Três temas têm se destacado no noticiário recente: o acidente nas obras do metrô, as alterações no projeto da reforma da sede dos Correios e o PAC divulgado pelo Governo. Todos trazem à tona, por vezes de forma dramática, o problema e a importância do planejamento e do projeto, suscitando a presente reflexão.
Curiosa a tarefa do arquiteto: ao elaborar um projeto lida com algo que não existe, propondo um espaço a ser construído; quando planeja, propõe situações futuras e estratégias para sua realização. Planejar e projetar, portanto, significa imaginar e propor um futuro, seja em escala pequena, doméstica, seja em escala grande, urbana ou mesmo nacional.
Sem sonhar o ser humano não progride; e sem propor futuros o país não se desenvolve e torna-se presa passiva de lógicas setoriais, parciais, limitadas aos interesses corporativos e egoístas de setores do mercado. O desenvolvimento, para ser justo e eficaz, exige o prévio planejamento e projeto; assim como a proposição das estratégias que levem a construir o objeto imaginado. Como dizia Einstein:
“A imaginação é mais importante do que o raciocínio, pois amplia o campo das possibilidades”.
Não é apenas o arquiteto que lida com o futuro; no campo do planejamento sua atuação é compartilhada; e há campos de projeto específicos a outras disciplinas. Porém, na história da humanidade, coube ao arquiteto boa parte das propostas de futuros espaços, hoje conhecidos como os monumentos e as cidades que, concretizando os respectivos projetos, representam a cultura das diversas épocas da história. Aliás, até o século XIX o arquiteto não se limitava a riscar seu projeto; ele conduzia a própria edificação, pois o engenheiro surge apenas na era napoleônica, quando da criação da Ecole Politechnique, desenvolvendo-se ao longo daquele século em resposta às exigências de especialização da revolução industrial.
O desenvolvimento brasileiro está eivado de demonstrações de atraso por parte dos que presunçosamente se autodenominam elites, seja as governamentais, seja as oligárquicas. Sua ocasional ignorância e egoísmo causaram atrasos ao desenvolvimento nacional, no Império e na República, estendendo a escravatura até 1888, recusando o capitalismo que já florescia na Europa, abandonando ferrovias ou ignorando inúmeros bons projetos. Em São Paulo, a falta de planejamento e de respeito por projetos atrasou, por exemplo, de 20 anos o início das obras de canalização do Tietê urbano e, mesmo quando ele se realizou, abandonou-se o projeto de Saturnino de Brito (1928) que preservava a várzea como “território pertencente ao rio”; mais tarde (1966) ignorou-se o esquema viário do vale do Tietê que propus, contratado pelo prefeito Faria Lima, e se deixou de completar nessa mesma região o projeto de parque ecológico de Burle Marx (1975) que se estenderia de Osasco até Itaquaquecetuba. Tampouco se utilizou o projeto de Niemeyer (1986). Ocasiões perdidas cujas conseqüências sofremos...
É necessário que ocorram desastres e mortes para que a emoção, da qual está carregada nossa gente, obrigue a mídia e as autoridades a perceberem a importância do planejamento e de um bom projeto. Obras públicas soem ser licitadas sem um projeto completo e freqüentemente as próprias empreiteiras preferem que assim seja, dando origem a revisões e aumento de custos durante as obras. A inexistência de projeto, sua insuficiência ou baixa qualidade, resultam sempre em elevação de custos, quando não em péssima construção ou tragédia.
No caso de projetos de arquitetura, no exterior dá-se mais importância a quem projeta os espaços em que vivemos, enquanto aqui a freqüente falta de visão e ignorância até prescindem de projetos ou não os valorizam. Como compreender que projetos de obras públicas, do Parque Anhembi ao Correio Central, ou obras privadas em cujos anúncios raramente comparece o nome do arquiteto autor, sejam realizados ou alterados sem a participação de quem os imaginou, evitando inclusive que eles acompanhem a construção a fim de fazer adequações que respondam a situações supervenientes?
No caso do Anhembi, por ação de sucessivos responsáveis, abandonou-se a bela praça projetada por Burle-Marx e o terraço gastronômico (precursor das praças de alimentação dos shoppings) de nosso projeto, colando-se em seu lugar um grotesco anexo ao pavilhão de exposições, desmerecendo esta obra pioneira. Sempre explicitamos, aliás, que sua expansão dever-se-ia dar nos espaços ociosos do Campo de Marte, do outro lado da rua, e não destruindo os generosos espaços públicos do projeto de 1963-69!
Fazem muito bem os arquitetos da equipe UNA de reclamar na justiça por ter sido alterado o belo projeto que transforma o Correio Central em centro cultural, escolhido através concurso nacional; e por não terem sido solicitados a acompanhar e a conduzir sua execução. Cabe também uma chamada aos arquitetos que ocasionalmente são encarregados por superiores hierárquicos ou clientes, de alterarem o projeto de colegas...A ética mais comezinha os obrigaria a contatar os autores originais discutindo com eles as eventuais alterações necessárias à fase de construção.
Finalmente, a respeito do tema aqui focado, cabe saudar o PAC, denotando um planejamento integrado raro no setor público, onde ele é mais necessário, com seus objetivos de longo prazo a serem alcançados mediante estratégia imediata, sabiamente envolvendo recursos públicos e privados. Quanto à defesa do projeto, lato senso, caberia ao Instituto de Arquitetos e entidades congêneres, dar apoio aos colegas da UNA e aproveitar o ensejo para iniciar campanha em defesa do planejamento e do projeto, exigindo respeito a seus autores, valorizando o seu papel, a fim de interromper a visão atrasada que, ao prescindir de planos ou desvalorizando projetos, prejudica o desenvolvimento do país.
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Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, Primeiro Caderno, 21 fev. 2007, p. 2.]
[publicação: junho 2007]
sobre o autor
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista.
Jorge Wilheim, São Paulo SP Brasil