"Um bairro na cidade, atracado como um barco, uma casa na praia com o chão de areia, outra camuflada num bairro da cidade e uma que olha para a planície. Como as mostrar?"
Essa é a frase que abre o desdobrável que apresenta a participação portuguesa na Università Ca'Foscari para a Bienal de Veneza de 2010.
Os curadores deram um passo ousado ao encomendar a três artistas e um realizador cinematográfico essa tarefa. Além de generoso, esse passo reafirma a proximidade entre as duas disciplinas, arquitetura e cinema, que raramente têm a oportunidade de coincidir de modo tão direto. Os realizadores discorrem com uma interpretação muito livre sobre os temas arquitetônicos: espaço, série, vazio, paisagem e história. A "carta branca" dada aos artistas oferece uma grande autonomia aos filmes, que nos transformam em voyeurs da nossa própria disciplina, e nos ajuda a perceber matizes e narrativas sobre as quais raramente nos dedicamos a refletir.
Em um primeiro momento, pensar sobre filmes de arquitetura nos remete a longos documentários com entrevistas e explicações complicadas sobre edifícios. Se no Arsenale, para a mesma Bienal, Wim Wenders conseguiu fugir do clichê apresentando um vídeo sobre o Rolex Learning Centre em Lausanne de forma ousada, embora abusasse de técnicas recorrentes e se mantesse demasiadamente partidário da "representação" da promenade em arquitetura, a utlização do recurso do filme no pavilhão português era, a princípio, uma incógnita. De forma muito grata, revelou-se como uma deliciosa surpresa e foi capaz de contribuir com um frescor raro de se encontrar nos distantes pavilhões midiáticos dos Giardini e Arsenale.
Ao entrar no edifício da Università Ca'Foscari nos deparamos com painéis que sucintamente descrevem as quatro casas com uma única fotografia e um pequeno texto. As salas adjacentes tanto no térreo quanto no primeiro andar são usadas para as projeções dos vídeos e para acolher os suportes das maquetes do projeto correspondente.
O filme da artista plástica Filipa César sobre o projeto da Bouça de Álvaro Siza é um percurso, ininterrupto e serial, que através de pórticos, escadas e unidades de habitação, nos levam a visitar a arquitetura de modo labiríntico. O percurso atravessa um túnel da ferrovia, portas de apartamentos, pátios, rampas e escadas, e num sentido sinuoso confunde o espectador ao mostrar de forma pouco cartesiana a regularidade das unidades. Como cineasta, Filipa César usa o recurso da série e o deslocamento horizontal para exaltar o caráter gráfico e dinâmico da repetição, especialmente sobre escadas de acesso e a volumetria superior do conjunto. A presença de moradores é sutil e esta percebe-se mais por conta do ruído no pátio e dentro do apartamento do que no campo visual da câmera. Ciente dos recursos da linguagem cinematográfica, Filipa César não dá espaço à onipotência e onipresença do arquiteto que tudo vê, ou melhor, que "quer tudo ver", e conduz de forma muito rígida o olhar frustrado do incauto espectador. Sentimo-nos frustrados ao querer que a câmera faça outro giro, mais amplo e mais panorâmico, ou que se entre em outra porta, enquanto a realizadora reafirma a sua autoria impondo a sua trajetória, e desse modo nos obriga a dar-nos conta da dissociação fundamental entre a linearidade do discurso do recurso do vídeo e a totalidade do espaço/tempo da arquitetura. Esse jogo contínuo de fraturas e tangências entre as disciplinas é a fonte de regozijo e frustração, e a câmera de Filipa César se ancora continuamente sobre essa dubiedade. O filme narra tangencialmente os intercalços políticos durante a construção do conjunto e as mudanças de valor arquitetônico e social ocorridas durante os trinta anos posteriores. Ela inclui sutilmente um "narrador" inesperado, Alexandre Alves Costa, um dos coordenadores do projeto do SAAL, que através de um monólogo gravado em uma mensagem de secretária eletrônica, explica sucintamente as discrepâncias que levaram ao boicote à construção do conjunto nos anos 70.
As duas casas de Ricardo Bak Gordon em Lisboa, cujo realizador é João Onofre, são apresentadas por um filme hermético, com um toque de surrealismo e com certa "passividade" da câmera que se limita a acompanhar o transporte de um pequeno veleiro em um guindaste, através do skyline da cidade, até pousar delicadamente sobre a piscina. É a antítese do filme de Filipa César, que busca entranhar-se no espaço arquitetônico. A arquitetura, enquanto espaço percorrido pela câmera, está ausente. O espaço interno é mostrado rapidamente -há somente uma cena de cinco segundos do espaço interno da casa- o que reafirma a ideia de Onofre de aproximar-se ao objeto arquitetônico de outro modo, que nesse caso se realiza através do surrealismo e uma certa poesia do veleiro integrado à paisagem interna da casa.
Salaviza tem a tarefa de filmar a casa mais atípica: uma casa unifamiliar dividida em quatro volumes de Manuel e Francisco Aires Mateus em torno a um areal. Assim como Onofre, Salaviza pouco dedica a registrar o espaço arquitetônico, mas a sua experiência profissional como realizador resulta no filme mais "cinematográfico" de todos, com um roteiro linear, protagonistas (Martinho e Germesindo) e um enredo (à espera da família, Martinho em um dado momento suspira "eles devem estar a chegar").
As casas são o cenário do início e o final do filme, enquanto o enredo da busca e espera dos pais de Martinho servem de desculpa para visitar a imensidão das paisagens da região da praia da Comporta, onde se assentam quase de forma "ilegal" as casas. Paradoxalmente, o momento mais arquitetônico é a narrativa de Germesindo sobre as técnicas tradicionais de construção de casas da região, em que explica como se deu a mudança dessa tradição, e como a técnica mais moderna fez desaparecer as casas de "caniço, bracejo e madeira", que os irmãos Aires Mateus resgatam nesse projeto.
O compromisso com as possíveis relações diretas entre filme e objeto arquitetônico é superficial, assim como acontecia com João Onofre, e aqui o filme também carece de tomadas internas. A única sequência interna da casa é uma tomada ao contrário, de dentro para fora, com a câmera estática e as sardinhas assando-se com a paisagem ao fundo, que serve para realçar a característica mais potente desse projeto: a continuidade do chão de areia ao interior da sala, integra-a de modo absolutamente inusual ao seu entorno. Onde Martinho deixa uma tigela em que corta batatas? No chão, enfincando-a. Esse gesto remete à geomorfologia das dunas, os sapais e a presença do estuário do Sado.
O tempo do filme de João Salaviza só não é tarkovskiano porque o filme não é suficientemente longo, mas as cenas da imensidão e infinito das pequenas estradas da Comporta, e o sutil movimento horizontal da câmera ao acompanhar Martinho nos permitem entender o entorno e atentar aos detalhes das cores e a lentidão de um enigmático dia livre de fim-de-semana (?), férias de verão (?), que testemunha o dolce far niente daqueles protagonistas.
O filme de Julião Sarmento sobre a Casa Candeias de João Luís Carrilho da Graça é a melhor surpresa da série de 4 filmes. Uma caricatura muito delicada de três amigas anônimas (enquanto Salaviza se adentra no mundo masculino, de Martinho e Germesindo, agora as protagonistas são exclusivamente mulheres e anônimas), que duranteo dia são sempre acompanhadas pela câmera. Os stills e travellings horizontais se alternam sobre cenas de conversas ininteligíveis, risos, e cenas banais entre a cozinha, piscina e quarto. As atividades de preparação de alimentos enquanto cantam "Give me a reason" de Portishead e a arrumação de roupas são alternadas com imagens de sequências das protagonistas em pé no jardim, em poses inertes -há um paralelo incômodo com as mulheres de Vanessa Beecroft-, mas uma característica mantida ao longo de todo o filme é o sutil quebra-cabeças mental que o espectador deve fazer para entender a disposição dos cômodos na casa.
O espectador tem tempo de observar detalhes profundos de cada movimento das protagonistas, cores de écharpes, tipos de sapatos, taças de vinho, e a surpresa ocorre quando uma voz em off começa a narrar a memória do projeto. Aqui, Sarmento parece querer brincar com a interação entre disciplinas e linguagens. Sua câmera não quer mostrar arquitetura e muito menos fazer com que o espectador entenda didaticamente a sequência de espaços. Assim, a narração da memória, de certo modo, afasta o compromisso da arquitetura com seu filme, e aproxima-a à qualidade textual descritiva. Isenta-se de qualquer obrigação. Nos damos conta de que Sarmento há alguns minutos se dedicava a seduzir-nos pela beleza das três garotas e a despreocupação com a presença da câmera nos transformava em voyeurs extasiados por aquele dia de verão numa casa em Évora. Agora, ao contrário, temos que reativar o canal auditivo, obrigados a voltar à nossa disciplina arquitetônica, pois, dentro de sua banalidade como texto, é a única âncora disponível para terminar de montar o quebra-cabeça mental dos espaços da casa.
O susto não se repete. Um segundo momento de narração é o ápice da sensualidade no filme. Trata-se da mesma memória, desta vez lida em norueguês -os noruegueses que se dediquem a entender o texto agora, porque nós já podemos voltar a gozar do filme!- ilustrada com close-ups dos corpos das três amigas. Mistura interessante entre o texto da memória desta vez ininteligível (mas decifrável graças ao texto anterior), repleto de imagens de joelhos, coxas, orelhas e risos, muito risos, banhados pelo belo pôr-do-sol do Alentejo.
Dentro do panorama da Bienal de Veneza, o pavilhão português foi capaz de contribuir com quatro produções de alto nível. Se este grau de curadoria é o mesmo que veremos na Trienal de Lisboa que ocorre no mês que vem, Lisboa estará repleta de gratas surpresas.