Ambos se apresentaram nas principais universidades do país, em palestras que atraíram grande público – muito maior do que se pode considerar comum em eventos desse tipo.
Trata-se de Álvaro Siza Vieira e Mario Botta. O primeiro visitou Israel em ocasião do recebimento do "Prêmio Wolf", prestigiada distinção distribuída anualmente a artistas reconhecidos; o segundo aqui esteve para participar da inauguração oficial da Sinagoga da Universidade de Tel Aviv, de sua autoria.
Na palestra dada na universidade de Tel Aviv, Siza focalizou quase que exclusivamente o projeto do conjunto de habitação "Malagueira" em Évora, Portugal, já conhecido dos leitores de "Vitruvius".
A apresentação foi caracterizada pela seriedade e modéstia que são a marca desse arquiteto: antes que procurar impressionar por projetos reluzentes e "da moda", Siza preferiu deter-se sobre um único projeto de marcado sentido social e popular, analisando-o em profundidade – seja seus aspectos figurativos, seja seus determinantes programáticos, financeiros e administrativos. E não esqueceu de se referir também às considerações de ordem ambiental, às preexistências físicas e históricas, e às exigências de costume e cultura dos moradores locais interessados.
O auditório acompanhou com atenção a conferencia, que para o público profissional israelense – por demais sujeito àqueles vícios que justamente são o oposto da personalidade de Siza – constituiu uma verdadeira lição de coerência e de exercício profissional objetivo e sensível. E certamente não saiu decepcionado pelo fato de não ter sido defrontado com obras de aparência, como a maioria dos arquitetos costumam mostrar em suas apresentações públicas.
Mario Botta é figura bem diferente e sua presença desperta sem dúvida outro tipo de impressões. Sua arquitetura é em larga medida uma arquitetura de símbolos e abstrações, que ele explica e justifica com uma linguagem rica e exuberante: linguagem verbal que dá expressão a uma filosofia de alto teor espiritual; e linguagem figurativa de rigor geométrico e de uma estética de perfeição, que se manifesta tanto no partido de cada projeto, quanto nos detalhes.
Botta deu ensejo à verificação disto nas explicações com que acompanhou a projeção de diapositivos de algumas de suas obras mais recentes.
Em especial ele se demorou no projeto da Sinagoga da Universidade, que também pôde ser visitada após a conferência, ilustrando de forma tangível os conceitos emitidos.
A sinagoga foi projetada segundo um programa que estabelecia a aspiração a um equilíbrio entre as concepções de vida religiosa e leiga – concepções que hoje assinalam uma crescente divisão de opiniões no seio da população de Israel. E para dar forma a esta aspiração, o programa construtivo estabelecia que o edifício seria constituído por dois espaços absolutamente simétricos e equivalentes em seu tratamento arquitetônico: um espaço para orações (freqüentado naturalmente em especial pelos estudantes religiosos praticantes), e um espaço para reuniões e conferências onde os aspectos ético-espirituais do judaísmo seriam abordados e discutidos de um ponto de vista de cultura leiga e universal.
Esta foi uma solução conciliatória que se adotou diante da discutível e discutida decisão de erguer um edifício religioso no "Campus" universitário. E ela foi tomada também em virtude do caráter "não sagrado" do local de culto judaico (que santifica o conteúdo das preces sem dar demasiado peso ao lugar onde elas são pronunciadas.
E ao fato de que sob o rótulo de "judaísmo", muitos âmbitos de exercício intelectual ou espiritual não litúrgicos podem encontrar um legitimo relacionamento leigo e aberto.
Tudo isto se reflete na arquitetura do edifício: dois ambientes de planta quadrada idêntica, servidos por um átrio comum, desenvolvem-se em altura assumindo gradativamente a forma cilíndrica, que admite a luz para o interior, fazendo-a jogar com ricos efeitos sobre o muro de pedra rosada nos diferentes ângulos e horas do dia.
Apesar das modestas dimensões, o edifício exibe um monumentalismo não-retórico, e introduz uma nota de contida variedade no panorama mais uniforme e um tanto monótono das adjacentes faculdades. Os dois volumes dos espaços principais, erguendo-se acima do embasamento do piso de entrada, fornecem – uma vez superada a surpresa pela incomum simetria, uma variedade de perspectives que se movimentam segundo o deslocamento do observador ao redor do edifício.
A visita dos dois citados arquitetos concedeu uma ocasião palpável de observar as solicitações contraditórias do exercício profissional, e de vê-las tratadas com uma mesma medida de responsabilidade e consciência: de um lado a modesta e quase anônima atitude de um serviço prestado com exclusiva finalidade de dar honesta solução a problemas concretos do indivíduo ou da coletividade; de outro a capacidade da arquitetura de criar um entorno construído para uma idéia, e de assim elevar o conceito do "habitat" a um nível de abstração que foge dos limites do interesse puramente artesanal.
Em ambos os casos, o de Botta como o de Siza, trata-se de características que confirmam a essência do discurso arquitetônico como linguagem de cultura.
notas
[publicação: junho 2001]
Vittorio Corinaldi, Tel Aviv Israel