O crescimento populacional e a valorização imobiliária nas cidades contemporâneas têm contribuído significativamente para a expansão urbana e a formação de núcleos habitacionais espalhados pelas periferias. Esse fenômeno se observa, inclusive, em algumas grandes cidades européias onde as regiões periféricas formam densos aglomerados urbanos. Do ponto de vista arquitetônico é visivelmente acentuado o contraste existente entre as edificações no núcleo central e nas periferias.
Se tomarmos como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, esse contraste adquire maior proporção na medida em que entram em cena as favelas e os loteamentos irregulares. A maioria das habitações construídas nesses locais carece de requisitos mínimos de habitabilidade em decorrência da falta de recursos financeiros das camadas mais pobres da população. E o que dizer, então, da qualidade arquitetônica dessas moradias? Essa é uma questão relevante que precisa ser enfrentada com determinação. Um programa de melhorias habitacionais torna-se, neste momento, indispensável não apenas para elevar a qualidade de vida e a auto-estima dos moradores, mas, sobretudo, para propiciar um “upgrade” na ambiência local e na imagem da própria cidade.
Esse esforço comunitário e governamental para melhorar o padrão de qualidade das habitações não pode ficar restrito, unicamente, aos assentamentos populares. É necessário, também, que o empresariado da construção civil se empenhe na melhoria da qualidade das construções, evitando que elas interfiram negativamente na paisagem do Rio de Janeiro. Difícil não generalizar esse pensamento em relação aos empreendimentos imobiliários na Barra da Tijuca, onde consumidores e incorporadores se mostram mais preocupados com a segurança e o status social do que propriamente com a produção de uma arquitetura verdadeiramente de qualidade. Os condomínios residenciais e empresariais lá construídos, em sua grande maioria, são formados por edificações de gosto duvidoso identificadas com o “mainstream” internacional. A concepção formal desses edifícios, quase sempre, incorpora elementos cenográficos descartáveis que encontram no simulacro a sua mais perfeita tradução.
Poderíamos relacionar uma quantidade expressiva de edificações que se enquadram nessas condições. Entretanto, preferimos deixar para os leitores o exercício de identificá-las em seus trajetos cotidianos. Deve-se adotar como enfoque a arquitetura que sobressai às demais apenas pela sua extravagância e espetaculosidade. Para que se possa traçar um paralelo comparativo com prédios de expressivo valor arquitetônico, relacionamos alguns exemplos paradigmáticos de edifícios que marcaram a arquitetura carioca do início do século XX até a década de 80, quando essa fonte de referência, lamentavelmente, começou a ser desprezada.
São eles, os edifícios “Art Déco” nos bairros de Copacabana e Flamengo, destacando-se o Biarritz. Os prédios da Mesbla e do Hotel Serrador nas imediações do Passeio Público. Os edifícios-sede do Banco Boavista (hoje Bradesco) de Oscar Niemeyer e do Banco Aliança (hoje Itaú) de Lúcio Costa, ambos, na Praça Pio X. Os criativos edifícios residenciais projetados pelos irmãos Roberto no Parque Guinle, na Rua Farani e na Rua República do Peru. A sede da Fininvest na Rua da Passagem e o edifício empresarial Leonel Miranda na Rua do Ouvidor, projetados pelo arquiteto Paulo Casé. E, obviamente, o Palácio Capanema (antigo MEC), a ABI, o MAM, o Monumento dos Pracinhas, o Aeroporto Santos Dumont, a Maison de France, o Consulado Americano e o Conjunto Habitacional Pedregulho projetado por Reidy.
A verdade é que os interesses que envolvem atualmente a produção arquitetônica carioca diferem substancialmente daqueles que condicionaram os projetos citados. O modelo consumista, que vem condenando à obsolescência diversos prédios e bairros importantes do Rio, precisa ser revisto para evitar que a cidade continue sendo tratada como um bem descartável qualquer. Para reverter esse processo é imprescindível evitar a vulgarização da arquitetura que vem sobressaindo nos últimos anos.
Neste momento histórico em que se vislumbra a retomada do desenvolvimento econômico do Rio, não se pode mais submeter a cidade a certos modismos arquitetônicos caricatos que comprometem irremediavelmente a sua paisagem urbana e natural. Para se contrapor a essa tendência é necessário investir na formação acadêmica e profissional dos arquitetos e promover uma reflexão crítica sobre o amplo repertório arquitetônico e urbanístico divulgado no Brasil e no exterior. Somente a partir de uma base conceitual sólida é que poderemos convencer o empresariado e o poder público da necessidade de realizar concursos de projetos para se extrair, como resultado, uma arquitetura efetivamente de qualidade.
nota
NE
Publicação original do artigo: JANOT, Luiz Fernando. Arquitetura com qualidade. O Globo, Rio de Janeiro, 19 fev. 2011.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot é arquiteto urbanista, professor da FAU-UFRJ