Aumento da frota de veículos, ausência de obras, nó no trânsito: “ficaremos igual a São Paulo.” (entrevistado ao Globo, 14ago)
Em pouco mais de um século experimentamos uma revolução na mobilidade urbana. O transporte nas cidades era feito por veículos puxados por animais (charretes, bondes); passamos a contar com trens urbanos, metrô, bondes elétricos, ônibus, automóveis, motocicletas e bicicletas. As cidades se adaptaram a esses novos veículos – ou passaram a ser projetadas em função deles.
As grandes cidades já não serão uma evidência da indústria, mas dos serviços. Serviços avançados, a inovação, a cultura, adquirem papel cada vez mais relevante.
Essa nova configuração exige multiplicidade funcional, não mais o isolamento entre as funções urbanas, como as cidades modernas foram idealizadas. É a concomitância de atividades, a diversidade e a possibilidade da interação, que dão suporte à vida urbana contemporânea.
Assim, na cidade do século 21, o sistema pendular casa-trabalho perde hegemonia. Os deslocamentos se diversificam e a ligação casa-trabalho é parte de um sistema multipolar de interesses. A figura dos fluxos deixa de ser um eixo, passa a ser uma rede, na qual o eixo original continua importante mas não é mais hegemônico.
As interconexões, multiplicadas, exigem um desenho de cidade mais compacta; talvez ainda fragmentada, mas conurbada.O cidadão busca inserir-se nas oportunidades para o seu crescimento profissional, social, cultural, político. E essas oportunidades disputam cada minuto de sua agenda diária.
É aí que o redesenho da cidade se apresenta como um fator de democratização. Reduzir distâncias, reduzir tempos, superpor tarefas e funções, tornar disponível cada momento. Economizar energia, esforços, recursos. Ser sustentável.
No Rio de Janeiro, 70% dos deslocamentos por veículos é feito em ônibus e vans e 24% em automóveis. Todos sabemos que não é um bom modelo para uma metrópole, onde as grandes distâncias precisam ser vencidas por transporte de massa, tipo metrô, mais seguro, mais rápido, mais confiável.
A concentração do transporte urbano no sistema sobre pneus, ônibus e automóvel, não tem mais defensores expressivos, mesmo nas cidades que se formaram a partir dele, como nos Estados Unidos. Ela implica em expansão urbana e em baixas densidades, que aumentam os custos da cidade.
É assim que nas grandes cidades mundiais os deslocamentos casa-trabalho priorizam o uso de trem ou metrô. A partir daí, o cidadão usa outros modos de locomoção: ônibus, bicicleta, automóvel e a pé, conforme a conveniência. As interconexões são multiplicadas para ganhar tempo e qualidade.
É inegável que o automóvel se tornou o sucesso incomensurável pela mágica do deslocamento imprevisível. Mas, na cidade, os automóveis não podem mais ser protagonistas. Precisam ser subsidiários. Por certo, tenderão a ser menores, poupadores de energia, talvez compartilhados, o que evitaria grandes áreas de estacionamento sem nos impor grandes engarrafamentos.
Nossas cidades não serão extensas, amorfas, intransitáveis, intratáveis, inadministráveis. Elas serão compactas, amenas, intensas, vibrantes, saudáveis, ambiental e urbanisticamente sustentáveis.
Esse modelo está em andamento em importantes cidades deste nosso século. A cidade infinita dá lugar a cidades renovadas. A cidade se reinventa na diversidade de usos e de ambientes, no aumento da densidade, no aumento da salubridade, em mais áreas verdes, na economia energética, na qualificação do espaço peatonal, na universalização dos serviços públicos.
Os grandes investimentos previstos para serem implementados no Rio de Janeiro nos próximos anos constituem uma enorme oportunidade para o redesenho do sistema de mobilidade de nossa cidade metropolitana.
A frota de automóveis continuará aumentando, sim. Mas obras viárias que estimulem a expansão urbana estão no mau caminho. Obras viárias que estimulem o uso do automóvel paradoxalmente também ajudam a piorar a mobilidade e ampliar a desigualdade. Lembremos que melhorar a mobilidade metropolitana é reduzir as diferenças sociais.
O Rio não precisa ficar igual a São Paulo. Aliás, a capital paulista parece estar a rever seu rodoviarismo. No Rio, precisamos reequacionar o sistema de transporte do eixo casa-trabalho (prioritariamente os corredores Baixada-subúrbios-centro), tarefa do século passado, que não cumprimos, e, simultaneamente, multiplicar conexões intermodais, exigência do século 21. Parece ser muito. Mas basta acertarmos nas escolhas (1).
nota
1
Artigo originalmente publicado no jornal O Globo, 21 ago. 2010.
sobre o autor
Sérgio Magalhães é arquiteto.