A primavera não trouxe ainda o sol e as tíbias temperaturas que fazem esquecer o triste inverno. Sob um céu continental coberto persistentemente de nuvens, os eventos culturais sobre a arte e a arquitetura se superpõem, obrigando a ubiqüidade dos que não desejam perder vernissages e inaugurações. Difícil ficar fechado entre quatro paredes de uma exposição com a intensidade da experiência urbana que significa percorrer os espaços de Paris. É impressionante verificar como uma metrópole destas dimensões pode renovar constantemente os seus bairros, articulando e integrando as velhas construções com as novas intervenções. É um maravilhoso exemplo de resgate do espaço público, de refuncionalização de prédios e de criação de áreas verdes comunitárias, o conjunto do Parque de Bercy, com a restituição do quarteirão tradicional e dos pátios internos nos blocos de apartamentos, e a transformação dos ancestrais armazéns de vinhos em lojas, bares e restaurantes. A renovação do entorno da Biblioteca Nacional vai criar o novo bairro de “Paris Rive Gauche”, com moradias, escritórios, centros culturais e universitários, para uma nova população de 15.000 moradores, humanizando a desproporcionada escala monumental da inóspita biblioteca de Dominique Perrault. Também na avenida Daumesnil, o elevado da ferrovia, com os grandes arcos de tijolos abandonados por décadas, foram reutilizados os espaços para lojas de artesãos e nos trilhos superiores criou-se um longo passeio público verde que permite inéditas visões da cidade percorrendo-a desde a altura de um terceiro andar. Justamente destes percursos na compacta malha haussmaniana, o que demostra que as cidades ainda não morreram e que o espaço público não é uma “terra de ninguém”, mas pode ter valores culturais identificados com as necessidades funcionais e espirituais da população, que é possível percorrer como flaneur a Avenue des Champs Elysèes, e maravilhar-se com uma exposição histórica das ferrovias, descobrindo que em 1860, na época de Napoleão III, havia uma locomotiva que circulava na França à 120 quilômetros por hora. E na restrita área histórica ao longo do Sena, o prazer de visitar as exposições dos desenhos e riscos de Leonardo da Vinci no Louvre, as fantasias oníricas surrealistas de Magritte no Jeu de Pomme, e os sonhos e anjos de Chagall no Petit Palais.
Com semelhante intensidade, Bruxelas é centro de várias atividades artísticas e arquitetônicas: no fim de semana se desenvolveu um grande festival de jazz em todas as principais praças do centro, culminando na expressiva e belíssima Grand-Place, onde se resume grande parte da históoria da arquitetura belga, numa simbiose de alta densidade estética. Que diferença com a banal, triste e intrascendente monumentalidade dos novos prédios do Parlamento Europeu, que deveriam ter sintetizado culturalmente o melhor da arquitetura e do desenho urbano da comunidade, em vez de construir um ambiente cinza e burocrático.
Neste contexto se desenvolveram duas atividades que deveriam ser tido articuladas, em especial hoje quando se fala da integração entre os diversos mundos culturais, ou entre América Latina e Europa. Com um dia de diferença – 22 e 23 de maio – tivemos duas ocorrências significativas. O júri do Prêmio Mies van der Rohe (da Unidade Européia, enquanto o da América Latina ficou suspenso) formado por David Chipperfield, Aaron Bersky, Eduardo Bru, Ingeborg Flagge, Shane O’Toole, Matthias Sauerbruch, Jazuyo Sejima, Deyan Sudjic e Alejandro Zaera-Polo, selecionaram a obra de Zaha Hadid – o terminal Hoeinheim Norte em Estrasburgo –, entre 269 participantes. Este importante evento não se relacionou com a inauguração da noite seguinte (onde com certeza nenhum dos membros do júri participou) da exposição organizada no CIVA – Centre International pour la Ville, L’ Architecture et le Paysage –, sobre o tema “Cruauté & Utopie. Villes et Paysages d’Amerique Latine”.
O severo prédio do CIVA foi transformado em uma sinfonia colorida e movimentada, por uma chuva de fitas plásticas em arco-íris, contrastando com o rigor da arquitetura do quarteirão: o arquiteto Roberto Behar e a pintora Rosàrio Marquardt, de Miami, realizaram o desenho da exposição, resgatando os fortes cores que caracterizam algumas manifestações cultas e populares da arquitetura na América Latina. Organizada ao longo de um ano por o professor da Miami University, Jean-François Lejeune, a mostra e o documentado livro-catálogo, tentam estabelecer a continuidade histórica das cidades latino-americanas, desde a colônia até hoje, a partir dos componentes urbanísticos, arquitetônicos e culturais que marcaram, tanto a crueldade da colonização – que acabou e submeteu as populações originais do Continente e do Caribe –, como a crueldade atual identificada com a infinita miséria dos milhões de habitantes marginalizados; assim como a constante procura de construir a utopia latino-americana, desde a aplicação das Leis das Índias, até o projeto de Brasília.
Ainda estão presentes cidades como Quito, com o seu centro histórico, e Havana e Buenos Aires, ilustradas por painéis de cartões postais, o núcleo principal da exposição se centrou nos representantes do Movimento Moderno no México, no Brasil e na Venezuela. As figuras de Juan O’Gorman, Luis Barragán e Carlos Raul Villanueva, estão presentes nos desenhos, pinturas, projetos e maquetes das principais obras realizadas entre os anos 30 e 50. Sem duvida, é marcante a imagem do Brasil, com uma importante apresentação da evolução da Primeira Modernidade, desde o MES até Brasília, e culminando com Lina Bo Bardi. A dura realidade atual ficou fora do ambiente colorido: numa sala preta, 15 aparelhos de TV mostram vídeos com imagens das atuais contradições sociais e urbanísticas, elaboradas pela artista belga Chantal Akerman.
Considero muito bem sucedido o livro, que contém textos sobre a realidade urbana da região e analise das cidades apresentadas na exposição, escritos pelos principais estudiosos, historiadores e críticos da arte, arquitetura e urbanismo da América Latina. Com uma introdução geral de Jean-François Lejeune e de Eduardo Subirats, e alguns ensaios sobre o período colonial, onde se destaca a análise da paisagem no Brasil de Carlos Martins; os textos de Lauro Cavalcanti, Carlos Eduardo Comas, Jacques Leenhardt e Olivia Fernandes de Oliveira, caracterizam “os anos de fogo” da modernidade brasileira. Outros autores definem a especificidade das contribuições de O’Gorman, Barragán e Villanueva, enquanto Adrián Gorelik e Roberto Segre documentam a evolução no século XX de Buenos Aires e Havana; O livro se fecha no infinito muro da dura fronteira entre Estados Unidos e México, com um texto de Roberto A. Gonzàlez sobre as culturas popular e culta em Tijuana, símbolo das contradições econômicas e sociais criadas pela recente globalização. Esperemos que este livro, originalmente em francês, que vai ser traduzido para o inglês, circule na América Latina, e continue aprofundando o diálogo entre os arquitetos e urbanistas do nosso Hemisfério.
notas
Colaboração nas imagens de Paulo Dizioli e Valentina Moimas.
[publicação: maio 2003]
Roberto Segre, Paris