Conheci Jorge Czajkowski por uma dessas casualidades que só um destino muito determinado pode explicar. E, como tantos outros, revelou-se um encontro que mudaria minha vida. Não só profissionalmente e intelectualmente, mas no sentido mais amplo possível, pois a face professoral de Jorge era apenas um lado de sua invulgar capacidade de inspirar e transformar aqueles à sua volta; e o encanto de Jorge – sutil mas imediato – impunha-se, sorrateira e indelevelmente, mobilizando todos os amigos e colaboradores que soube conquistar.
Estávamos em 1995, quando de sua passagem como curador da Bienal de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo – projeto frustrado que, não obstante, renderia frutos inesperados e duradouros, a exemplo de outras iniciativas suas. Seu maior contato em São Paulo era Fabio Penteado, o que já diz muito; por meio de Bete França conheceu Nadia Somekh e daí a mim, então subaproveitados na CDHU. Quase que imediatamente travamos uma amizade que transcendeu diferenças de idade, geografia e trajetória – e, desde então, uma referência crucial. Bússola que me guiou pelos meandros da fruição estética e da apreciação da própria vida, me arrancou das divisórias da repartição e me mostrou outro patamar de existência, continuamente enriquecido pelo seu olhar ao mesmo tempo afetuoso, refinado e mordaz.
Não há como enumerar tudo o que Jorge me ensinou, ou melhor, me fez valorizar de maneira diversa, mais nítida e mais crítica. Ao trazer essa vocação de connoisseur ao campo da arquitetura, tornou-se um mestre na precisão de suas descrições, no sucinto de suas análises, na agudez de suas observações. História, teoria e crítica para ele se fundiam numa apreciação íntima das qualidades intrínsecas da obra arquitetônica; e, como curador, editor e articulista, soube transmitir as sutilezas dessa abordagem de modo a imprimir sua marca como, talvez, um dos mais sagazes críticos de arquitetura que já tivemos.
Na preocupação patrimonial, no reconhecimento da tradição, na admiração do moderno – e também na escrita cuidadosa e elegante – era herdeiro, assim como o amigo e xará Jorge Hue, do olhar convergente de Lúcio Costa; ao mesmo tempo, participou da renovação do debate arquitetônico nos anos 1980 e suas tentativas de construir uma visão mais plural da arquitetura e do urbanismo. Seu apreço pelo passado nunca resvalou para a nostalgia, e sua atenção para o contemporâneo manteve-se sempre imune a modismos, sejam pós, anti ou neomodernistas. Suas análises conseguiam isolar todo esse ruído e trazer à tona o que considerava fundamental em cada objeto, realçando os atributos propriamente artísticos da realização arquitetônica.
A mesma capacidade de reconhecer os méritos e o potencial inerentes a cada obra tinha com as pessoas em geral, e com seus colaboradores em particular. De cada um de nós exigia, e obtinha, uma contribuição que ia muito além do que poderíamos imaginar; nesse movimento, de professor (desde jovem, na FAU UFRJ; depois também no curso de especialização da PUC-Rio) tornava-se colega, e de chefe impositivo passava a companheiro, partilhando aportes e recompensas em seu incessante esforço pela valorização de nosso acervo arquitetural.
O contato com a arquitetura e com os arquitetos cariocas, a identificação e estudos da corrente nativista local, o amor por tudo que diz respeito à “capital da beleza” (como chamou uma de suas exposições); fizeram desse polonês nascido em Minas um expoente da revalorização da imagem da cidade maravilhosa nas últimas décadas. Conhecia o Rio como ninguém, quase que prédio a prédio; além de Niterói, Petrópolis e das fazendas fluminenses – assunto de um de seus raros textos publicados em livro.
A fusão de suas maiores paixões, apoiada pelo amigo e mentor Luiz Paulo Conde, resultou numa iniciativa única: a marcante, excepcional experiência do Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (hoje sendo ressuscitado pela discípula e amiga Maria Helena Salomon), onde finalmente pôde trabalhar de maneira condizente com suas propostas, resultando numa série de exposições e publicações memoráveis: Le Corbusier, Jorge Machado Moreira, Art Déco, Piranesi, a cartografia urbana carioca, foram alguns dos temas aos quais seu talento como curador e editor – e seu notório perfeccionismo – deram o devido relevo. Brindou ainda o Rio coordenando exemplar coleção de guias de arquitetura. Além de suas realizações anteriores, como o Núcleo de Pesquisa e Documentação da FAU UFRJ, resguardando preciosos acervos de desenhos – Jorge Moreira, Morales de los Rios, Carlos Leão etc. – e os trabalhos escolares da ENBA, incluindo os de Affonso Reidy, Attílio Corrêa Lima e muitos outros; a criação de periódicos de alto nível como a Arquitetura Revista e a Gávea, a passagem pelo Inepac, pelas assessorias da Secretaria de Urbanismo e da Prefeitura, a Diretoria de Museus do Estado...
Tanto brilho, contudo, era tolhido por uma postura tão discreta, que preferia sempre refletir-se em autorias compartilhadas e realizações coletivas, e lhe fez refugar a projeção, os títulos universitários e os créditos que inegavelmente merecia. Assim, o alcance efetivo de sua obra ainda está por ser devidamente reconhecido.
Talvez o melhor título que tenha angariado seja o de amigo, e a amizade tenha sido seu talento maior. Todos os que o conheceram de perto sabem do raro privilégio que era a convivência, as conversas, o contato social com Jorge. Mestre da conversa, desenvolto em qualquer assunto, combinava sua vasta e variada cultura com uma proverbial ironia que a nada perdoava; ao mesmo tempo, trazia de sua bagagem aristocrática um cavalheirismo e uma lealdade das que não se encontram mais, e que o tornaram presença requisitada nos círculos relativamente restritos que souberam apreciar seu valor. E nestes consolidou relações muito especiais, somando extensa gama de amigos fiéis – sua grande riqueza, enriquecidos a sua vez por esse contato – quem sabe, sua melhor lição e seu maior legado.
Penso que terei sempre a memória dessa convivência como uma herança muito vívida, um cabedal de momentos memoráveis, de conversas deliciosamente leves ou extremamente sérias, de visitas a edifícios ou sítios urbanos, de passeios pelo Rio ou alhures iluminados por seus comentários imperdíveis; associados àquela figura altiva, terna, ora tímida, ora enérgica, ora bronqueando, ora elogiando, às vezes impaciente, mas sempre revertendo à paciência infinita dos verdadeiros mestres – o nosso querido, brilhante, insubstituível Jorge.
sobre o autor
Candido Malta Campos Neto, arquiteto, é doutor pela FAU USP e professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi um dos pesquisadores do Guia da arquitetura moderna do Rio de Janeiro, organanizado por Jorge Czajkowski.