O centenário do Corinthians reuniu na noite virando para o dia 1º de setembro um público de torcedores estimado em 100 mil pessoas em comemoração no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. Se concentrada num estádio, só o Maracanã na fatídica final de 1950 comportaria toda essa gente, ou o Estádio Azteca na cidade do México, onde o Brasil conquistou o tricampeonato em 1970. Sequer caberia no Camp Nou do Barcelona, considerada uma das maiores arenas de futebol na atualidade.
Parece óbvio que a maior e mais fanática torcida de futebol tenha como objeto de desejo uma casa própria à altura. É até incompreensível, para os menos chegados, que o Corinthians se comprima no acanhado Parque São Jorge, ou que considerem o Pacaembu o estádio de mando. Não há como questionar o caráter simbólico do estádio de futebol como lugar de expressão de um modo de ser e sentir.
Todavia, nem sempre a materialidade desse lugar representa precisamente essa bela paixão.
Se o Brasil é a pátria em chuteiras nas crônicas de Nelson Rodrigues, o Reino Unido deve ser o berço das chuteiras. O seu principal ninho foi o Wembley Stadium, arena inaugurada em 1923. Nesse estádio o mundo assistiu à final da Copa do Mundo de 1966, os europeus a cinco finais da copa européia e abrigou os Jogos Olímpicos de 1948. Pelé teria declarado que “Wembley é a catedral do futebol, a capital do futebol, o coração do futebol”. O tradicional e reminiscente espaço – que no Brasil seria imediatamente reconhecido como patrimônio cultural a se preservar –, começou a ser demolido em 2002 para dar lugar ao New Wembley Stadium, projetado pelo notável arquiteto Lord Norman Foster, finalmente inaugurado em 2007. O pouco que se registrou sobre a conservação da memória do ‘templo sagrado do futebol’ foram sugestões de manter ou rememorar as “torres gêmeas” (não confundir com 11 de setembro) que caracterizaram as fachadas do estádio. Foster ignorou solenemente essas idéias e criou sua própria referência arquitetônica, marcada por um grande arco. Ironicamente, na época da sua inauguração, saiu na grande imprensa britânica a insinuação que a imagem da nova arena se reportava à malograda proposta apresentada por Oscar Niemeyer ao concurso do estádio do Maracanã em 1942, cujos desenhos circularam no mundo nos livros e revistas dedicados ao arquiteto brasileiro.
Um colega espanhol, arquiteto, crítico de arquitetura, editor e boleiro, brincou comigo (com alguma dor de cotovelo, doze anos antes do título mundial deste ano) ironizando que a tragédia de Sarrià foi tão grande que até o estádio da derrota brasileira para a Itália em 1982 não existia mais. O Estádio de Sarrià, do Espanyol de Barcelona, foi vendido para pagar dívidas do clube e demolido em 1997. Ali hoje existe um empreendimento imobiliário com prédios residenciais, uma praça, e nenhuma memória que houve algum dia um palco de futebol.
O velho Wembley e Sarrià refletem uma dimensão peculiar da beleza e da emoção do futebol: o lance fugaz, orgástico, inesquecível. Efêmero e eterno ao mesmo tempo.
Os corintianos querem construir sua casa, constituir seu patrimônio, afirmar o seu lugar e espaço. Se alguém realizar um levantamento cuidadoso de todos os esforços já feitos para a construção de um estádio próprio, encontrará (desde sempre) uma vasta crônica de discursos, desenhos arquitetônicos e fotos de maquetes que, imaginariamente reunidos, formariam uma extensa e exuberante vila olímpica. Notícia veiculada em março deste ano dá conta que o presidente do time estudava oito propostas para estádios em diferentes lugares. Sua mais recente versão, ainda um esboço, e originalmente pensado para 48 mil torcedores, poderia ser mais um parágrafo dessa longa compilação de boas intenções e nenhuma efetividade. E como intentos, nunca causaram dissabores senão aos pacientes donos da casa. Mas ao tomar carona no impasse da escolha do palco de abertura da Copa do Mundo de 2014 na maior metrópole brasileira, e assumir um novo estádio estimado para 70 mil pessoas, comprometeu-se com a responsabilidade de prestar contas não só aos seus torcedores e à cidade, mas ao país e ao mundo.
Faz jus à fama do fanatismo corintiano. George Santayana (1863-1952), o filósofo hispano-norte-americano, escreveu certa vez: “o fanatismo consiste em redobrar o próprio esforço quando nos esquecemos do objetivo”. (1)
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Este artigo, com o título “Arena própria agora é palavra de corintiano”, foi originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, caderno Aliás, 5 set. 2010, p. j.5.
sobre o autor
Hugo Segawa é arquiteto, Professor Associado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.