"…E depois há aqueles que criam um novo espaço onde não deveria haver tido nenhum espaço. Esses são os profetas. Os poetas do jogo."
(Osvaldo Soriano, Memórias do Técnico Peregrino Fernández)
O futebol é uma religião à procura de um deus. Aquele que conhece essa revelação (que titula um livro de Manuel Vázquez Montalbán) compreende porque é possível atribuir ao futebol uma natureza mais transcendente que a da vida ou da morte, proclamá-lo mestre de valores morais ou comparar a existência a um jogo de futebol e porque tais máximas possuem a mesma severa autoridade na hierarquia da filosofia do futebol, quem quer que seja que as tenha pronunciado.
Não se é culto e sábio do futebol por dispor de um critério elaborado mediante conhecimentos bem adquiridos e manejados sobre a matéria, mas por possuir as faculdades de uma inteligência que opera na concentração e tensão mental e emocional prévia à explosão da reação passional que marca a culminação de uma jogada, abarcando todos os matizes possíveis que cobrem o espectro que vai da euforia à desolação. Se não existe a disposição à vivência emocionada, exaltada, não pode dar-se a um indivíduo o conhecimento verdadeiro sobre o futebol. Sem paixão não funciona nem a inteligência nem a emotividade intrinsecamente precisas para compreender e estar aberto a receber as revelações do futebol.
Qualquer lugar pode ser transformado em cenário onde se improvisar uma partida, e essa é uma das razões que o fizeram mundialmente popular, é possível praticá-lo em qualquer terreno, só basta dispor de uma bola. Mas esses simulacros nem sequer aspiram a comparar-se com o autêntico ritual: o sagrado, aquele que é celebrado num estádio cujo interior se isola, onde a passagem do tempo se concentra no espaço do terreno de jogo. A ação transforma o lugar. A multidão, que assiste à cerimônia dividida em dois bandos, integra um só corpo que é servo emocional dessa ação e seus atores. Seu estado constitui uma forma da loucura que define a norma de funcionamento psicológico dos indivíduos amalgamando-se em um só eu, afirmando e reprovando simultaneamente as afirmações desdenhosas de Freud sobre o caráter dos egos coletivos: impulsivos, inconstantes, irritadiços, influenciáveis, crédulos, carentes de sentido crítico…
Nas antípodas desse estado mental, onde não existe o sentimento, o futebol seria uma mera exibição de destrezas físicas e estratégias técnicas. Não seria mais que um esporte, um entretenimento lúdico, não poderia ser essa entelequia contemplável indistinta ou simultaneamente desde a dimensão do belicoso e a da poética, da estética e do espiritual. E não seriam precisos templos para esse culto onde vibrasse a paixão emergindo desse estado irracional da massa que comparece a um estádio disposta a suar e consumir seu espírito em transe ante o jogo, fazendo vibrar sua voz única para adorar o carisma dos que são seus profetas. Não teria razão para que alguns desses templos fossem autenticamente lugares míticos universais, imbuídos de uma intensa aura de santuário que se percebe inclusive quando estão absolutamente vazios, antes de ser totalmente transmutados pelas energias dos jogadores atrás da bola e suas torcidas.
As estruturas dos estádios estão impregnadas de uma substância feita das palpitações massivas provocadas pelos triunfos e pelas derrotas. O vínculo afetivo com ele é quase insubstituível e a sofisticação arquitetônica não tem nada a fazer para impor-se a essa camada emocional e ao sentimento, ainda que o novo estádio de Wembley tente persuadir a sua torcida comunicando-lhe as complacências que Beckham e Rooney dedicaram ao projeto de Norman Foster para garantir aos aficionados ingleses que vão sentir-se orgulhosos de um estádio que imediatamente sentirão como próprio. Sabem que um estádio sem memória é um lugar inexistente. Justificam a identidade de um novo estádio que tem a difícil tarefa de ocupar o lugar do mito do estádio que foi cenário de legendárias façanhas balompédicas, onde a Inglaterra se coroou por uma única vez na sua história como campeã mundial na final de 1966.
A realidade da “insubstituibilidade” sentimental do estádio para o seguidor de uma equipe se exemplifica com a história da demolição do Gasômetro, o antigo campo do clube San Lorenzo de Almagro –um dos cinco grandes do futebol argentino-, em cujo prédio se ergueu um hipermercado que as torcidas do clube abominam, que passado o tempo seguem vendo com uma tristeza sincera nesse lugar o vazio deixado por seu estádio original feito de tábuas. A antítese a esta história seria o suntuoso estádio do rei Fahd da Arábia Saudita, – mencionado pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano - que pese, ao seu palco de mármore e ouro e tribunas atapetadas, não tem memória e por isso carece de alma.
O desenvolvimento das técnicas construtivas, estruturais e o desenho pensado através do movimento interno das pessoas fizeram com que os estádios sejam mais cômodos, eficientes e seguros, mas em muitas ocasiões tudo isto fez com que se perca a proximidade que o futebol necessita, o público necessita conectar e os jogadores necessitam dessa conexão. O torcedor não se conforma em ser espectador, necessita sentir-se participante da cerimônia, não é à toa que a torcida do Boca se auto denomine “a número 12”, para situar-se no campo como décimo segundo membro da equipe. Os novos estádios não deveriam exorcizar essa magia, este pathos que fez deste o rito coletivo universal de nosso tempo. Projetando um estádio, o arquiteto não deve preocupar-se com o ponto convergente da estrutura – o gramado - mas refletir sobre toda a área centrípeta a este e o que isto significa. O estádio deve ser concebido para a vivência do público, conscientes disto Herzog & de Meuron decidem que o Allianz Arena lhes receba e lhes acolha com sua pele iluminada com a cor das equipes que disputam uma partida em seu interior.
Mitificados pela lembrança das grandes façanhas que neles sucederam, pela carga emocional e a comunhão mística das quais suas arquibancadas foram testemunha, estádios que a história fez clássicos: o Centenário de Montevidéu, onde se celebrou a primeira final de um Mundial de Futebol em 1930; o Maracanã do Rio de Janeiro, lembrança infausta do maracanazo, a final de 1950 na qual o Brasil foi vencido pelo Uruguai em seu próprio domínio; o Camp Nou, o Bernabeu ou San Mamés, a catedral do futebol espanhol…A Bombonera, o estádio do Boca Juniors, que ”não treme... pulsa” ou o belo Olímpico de Munich, magnífica obra de engenharia do século XX projetada por Frei Otto.
Mas se o estádio se cria através das lembranças e vivências que aconteceram em seu interior é obrigatório mencionar o Estádio Azteca da capital mexicana, o único coliseu onde foram celebradas duas finais mundiais e que pôde contemplar a glória de Pelé em 1970 e comover-se ante a criação da mais bela jogada de todos os tempos em 1986, onde esta religião começou a vislumbrar que seguramente por fim havia encontrado a seu deus.
notas
[artigo publicado originalmente, com o titulo "La Cancha es el santuario", no suplemento ABC De las Artes e las Letras, set. 2006]
[tradução ivana barossi garcia]
[publicação: maio 2007]
sobre o autor
Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste, titulares do escritório ¿btbW, são autores do livro “Enric Miralles: Metamorfosi do paesaggio”, editora Testo & Immagine, 2004.
Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste, Barcelona Espanha