“Só existo na vida com a condição de ver”, escreveu Le Corbusier. Daí que o arquiteto tomasse a janela horizontal como elemento estruturante de seus projetos, como limite que constitui o habitante, divorciando-o da natureza e submetendo-a ao enquadramento da visão. Habitar seria, portanto, assumir a posição de vidente.
Não é por menos, também, que um trabalho de Ana Holck, Fuga (2004), interferiu justamente sobre a janela de um dos principais monumentos da tradição corbusiana, o Palácio Gustavo Capanema, recobrindo-a com películas de filme de controle solar com diferentes graus de opacidade. Estão aí colocados os termos de uma gramática que articula o espaço em termos de encobrimento e desvelamento, acesso e obstrução.
Em Bastidor, Holck dá sequência a uma investigação sobre os desdobramentos escultóricos de um tipo recorrente da paisagem urbana, o calçamento hexagonal de concreto. Investigação que aqui extrapola a autonomia do objeto e retoma uma questão cara à artista: a ocupação do espaço arquitetônico como um todo, em diálogo com seus limites.
Pode-se pensar tal manobra em três tempos, a começar por um simples deslocamento: desenterrado, o bloco adquire massa e reafirma sua surpreendente presença física no peso e na opacidade do concreto. Termos imediatamente revertidos pela repetição de sua forma hexagonal, que mobiliza um material leve e translúcido, o policarbonato alveolar. É erguido um biombo, que vem pautar nossa trajetória pela sala, mas que é também trespassado por recortes – o hexágono agora inscrito como ausência.
Acentuam-se, desse modo, a discrepância entre acesso visual e obstrução corporal, e a entrada em cena, na própria trama formal do trabalho, do jogo de luz e sombra. Caminhamos escorados no fino limiar entre uma presença escultórica marcante e sua pulverização, adentrando um produtivo campo de incertezas no qual ver talvez seja menos habitar do que desabituar-se.
nota
NE
A instalação “Bastidor”, de Ana Holck, apresentada pela Zipper Galeria na SP-Arte 2011, Pavilhão da Bienal, Parque do Ibirapuera, de 12 e 15 de maio de 2011.
sobre o autor
Sergio Bruno Martins é crítico de arte.