Os últimos congressos da Sociedade Ibero-americana de Gráfica Digital, SIGraDi, têm sido sempre precedidos por workshops, em sua maioria patrocinados por empresas do ramo de software gráfico que patrocinam o evento, tal como ocorre nos demais congressos da área. Contudo, no último SIGraDi, ocorrido em novembro de 2009 na Universidade Presbiteriana Mackenzie, procurou-se dar aos workshops um direcionamento mais específico, com o objetivo de divulgar as tecnologias que o Prof. José Duarte, um dos keynote speakers do evento, chama de “materialização digital”.
A Figura 1, que ilustrava a página de descrição dos workshops no site do SIGraDi 09, explica visualmente como esses workshops estavam relacionados entre si, e qual a sua relevância. Em primeiro lugar, é preciso explicar que esse esquema foi inspirado pelo diagrama proposto por Mitchell e McCullough na segunda edição do livro Digital Design Media, de 1994 (Figura 2).
O esquema de Mitchell, que seria um dos keynote speakers do SIGraDi 09 – mas que infelizmente não pode viajar ao Brasil, por motivos de ordem pessoal – estabelecia pela primeira vez a correlação existente entre os modelos digitais, etéreos, intangíveis, encerrados dentro da caixa preta do computador, e os objetos da vida real – os desenhos, as maquetes e os edifícios. Mais que isso, explicava como era possível migrar de uma situação à outra. Por exemplo, se você possui uma maquete e precisa de um modelo digital, pode fazer uma digitalização 3D. Se você possui um modelo digital e precisa obter um edifício, pode lançar mão de um sistema de CAD-CAM. E assim sucessivamente. O esquema não excluía a prática ainda corrente de converter um modelo digital tridimensional em desenhos bidimensionais, para então levá-los à obra para realizar a construção. Mas mostrava, visualmente, que o caminho do CAD-CAM era mais curto e direto, evitando o acúmulo de erros típicos dos processos de conversão desnecessários.
O esquema de Mitchell marcou, de uma certa forma, o fim da chamada era da “arquitetura digital”, na qual existiam duas realidades, nem sempre condizentes entre si: a do computador, dos belos renderings, perfeita e impossível de ser realizada, e a do mundo real, onde perduravam os meios de produção artesanal do edifício herdados praticamente da idade média e os meios de representação baseados no sistema de projeções bidimensionais de Gaspar Monge, desenvolvido nos fins do século XVIII.
Mas é claro que a publicação desse esquema não foi suficiente, por si só, para alterar a situação nas escolas, escritórios de arquitetura e canteiros de obras. Desde o final da década de 1980, os arquitetos vinham mergulhando em um mundo de fantasia eletrônica e se afastando cada vez mais da realidade palpável das maquetes “físicas” – adjetivo que se tornou necessário com a concorrência das chamadas “maquetes eletrônicas” – e da obra construída. Mitchell teve a sensibilidade de perceber que isso estava mudando, e acompanhou o trabalho de Frank Gehry, um arquiteto pioneiro nessa segunda – ou talvez terceira – revolução da maneira como a informática é aplicada ao processo de projeto.
Ao longo da década de 1990, Mitchell acompanhou os primeiros experimentos de digitalização de esculturas por Gehry, com o uso de um sistema da CAT-SCAN, até então usado apenas para finalidades médicas. Relatou o uso de sistemas de prototipagem rápida para a confecção de maquetes de edifícios, como a stereolitografia e o LOM (layered object manufacture), técnicas caríssimas e até então só justificáveis para uso no processo de projeto de objetos que seriam industrializados em larga escala. Finalmente, descreveu o uso de sistemas CAD-CAM, até então usados apenas pelas indústrias naval e aeroespacial, na construção civil: equipamentos de corte e de encurvamento de chapas metálicas controlados por computador, na produção das placas de revestimento do museu Gughenhein de Bilbao, e o uso de uma enorme fresa de controle numérico (CNC) para esculpir formas orgânicas em isopor, que serviriam de molde para pré-fabricar elementos da fachada do conjunto Neue Zollhof, em Dusseldorf. A descrição desses experimentos pioneiros foi registrada por Dennis Shelden em sua tese de doutorado, intitulada Digital surface representation and the constructibility of Gehry's architecture (2002), orientada por Mitchell (disponível para download em http://dspace.mit.edu/handle/1721.1/16899).
Prevendo a necessidade de preparar profissionais para o futuro, como Diretor da Escola de Arquitetura e Urbanismo do MIT, Mitchell começou, ainda no final da década de 1990, a investir em equipamentos de prototipagem rápida. A primeira máquina adquirida pela escola foi uma FDM (fusion deposition modelling) da marca Stratasys, seguida por uma cortadora a laser da Universal Laser Systems. Além do laboratório próprio, a Escola de Arquitetura investiu em parcerias com os Departamentos de Engenharia Mecânica e demais laboratórios que já utilizavam máquinas de controle numérico, como tornos, fresas e cortadoras a jato d´água. Juntamente com o acesso aos equipamentos, Mitchell oferecia aos alunos da escola uma série de disciplinas ligadas ao tema, dentro do programa de pós-graduação em Design and Computation. Mas essas disciplinas não se restringiam a treinamentos técnicos no uso dos equipamentos disponíveis: incluíam o estudo da gramática da forma e do desenho paramétrico (cujas bases teóricas já haviam sido publicadas pelo próprio Mitchell em sua obra seminal A Lógica da Arquitetura, de 1990 – traduzida para o português em 2009), o ensino de técnicas de programação para gerar formas e controlar as máquinas, e disciplinas de projeto que tiravam partido dos recursos disponíveis, propondo a fabricação de maquetes e protótipos.
No Brasil ainda vivemos, na maioria das escolas e escritórios, a era da “fantasia digital”, em que existe pouca relação direta entre modelos geométricos digitais e o espaço construído. Por esse motivo, os workshops do SIGraDi 09 tiveram como objetivo divulgar as novas tecnologias, que já começam a se tornar economicamente viáveis para nós. Os workshops enfocaram 5 temas distintos: (1) a modelagem paramétrica, (2) a fabricação digital, (3) a modelagem geométrica baseada em NURBS, (4) a prototipagem rápida, e (5) a digitalização 3D.
Para que esses workshops pudessem ser oferecidos com a qualidade desejada, foi fundamental a colaboração de pesquisadores altamente especializados nessas áreas, trazidos de diferentes partes do Brasil e da Europa: Arthur Lara, professor da FAU-USP, Gonçalo Castro Henriques e Ernesto Bueno, mestres pela Universidad Internacional de Catalunya, Affonso Orciuolli, professor da Universidad Internacional de Catalunya, Regiane Trevisan Pupo, pós-doc no LAPAC-Unicamp, e Arivaldo Leão Amorim, professor da UFBA. Dentro desse contexto, o Workshop 1, de modelagem paramétrica, foi estratégico por apresentar uma nova possibilidade de geração de formas que pode ser associada ao uso dos novos meios de produção de maquetes e do edifício, tirando proveito da programação e agregando valor ao processo projetual como um todo (Figura 3).
Além do apoio desses pesquisadores, o apoio de empresas que comercializam algumas dessas tecnologias foi essencial para o sucesso da proposta. A empresa DS4, uma empresa paulistana que fabrica fresas de controle numérico, emprestou, sem qualquer custo para a organização do congresso, uma fresa CNC de 3 eixos de grande formato, que foi instalada no coreto em frente ao edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie (Figura 3). A máquina permaneceu por mais de uma semana no local, funcionando ininterruptamente, cortando MDF e esculpindo isopor, de acordo com os modelos digitais desenvolvidos no Workshop 2, à vista dos congressistas que circulavam entre o auditório e o coffee-break. As peças produzidas foram expostas no Centro de Memória da Universidade Mackenzie (Figura 4).
A também paulistana empresa CCS Engenharia e Manufatura Digital, que representa equipamentos de digitalização no Brasil, expôs e realizou demonstrações, durante os dias do congresso, de equipamentos de digitalização a laser de curto (Vivid 9i, da Konica Minolta) e médio (ZF Imager, da Zoller Frohlich) alcance, além de aplicativos para tratamento dos dados obtidos (Figura 5).
As fotos dos workshops estão disponíveis neste link. Esperamos que os workshops do SIGraDi 09 dêm continuidade, no Brasil, ao processo iniciado por William Mitchell nos Estados Unidos, que já se propagou pela Europa e Ásia, e que já vem se fazendo presente na América Latina.
notas
A comissão organizadora do SIGraDi09 agradece aos professores/pesquisadores que participaram dos workshops, e às empresas patrocinadoras: a Masisa e a Styroform, pela doação do material de consumo para usinagem, a CCS pela exposição de equipamentos de digitalização 3D, e a DS4 pelo empréstimo da fresa CNC e por sua inestimável colaboração e apoio durante todo o evento.
sobre o autor
Gabriela Celani, LAPAC-Unicamp, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNICAMP.
Gabriela Celani, Campinas SP Brasil